Capítulo XXIV: Anita

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    Profundezas, profundezas! Veja como estou difusa, eu sou uma com a água, com o sal do mar. Eu viajo a nado, giro e rodopio. Esta espuma salgada, consequência de minhas piruetas, não vão me denunciar. Esta água tão macia, tão fria ao toque, meu conforto, meu lar que está em todo o lugar. Pulo e supero a superfície do mar, sinto o ar em meus cabelos a revoar, minhas mãos de nadar tocando o ar gelado, e me desfaço novamente, forte, valente, sem limites que me conheçam, firmo aqui a minha alegria! Como é prazeroso me ter nesta liberdade, este prazer, esta sensação me acaricia e toca no meu âmago e em minha essência, estou voando! Estou nadando, estou viva neste oceano!

    O fulgor brando dos cristais de sol e luz que dançam com as águas lá encima lambiam os cabelos cor de fogo e as escamas brancas das barbatanas da criatura. Algo não sabido, um presente novo para o mundo. As léguas foram passando, assim como a noite e o dia. Cingia certas vezes com o ocasional grito das barcaças tripuladas, o som de sinos a anunciar alguma ordem, a concha amadeirada flutuando por sobre as águas salgadas como um pássaro voa aos céus. 

    Houve tempestade na superfície, o som dos raios ribombando por entre os profundos do mar escuro em negrume noturno, ondas fantásticas que cobriam o firmamento e ocultavam as estrelas. Mas era calmaria a lei para aqueles que submergiam às águas, e ela, solitária, mas ainda sustentando nos lábios rosados um sorriso tão branco e precioso quanto as pérolas mais puras do assoalho do oceano, balançava sua barbatana branca engolindo as distâncias marítimas.

    Não sabia ao certo para onde iria, ou de onde havia vindo. Em verdade, não haveria nem de ter pensado em seu próprio nome, tamanha a alegria que a contaminava. Entregue a este torpor, sentiu a claridade do dia sumir e a escuridão  da noite pintar de negro as distâncias marinhas por diversas vezes - o pensamento não era claro, o sorriso, estático - Me dê a mão, venha comigo, ó meu engendro para o futuro. - Foram as palavras que ecoaram em sua mente saturada pela felicidade, como se a voz transfigurasse toda a insensatez de euforia em um súbito de compreensão. Lúcida, porém calma, a criatura parou seu nado ininterrupto de dias a fio, e como se lembrasse de um hábito adquirido há muito tempo atrás, em uma vida que já lhe escapara por entre os dedos como o pôr do sol preenche o céu de laranja, pensou em esfregar os olhos. Os dedos finos e esbranquiçados, ligados por uma película fina, tocaram a sua face. E mesmo ali, por sobre aquele luar luzidio, notou que a voz em sua mente era tão real quanto as escamas brancas de sua barbatana clara.

    - Venha, venha cumprir seu propósito, venha servir estas águas. Venha ser a mãe do mar brilhante, venha conhecer o seu futuro. - Diante de si, uma gigantesca figura transluziu no oceano. Era feita de pura energia, tão grande, alogando-se até as profundezas, iluminando as águas com sua luz azulada como se fosse dia. Ela era azul e reluzente, sua existência recobrindo todo o espaço. A presença incandescente aproximou-se do ser marinho e a inundou de sua essência. - Me dê a mão. - Disse ela novamente, estendendo a palma tão grande quanto os rochedos dos altos montes para que repousasse por sobre ela. Tão logo aceitou este convite, viu-se ser arrancada de onde estava, as águas em um turbilhão profuso envolvendo-a em confusão e revoares difusos. Levada pela palma azulada e reluzente, suas memórias de outrora começavam a insistir em também voltar a vida - sua existência ainda é fresca no mundo, donzela, tão virginal quanto o botão de flor que ainda não desabrochou. Tome para si esta palavra: sirva ao amor, seja o amor e de tudo o que fizer em sua avivada e renovada vida, que seja por amor. E estas palavras são sábias e reais, pois quem as fala é Harmonia e Fantasia. - Por quanto tempo foi levada pelas torrentes da voz azul luzidio nunca saberia. Deixou-se ser manipulada por aquilo, que de tamanha grandiosidade e poder, a fazia temer.

    - Que o amor salve todos nós. - Disse isso, e tão logo estas palavras terminaram de diluir-se no mar, a presença e a palma de luz desvaneceram, lançando-a em uma desolação confusa de redemoinhos e piruetas.

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