Capítulo XII: A Deidade da Música

98 12 0
                                    

    Ao cair da noite, prepararam-se para a hora do recolhimento. Oberom fez-se hóspede aos aposentos da imediata. Desde os galanteios da festa, Lia e Oberom passaram a partilhar o leito, embora raramente se falassem durante o decorrer do dia. Em parte pelos afazeres de imediata de Lia, e também pelas longas conversas de Oberom com Barbar Cavanha, que não só colocavam o assunto em dia, como também discutiam, ocasionalmente, acerca da melhor forma de se guiar o navio.

    Baludam, como de seu feitio, recusava com veemência camas e cobertores. Tentaram ainda oferecer-lhe uma rede no aposento compartilhado da tripulação, mas também recusou. Suas noites eram todas passadas ao relento, e a cada dia uma nova forma surpreendia a tripulação. Embora demonstrasse preferência pelo habitual pássaro pequenino e negro, aquela noite mostrava-se demasiadamente fria para seu tato. Pensou fazer-se em criatura marinha, sabia que algumas não tinham a capacidade de sentir frio, entretanto, Barbar Cavanha o proibiu, por motivos grandes demais para o entendimento de Baludam. Contentou-se então com a quente e espessa pelagem de um enorme urso, o que causou ainda mais espanto na tripulação.

    Senidêssa preparou-se para os rituais que precediam seu sono, rumando para seus aposentos e fechando a porta. Deixou seu cajado recostado em um canto e retirou as leves sedas brancas que a acompanhavam desde a fuga da ilha. Mantivera-as limpas com seus dons purificadores, e mesmo sabendo estas serem de fina costura, ainda sentia-se incomodar pelo uso de vestes. Roupas a incomodavam, estava nua em seu despertar e, se pudesse, assim permaneceria pelo resto de seus dias.

    Deitou-se na cama e sentiu seus músculos e ossos relaxarem. Fechou os olhos e respirou fundo. Procurou sentir o redor de seu quarto. Sentia a escuridão que contrastava com as luzes dos lampiões no convés, e as memórias ali contidas. Aquela madeira era velha, e suas histórias eram antigas e desconhecidas.

    Ouvira certa vez em uma das conversas de Oberom e Barbar Cavanha acerca do dia que encontraram aquela grande nau. A ocasião ocorreu há muito tempo, antes mesmo de Oiváter ascender ao trono do reino. Fora uma aventura e tanto, passada naqueles tempos em que Oberom viajara os mares com Baludam e Barbar Cavanha. Gostaria de tê-los acompanhado naquela simplicidade, quando a vida resumia-se ao encontro diário com o desconhecido.

    Expandiu sua percepção e sentiu Baludam repousando no convés. Suas vibrações estavam intensas e desordeiras, ao que tudo parecia, um pesadelo lhe incomodava o sono. Seria gentil de sua parte acalmar a mente do amigo, mas as memórias insondáveis que aquele ser de existência tão alheia à sua carregava lhe instigaram ao receio. Resolveu deixá-lo em paz.

    Visitou o sono de Oberom e apercebeu-se das intensas trocas que se faziam naqueles lençóis. Respeitando a privacidade de seu amigo, retirou sua consciência daquele lugar. Visitou também Barbar Cavanha, e surpreendeu-se com a profundidade de seu sono. Ressonava de maneira tranquila e pausada, de forma que nem mesmo sonhos ou pesadelos se formavam em sua mente.

    De forma velada e escusa, deixou sua mente vagar até os altos da grande nau, e lá localizou Aenir. Pobre rapaz, seu coração se enternecia ao presenciar a inquietude da alma de seu antigo príncipe. Nem mesmo um pequeno resquício de paz havia em seu interior, e o seu sono inquieto lhe remetia à imagens que Senidêssa não ousava se aperceber.

    Gostaria que seus dons fossem suficientes para apaziguar Aenir para o resto de sua vida, mas estaria sendo desonesta com a própria realidade se o fizesse sentir uma paz que não era verdadeira, mas sim induzida. Todas as noites, sem falhar, tocava a mente dele com seu poder e purificava seus pesadelos, fazendo-o esquecer, pelo menos durante o sono, dos desastres que lhe haviam acometido. Permitiu que sua presença atingisse o homem, e remeteu-o às lembranças que lhe eram as mais felizes. Ficou surpresa ao ver entre elas um pequenino menino sentado no colo da Grã Sacerdotisa, que sorridentemente ouvia a voz doce dela a lhe ensinar a contar as estrelas e ler as ondas.

InícioOnde histórias criam vida. Descubra agora