Capítulo IV: Barbar Cavanha

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Baludam decidiu seguir o caminho até a orla como a figura alada que havia tomado forma. O alto galho onde empoleirava-se, murcho e morto, balançou ao impulso do pequeno pássaro espinhoso e negro. Acompanhava Oberom e Senidêssa do alto, atentando-se a possíveis perigos. Enquanto isso Oberom seguia à frente precedido de Senidêssa, que por sua vez ajudava Aenir a caminhar.

Ali do alto Baludam conseguia pôr os pensamentos em ordem mais facilmente. Ainda se sentia estatelado pelo evento que havia presenciado. Nem mesmo durante a primeira vez que Fatäe escapou ao controle de Oberom, há eras sepultadas em um passado distante e sombrio, o bardo deixara de dimensionar seu poder. Lembrava-se de incontáveis eventos em que Oberom poderia ter posto todo o Plano¹ abaixo, no entanto, sempre respeitou a máxima tudo é da Lei².

Baludam conhecia bem Oberom. Se ele havia, mesmo que por um momento, se deixado levar, isto queria dizer que algo o abalava. E abalava de forma colossal. Aquele velho Espírito Galante sempre fora como a espada na guerra. Não importa de quem seja o sangue a lhe cingir o aço frio, desde que o dever seja cumprido. O aço inabalável, o peso frio e atemporal. O metal que não esquenta ao tocar o sangue. Este era Oberom quando seu propósito de Guardião era invocado.

Mas desta vez algo estava diferente e não se encaixava. Um espírito ancião, impassível, intocável e intangível havia, enfim, sido abalado, tocado e, desesperançosamente, tangido. Era um fato difícil de lidar, pois Baludam sempre sentira que o mundo poderia ruir, o Plano esfarelar-se e as deidades daquele universo digladiarem-se em seus conflitos, Oberom sempre seria um porto seguro. Um lugar para voltar, uma lembrança doce do passado ou uma aurora que trouxesse o recomeço. "Estaria eu enganado?".

A estranheza o dominava, pouco a pouco. "Que havia de ser feito?" Todo o futuro universal, por bem ou por mal, bailava uma música desconhecida e incerta, que ora seria regida por Fatäe ora por Oberom. E se o destino fosse bondoso, por apenas estes dois e nada mais.

Até que de modo repentino um vislumbre clareou seus pensamentos, como uma aurora quente que desponta de uma noite fria e sem estrelas. Em sua memória viu todos os eventos delicados que os haviam guiado àquele estado de vida estática. Em todas as épocas, de todas as eras, sempre houvera um fator comum que sempre e sempre mantivera Oberom são, firme e lúcido. E este fator tão misterioso nada mais era do que ele próprio: Baludam.

Isto esclarecia as coisas. Que haveria de querer um ser tão poderoso como Oberom, com um simples e velho eremita ancião, conhecedor da natureza e fonte de inspiração para a mais famosa das histórias para assustar crianças do Reino da Prata? Agora era claro!

Baludam não conseguia mensurar, ou se lembrar, a última vez que representara um propósito. Pensou que seria ali, naquela gruta esquecida e poeirenta onde veria o crepúsculo de sua vida. Mas não. Oberom jamais o deixaria em paz, afinal, desde que chegaram àquele universo estranho não se separaram nem por um momento. Seria esta a sua parte naquela campanha. Doaria seu poder, seu conhecimento e seu discernimento, mas acima de tudo, de todos os poderes daquele ou do outro universo, de todas as forças que poderiam fazer tremer as bases da terra que pisavam, Baludam lançaria mão da ferramenta mais poderosa que já tivera: a total e plena confiança de Oberom. Pois o bardo tomava a sabedoria de seu velho amigo com quase tanta valia quanto a sua. Quase. Já era o suficiente para que Oberom se deixasse dissuadir pelo conselho amigo, ou para que admitisse olhos, que não os seus, capazes de enxergar perspectivas que ele mesmo não enxergaria.

Pode parecer pouco, mas estar aberto ao convencimento ou disposto a ouvir eram coisas raras em matéria de espíritos perenes. Mais ainda ao se tratar de Oberom, pois sua essência, desde o primeiro momento de sua existência, conhecia as coisas que foram, são e seriam.

Seriam.

Esta é a palavra chave. Sabe-se lá quais são os alcances dos conhecimentos de Oberom, isto Baludam nunca se questionou. Entretanto, era evidente que o bardo não fazia a menor das idéias das coisas que viriam a ser: Bárzakar e Luzia elevaram sua consciência e o fizeram saber das coisas que já passaram e sua permanência. Mas o futuro sempre era incerto e inescrutável, obrigando o bardo a contar com sua perspicácia para estar passos a frente, todo o momento, como era de seu orgulhoso feitio. Que fosse Baludam a ajudá-lo nisto e, quando necessário, refrear este orgulho espantoso que vez ou outra cegava o amigo.

Percebeu que havia se perdido em suas divagações internas e deixara passar desapercebida algum tipo de movimentação frenética logo a frente. Estavam já beirando a orla da ilha, e em lugar de ver naus grandes ancoradas no porto, Baludam viu uma cena curiosa, se não inquietante, desenrolar-se na borda marítima. Era hora de descer e alertar seus companheiros. Com um voo rasante e ligeiro transmutou-se em homem, uma vez mais, e tocou o chão com seus pés descalços e ásperos.

— Parem! — gritou ele — perigo à frente, parem! Parem! PAREM! Ora, porque não me ouvem? — Levou as mãos ao rosto e notou que em lugar da boca havia um enorme bico aquilino em sua face, que o fez grasnar e piar em lugar de gritar as palavras de aviso. Vez ou outra a transmutação lhe servia de forma... digamos, rara, e lhe embaraçava, levando-o ao rubor. A infelicidade, no entanto, fez com que tardasse em os alertar. Seus companheiros já sentiam a areia da praia nos pés, obrigando-o a se apressar para juntar-se a eles.

O barulho de aço tilintando somado aos estalos da pólvora anunciavam o desenrolar de uma batalha. Às primeiras vistas pensaram tratar-se de simples marinheiros pratenses lutando contra os guardas corrompidos de Fatäe, mas ao transpassarem as últimas folhagens que davam na orla, foram acometidos por grande surpresa.

Um pequeno bote a remos estava atolado na areia seca da praia. Três mulheres, claramente mulheres do mar, lutavam bravamente contra cinco soldados completamente armadurados da guarda, que por sua vez, possuíam olhos vermelhos e íris negras, denunciando a corrupção das Emanações de Fatäe em seus corpos e almas.

Mas no meio de toda aquela algazarra de empurrões, chutes e aço, uma figura se destacava. Era um homem alto, trajando vestimentas do mais fino veludo vermelho com detalhes dourados. Sua cabeça estava adornada com um enorme chapéu negro, por onde plumas arroxeadas e rubras despontavam: adereço digno do mais vaidoso de todos os capitães piratas daqueles mares. Na mão direita um florete prateado dançava no ar, fazendo troça dos golpes desajeitados e rudes dos soldados. Na mão esquerda uma grande e imponente garrucha estourava, vez ou outra, o ferro quente no ar. O próprio homem era uma figura e tanto, mas de todos os seus ornamentos extravagantes, nada chamava mais atenção do que sua barba e seu cavanhaque, ambos cheios, volumosos, vistosos e brilhantes, que conferiam a sua face já zombeteira e rosada um ar imponente de comando.

— Hei! — Disse o homem, com a típica voz dos cães que ladram nos mares — Oberom! Baludam! Eu sabia que precisariam de uma mão! Vamos, entrem, entrem! Não podemos segurar estes patifes corrompidos para a eternidade! — Disse ele, gesticulando para o pequenino bote preso na areia.

Todos embarcaram apressadamente. Prepararam-se para remar, mas mais soldados corrompidos desbravaram a mata. Eram muitos, não conseguiriam trabalhar ao ofício do remo e se defender ao mesmo tempo. Temendo que o pior acontecesse, Baludam apressou-se em agir. Transmutou-se em gigantesca criatura alada, um agigantado corvo negro e espinhento, carregou Senidêssa, Oberom e Aenir em suas garras e o restante em seu enorme bico. Agitou as asas, tomou impulso e lançou-se aos céus, deixando o perigo para trás.

O vento forte do voo de Baludam batia no rosto do homem de veludo vermelho e lhe enovelava as barbas no rosto — pássaro infernal! Vá para o Leste, criatura alada infeliz, e deixe-me em minha nau! — E assim Baludam fez. Alçou-se para o Leste e, imediatamente, avistou familiar e gigantesca nau. Com um voo rasante e preciso, lançou todos à madeira do casco e, por fim, embarcou, novamente como o franzino e grisalho homenzinho que era.  

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¹Plano: o mundo em que se passa a história é um gigantesco planisfério que paira no universo. Durante a obra é referido como "Plano" ou "O Grande Plano".

²A Lei: isto será melhor explorado e explicado no decorrer da obra, mais precisamente no capítulo XII e com riqueza de detalhes no capítulo XXXVI. 

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