Capítulo XXIX: Harmonia e Fantasia

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     Oberom.

    Foi a única palavra que ouviu. Em sua memória, um raio de luz que ilumina as trevas se fez. Como se sua mente fosse uma mata verde e fechada, a luz de tempestade iniciou um incêndio nas copas das árvores, que se espalhou para todos os recantos até consumir toda a floresta em brasa. Assim foi o despertar em Oberom, pois aquela voz, aquela única, doce, amada, saudosa e mais do que adorada voz não acariciava seus ouvidos há mais de mil anos.

    - Oberom! -

    E o bardo ousou olhar para a voz no lago de águas salgadas e cristalinas, e eis que sua visão não o traiu, ao passo que não lhe disse toda a verdade. Estava ali, prostrada nas águas aquela, a sua eleita, a única que um dia tivera no alento de vida todo o seu espírito, e toda a sua luz e toda a sua vida. Era como se o tempo houvesse parado, e só o que existia era o barulho das águas gotejando e se revirando, e a face dela, que era dela ao passo que também não o era.

    - Anita - foi tudo o que conseguiu dizer. E ao som deste nome tão antigo quanto o seu amor, a figura de cabelos vermelhos como as últimas horas do dia aproximou-se dele. E envolveu-o em seus braços molhados, aproximando a sombra de seus olhos arroxeados. Os lábios se encontraram pela primeira vez em um milênio, e naquele momento perceberam que o amor nunca morre, apenas descansa para se acender novamente um outro dia. Ele sentia o sabor do mar nos lábios dela, com a doçura de seu hálito, a ternura de seu beijo mais doce do que toda a fruta do mundo, o amor de seu toque mais quente que toda a chama de fogueira ou de espírito. E não havia distância que pudesse separar as batidas do coração de Oberom, recém-refeito em seu peito, da ardência do toque daqueles lábios. As línguas se tocando e se revirando, o desejo confundindo-se com a fome e a vontade. O aroma que vinha da pele dela, mais inebriante que o mais envelhecido vinho, e o abraço terno de seus braços, e o toque de fogo de seus dedos em seus cabelos castanhos. Pois houvera chegado o momento que o amor já se bastara de beijos, e quis dar alento de vida ao verbo e a palavra: é você mesma, minha amada, minha adorada. Anita. Anita e Anita.

    - Mas como é possível? - Conseguiu conjecturar, Oberom, com o rosto ainda colado ao da mulher, ainda sentido o hálito de lasciva adentrar suas narinas. - Senhora de toda a minha alma, como é possível?

    - Por enquanto, meu doce bardo, senhor de minhas estrelas, deixe que o amor fale mais alto. Lembre-se do que eu sempre lhe disse acerca da razão.

    - 'Pois ouça o amor', você dizia - e os olhos se encontraram e se fecharam, sentindo o pulsar da paixão que insistia em se libertar e vir ao mundo. - Que não há razão neste mundo maior que o amor, e ainda mais que o amor, pois é ainda maior o amor que sinto por você.

    - Você não se esqueceu. Como queria que nossa paixão, aqui e agora, neste momento, com seus abraços a me protegerem do mundo, e os meus a lhe guardarem das trevas, durasse para sempre. Mas não. - Anita afastou-se de Oberom, afrouxou seus braços e deixou-se afastar nas águas cristalinas. - Pois sei que de todas as coisas que o cegam, meu amor por você é uma delas. Veja, meu doce bardo, meu querido e mais precioso amor, veja o que sou! - Afundou-se na piscina cristalina, e quando voltou a superfície, saltou alto e com orgulho, mostrando a Oberom sua nova dádiva e toda a graça de sua nova existência. Era ela, Anita, tal qual fora um dia, mas lá estavam escamas brancas e brilhantes como a mais pura prata, espalhando-se por seus braços e misturando-se a pele dos dedos, recobrindo seus seios e unindo-se ao pescoço. A gigantesca barbatana alva e transparente agitou-se no ar, para logo mais mergulhar novamente na água salgada e fazer ondas de espuma. Libertaram-se ali os ecos de um novo ser, uma nova Anita, trazida, renascida e de propósitos. Agora era ela parte dos mistérios.

    Oberom a tudo viu, e apreciou com toda a ternura de seu coração o olhar tristonho de Anita, que o encarava. - Eu te amo! - Foram todas as palavras que conseguiu dizer.

    - Olhe o que me tornei! Sou um ser do mar!

    - E é Anita, a detentora dos pedaços brilhantes de meu coração despedaçado pelo dever.

    - Pois vim até aqui, fui guiada, para devolver-lhe o amor que tanto me deu, Oberom. Meu querido, meu amor, agora sou parte dos mistérios, e há tanto não sabido de mim, tanto quanto houve sobre ti naquele pedaço de era que compartilhamos juntos.

    E ao som da palavra mistérios, Oberom despertou dos encantos de seu próprio amor latente. O mundo ao redor voltou a existir, e a rocha das paredes tornou-se tão tangível quanto o peso em seu coração de guardião. Por um breve momento, pensou aquilo ser uma das muitas armas que sua inimiga levantaria contra si, mas a visão de Anita na água, ruiva e branca, mulher e ser do mar, o fez reconhecer a realidade: o amor estava ali e, com ele, o peso do que deveria ser feito. Estava encantado, absorto, tomado pela visão de sua querida tal qual a peçonha de uma cobra que se entranha nas veias. Em um ato que supera a coragem perante a morte, Oberom forçou-se a dar às costas para o amor, ali a sua frente, e encarar a entrada de rocha fria que o levara até aquele lugar. - Meus amigos! Irmãos de eternidade, venham cá, pois não há nada aqui se não o amor, e apenas amor! - Foram as paalvras que saíram da garganta do bardo, que se em um primeiro momento pensaram em grita por auxílio, depois foram tomadas pelo asfixiante e maravilhoso poder da amorosidade que o consumia por inteiro.

    Tendo dito isso, contaminado por aquela energia, viu a rocha que o encerrara naquela câmara tremer e fazer-se em fumaça negra, até que em seu lugar estava Baludam, que apressou-se a entrar na gruta úmida. Aenir seguiu seus passos, acompanhado de Senidêssa.

    Quando a sacerdotisa alva pôs os pés naquele lugar imediatamente sentiu a presença que inundava todo o espaço e tocava a rocha das paredes, do teto e do que mais além havia abaixo. De imediato, fez seus olhos fulgurarem de luz, e gritou a palavra de ordem.

    - Presença desconhecida, revele-se! Revele-se! Pela autoridade do Grande Vazio, revele-se! -

    E enquanto proferiu tal comando, aquela energia oculta e quase silenciosa que preenchia o todo ao redor retesou-se e transmutou-se em pura luz azul. O brilho caminhou até as bordas do lago salino e ladeou Anita, que em um gesto de carinho, ofereceu a mão para a luz ofuscante. De dentro da fulguração azulada retirou uma mão, também azul, e aos poucos, todos ali viram o surgir de uma mulher alta e gigantesca, com a cabeça coroada em adornos em forma de cones e cachos finos descendo-lhe até transpassar os ombros. Sua pele era azul, e ela brilhava de forma leve, trajando vestes de prata e céu. Ela falou, e em seus movimentos e voz dupla cheia de poderio celeste, era como se duas pessoas se manifestassem em apenas uma só forma corpórea. - Não temam. Sou Harmonia e Fantasia, a deidade da justa medida, das essências e do além que o poder alcança. 

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