A Casa-Arca

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A Casa-Arca



Everson Lira

Num dilúvio diferente, um Noé contemporâneo luta pra salvar-se de um impensável apocalipse.



A chuva jamais acabaria!

A eternidade assumia um corpo líquido. Como se todas as hordas e hostes celestiais regurgitassem em uníssona cuspideira, grossa e viscosa feito baba.

A água atolava o mundo lá fora, de onde um cheiro putre feito bolor e fezes avultava de todas as bandas. Entupia-me as ventas um odor horrendo, enxofre e amoníaco ardiam, lacrimejantes.

Tudo o que não era minha casa, afogava-se.

Vacas, galinhas, gatos, cobras, cachorros, carneiros, potros, homens...

Seguiam boiando inchados, desciam lentos em procissão hedionda, num funeral sem cortejo no tudo que era leito de rio e que mais semelhava mar.

Mar sem peixes, crescia morto em forma de foice a matar e engordar. Ameaçador, sem hesitar ceifava a vida com suas furiosas lâminas.

A baba-cuspe incessante, apertava o cerco à casinha solitária.

Dentro, eu, as paredes, a mobília e os sapos. Sapos mil! Saltitantes, verdes e inverossímeis a coaxar uns sobre os outros à altura de meus joelhos.

Morreria afogado em sapos e não na baba? Desespero.

Da ilha de minha casa contemplava um degenerado oceano cor de medo. Sem planos de salvação entre paredes, teto e um chão de sapos. Um lagarto saltou de um canto em meio a saparada. Comida! De um salto acertei-o. Queimei uma cadeira em cima da mesa, assei-o, comi. Por quanto tempo esta carne manteria esta outra?

O frio repartia os lábios em sangrentas fendas. Estertorava nas vestes molhadas. Esquentei as mãos no miúdo fogo do assado, animando as chamas com algumas lascas de madeira... Madeira! Sim! Súbito, acerta-me um punhal de luz e, como que clarividência, vi; madeira! A madeira de minha casa me salvaria!

De minha casa, construiria minha Arca! Dela minha nau triunfaria. Singraria imponente pelas águas pestilentas e sem fim. Avançaria épica por sobre todos os mares num arrojo bestial vomitando sobre as vagas de excremento. Flutuaria heroica sobre o indescritível plasma do poço de lodo. Levantaria as velas de pele de sapo envergadas por todas as tempestades, arremetendo-nos do apocalipse babado.

E quando então, do convés de minha nave, ao longe observasse o céu de um horizonte mudando, de plúmbeo ao ouro do astro em chamas que insistiria em vingar da camada cerúlea, haveria de alçar voo o pássaro etéreo que volveria sem tardar, com a ramagem ao vinco do bico.

Eis que, feito Noé em alva túnica, aportaria a Casa-Arca no cais de bênçãos da Terra-Nova.

Terra nova e imaculada! Sem nódoas! Pura e virgem. Verteria aos seus filhos o verde leite das matas e de sua proficuidade, os seios fartos expurgariam toda a imundície. O nefasto pereceria ao seu alvorecer e o caos arderia ante a justiça de suas entranhas.

Nela, a vida derramada de suas vigorosas reentrâncias, inundaria vales e planícies, mares e ilhas saciando-se. Extirpando e destituindo a morte em seu manto vivo. Águas puras escorreriam em abundância de seu ventre penetrando as frestas e aplacando a sede.

Dos céus em fogo, límpida e redimida, dissimulando a guerra, a paz desceria acariciada pelas mãos dos Deuses, rejubilando.

Consumar-se-ia, ao princípio do terceiro milênio, a aventura única do Noé contemporâneo, não fosse um despertar.

Acordei e vi que principiava a chuva.

Ecos 8Onde histórias criam vida. Descubra agora