Capim braquiária na alma da gente

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Capim braquiária na alma da gente


Luiz Henrique Moreira Soares

De leve no lençol que te tateia a pele fina

Pedras sonhando pó na mina

Pedras sonhando com britadeiras

Cada ser tem sonhos à sua maneira

Cada ser tem sonhos à sua maneira

"Noite Severina", Lula Queiroga, 2001

Para Adenize Franco



Por ordem da vó Corina, vô Tião nem dormia mais em casa. Ela trancava as portas antes dele chegar da gandaia e deixava o velho lá fora, no terreiro, dormindo com as galinhas, roendo os ossos do tempo, passando o frio de vergonha, tomando vergonha na cara. Ouvia dizer que ele gastava o dinheiro da aposentadoria com pinga, que ia pra cidade e ficava correndo atrás de rapariga, dessas que dançavam no boteco do Nestor e que também não tinham limites pras coisas, igual ele. A vó, coitadinha, era mulher mais corajosa do mundo. De manhã, antes do sol despontar queimando no céu, ela amolava a foice, varria o terreiro, cantava pro silêncio com voz meio dormente e tristonha, quase sumida. A música, a melodia, a rouquidão de um mundo que não quer ser acordado, que quer ficar quietinho na cama, pezinhos encolhidos, uma vida mal dormida. Mas Dona Corina ia acordando aos poucos, varrendo e cantando canções que eu nunca tinha ouvido. Minha vó só cantava essas coisas de velho, de gente mais antiga. Tinha vezes que era só resmungo, e ela não falava nada, era só a prova viva que a vida parou de ser vida e agora era só tapera de solidão. De quando em vez começava a pigarrear, tossir as nojeiras da alma, assustava as galinhas.

Eu tentava entender porque ela varria todo santo dia aquele bendito terreiro, a poeira levantava com o vento, levantava o vestido, mas a velha continuava cantando e recantando, sem parar. Pensava eu que varrer a poeira daquele desertão todo era pretexto de cantar pro mundo. O que ela varria, na verdade, era o desalinho que carregava no peito, esse mormaço da alma, que não deixa nada vingar. A terra desiludida é igual o coração da gente, podre, sem vontade de nascer nada.

O silêncio não existe mais, nem voz, nem som, nem ronco, resmungo. Foi assim que descobri que minha vó nunca foi muda, só não era acostumada a falar que nem a gente, que é criança e gosta de tagarelar feito papagaio. Ela me disse certa vez que o desgosto acabou com o tesão dela. Eu nem sabia o que era o desgosto, eu nem sabia conceber as palavras direito... Eu achava que desgosto era só a cara feia de fome, ou bicho de pé comendo a carne do mindinho. Anos mais tarde, vi como é ruim saber o significado das palavras. Desgosto dói muito, sabe? A vó tinha razão.

Eu ficava ali, sentado num tijolo ao lado da porta, com os olhos remelentos, as pernas magras encolhidinhas, encolhidinhas, sentindo o vento. A velha cantarolava e parecia que dançava com a vassoura, dançava mesmo. Era um vai-vem sem rumo, na poeira e no vento, varrendo o deserto, o terreiro da alma. Varria mais o deserto de poeira que os cômodos da casa de taipa. Lá dentro ficava tudo branquinho, dava até pra desenhar nas panelas. Lá fora, juntava aquela tempestade de areia, que sumia no meio do nada. O vô Tião debruçava no monte de tijolos e ficava igualzinho as panelas, juntava poeira na barba açucarada de pinga, na testa suada que o sol começava a queimar. O velho acordava com a garrafa na mão, tossindo feito um cavalo, batendo a poeira da roupa suja, reclamando qualquer coisa que eu não entendia bem. Ficava eu e ele, nós dois, olhando minha vó varrer o quintal. Eu de cá e ele de lá. Depois a vó me aparecia com os cabelos desgrenhados, parecendo bruxa, e as gotinhas de suor faziam bigode. Me mandava ir entrando, que o sol ainda não se fez inteiro, que é cedo demais pra criança sair da cama. Cedo demais. Era cedo demais para entender as coisas, era cedo demais para tentar entender essa limpeza que fazemos na alma.

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