Prólogo

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Eis que se encontravam os três em frente a gruta de Baludam. Era uma pequena caverna esculpida em barro, fundindo-se com o enorme toco de árvore que servia de sustentação para a estrutura cavernosa.

— Chegamos, finalmente. Parece que Baludam não está em casa. — Declamou Oberom, espanando inutilmente com as mãos suas vestes encharcadas pela chuva.

— Bem... o tempo urge, Oberom. Não temos o luxo de esperar aqui ao relento, precisamos de abrigo. — Comentou em tom severo o homem, que com suas vestes de puro luxo concentrava em si a visão ambígua da derrota e do brio principesco.

— Concordo em plenitude, alteza. Entretanto, devo pontuar que não é sábio adentrar uma caverna escura, onde uma suposta criatura anciã da floresta habita. — Alertou Senidêssa com a voz serena, elevando-a de modo macio acima do som turbulento e ribombante da tempestade chuvosa que cercava o pequeno grupo.

— Não há motivos para preocupações — afirmou Oberom, educadamente. — Conheço Baludam há muito tempo, sei bem até onde a lenda vai e até onde a realidade se mostra verdadeira. Não há o que temer. Tenho certeza de que ele não se importará em ter a repentina visita de um amigo distante.

E assim os três, bardo, sacerdotisa e príncipe rumaram para as entranhas daquela escuridão infinita. Tão denso era o escuro que não se podia ver as mãos à frente do nariz. O ar da caverna terroso e úmido era salpicado por tons de carvalho, madeira molhada e mofo. As paredes terrosas e úmidas sujavam as mãos e os tecidos que os três vestiam. Conforme iam adentrando cada vez mais a profundeza, uma singela luz mostrou-se em um titubear. Quando mais próximos, chegaram por fim a um aposento, sala esta incomum em todos os sentidos. Em primeiro lugar, a última coisa que se esperaria encontrar após enfrentar paredes úmidas e escuridão densa é uma sala; que dirá uma sala bagunçada. Escavadas nas paredes da gruta viam-se estantes e mais estantes de livros, isto somado a uma única poltrona de couro cinza e gasto de fronte para uma mesinha simples de madeira, onde um castiçal de velas iluminava o ambiente. O chão de terra batida era impossível de ser visto, uma vez que toda a sua superfície estava coberta por livros da mais variada sorte e cor: espessos, pequenos, grandes, finos, largos, coloridos. O ambiente era úmido e marcado pelo forte cheiro de poeira e terra molhada. Apesar disso, o aposento oferecia um local quente, afastado da chuva e, acima de tudo, seguro.

— Que há de ser feito agora, Oberom? — indagou a sacerdotisa Senidêssa.

— Agora esperamos. Aconcheguem-se, pois estão na infame Gruta de Baludam. Não sei o que o faria sair nessa tempestade, mas em breve chegará. Até lá encontrem um lugar no meio de toda esta bagunça e desorganização para revitalizarem suas forças. Mas não durmam, estejam alertas. A malevolência de nossa inimiga não conhece horizonte.

Cada qual à sua maneira descansou: Aenir sentou-se em um recanto e pôs-se a afiar sua espada, em silêncio. Senidêssa retirou-se em meditação e Oberom resumiu-se a ler um livro qualquer que recolheu do chão. O tempo passou, a chuva findou e veio novamente. À exceção de Senidêssa, o restante da comitiva mostrava-se impaciente. A pedra de afiar de Aenir fazia o som do metal ressonar de forma mais aguda a cada vez que sua ânsia lhe alfinetava, mais e mais fortemente. Oberom começava a indagar-se se procurar abrigo à casa de seu velho amigo havia sido uma boa ideia. Afinal, perdiam-se já as contas dos anos que não se viam e nem trocavam qualquer correspondência que fosse. Certamente Baludam não houvera se esquecido dele, visto que compartilhavam mais que uma vida, uma mesma sina. Mas por mais estática que seja a tendência destes espíritos que vivem muito, não é uma grande novidade que o temperamento possa mudar com o passar dos tempos.

Até que um som estranho vindo do interior da caverna retirou Oberom de seu devaneio. A princípio pareciam passos, ecoando lentamente em toda a extensão circular da gruta. Aos poucos o ritmo das passadas aumentou e junto delas um enorme rugido reverberou, fazendo o barro das paredes estremecer e ir ao chão.

Oberom abriu seu livro de cantos, Aenir entrou em guarda com sua espada e Senidêssa aprontou seu cajado de madeira alva. Todos com os olhares atentos à entrada da gruta, de onde o ameaçador som vinha.

A cada segundo o barulho aumentava, e o que era um som indefinido, podia agora ser traduzido como uma espécie de animal de quatro patas. Rugidos e arfadas acompanhavam um bater frenético e apressado no chão, como se a fera soubesse que alguém havia invadido seu território. Da escuridão de onde os três vieram, uma figura corpulenta, com olhos vermelhos, pelos e íris negras revelou-se. A primeira vista um olhar desatento julgaria a criatura como um lobo crescido, mas os chifres na cabeça e os espinhos muito pontudos nas costas rapidamente descartavam essa possibilidade. A criatura encarou os três invasores de sua gruta e rugiu ameaçadoramente, rosnando enquanto seus olhos vermelhos esquadrinhavam cada pequeno detalhe de suas presas. Ódio e ira refletiam-se no carmesim daqueles olhos, como se um mero relance fosse o suficiente para deglutir a alma e a carne.

Ao finalmente ver revelada a imagem da criatura sombria, Oberom fechou seu livro de cantos e resguardou-o em seu cinto, como de costume. Relaxou os ombros e disse em alto e bom som, como que para subjugar os rosnados do ser negro. — Baludam, meu velho amigo, o tempo finalmente lhe deixou mais louco do que sempre fora? Não reconhece mais o seu velho bardo favorito?

Ao ouvir as nuances da voz profunda de Oberom, a criatura imediatamente parou de rosnar, deixando em evidência um silêncio que denunciava a tamanha fúria e raiva que cerceavam os lupinos roncos de sua garganta. Levantou mais seu pescoço, como que para olhar profundamente nos olhos do homem alto e esguio que lhe dirigira a palavra. Repentinamente uma névoa negra e densa começou a emanar do corpo do animal, envolvendo-o em uma densidade escura como o seu pelo, ocultando sua forma animalesca em uma cortina fumacenta. A névoa transmutou-se em tecido, e onde uma vez havia uma criatura sombria e ameaçadora, estava agora um simpático e singelo velhinho, todo coberto em panos andrajosos.
Andava encurvado, com longos e ralos cabelos brancos que se fundiam com sua enorme barba e enormes sobrancelhas. Seus olhinhos eram miúdos e semicerrados, suas mãos eram magras e levemente trêmulas. — Ora, ora, ora. Eis que depois de seis décadas, você resolve aparecer. Oberom, seu maldito paspalho, dê cá um abraço em seu velho amigo! — Tampouco terminou de falar, caminhou até Oberom tão rápido quanto seu frágil corpo lhe permitia e abraçou-o. Para os espectadores, ficava claro que aquele não era um abraço comum. Era raro ver Oberom exprimir qualquer sentimento que não fosse insatisfação, descontentamento ou um ar de sabedoria um tanto quanto egóica. Mas desta vez seus olhos estavam fechados e seus lábios sorriam. Discretamente, uma lágrima desceu pelo rosto de Baludam.

— Desculpem-me pela recepção calorosa. Agora deixe-me arrumar esta bagunça, todos vocês parecem cansados e abatidos, permitam-me oferecer refeição e descanso apropriados.

Aenir, com ar grave e marcado pela urgência, apressou-se em interromper a hospitalidade de Baludam, mas Oberom gesticulou para que não o fizesse. Com um estalo de dedos, o franzino e grisalho homem ordenou que todos os livros espalhados pelo chão retornassem a seus devidos lugares nas estantes esculpidas. Com um aceno de mão pôs fogo em uma lareira escavada na parede da gruta, que abrigava um caldeirão acima do fogo onde um caldo grosso começava a ferver. Separou quatro tigelas de madeira e serviu o caldo para cada um de seus inesperados convidados. Acomodando todos ao chão, de frente ao aconchego da lareira, indagou, por fim, "A que devo a visita?"

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Imagine se tivéssemos todos esse poder de arrumar nossa bagunça com um aceno de mãos! Seria uma mão na roda.

Gostou? Achou interessante? Lhe convido a ler o próximo capítulo, onde descobriremos o que poderia levar um bardo, uma sacerdotisa e um príncipe à casa de um velho druida!

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