Capítulo XIII: Batalha no Convés

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(in memoriam de Márcio Guimarães Aguiar)

     A tripulação encontrava-se com suas navalhas em punho, lutando dificultosamente contra manchas obscuras que invadiam o convés. O ar cheirava a pólvora queimada, e vez ou outra, a zuada das lâminas era sobreposta pelos disparos dos canhões e garruchas.

    Apesar da cena que se abria à sua frente, Senidêssa, como era de seu feitio, mateve-se calma e astutamente definiu prioridades. Tinha plena certeza de que Oberom e Baludam sabiam se cuidar, entretanto, o mesmo não poderia ser dito de Aenir. Teria saído à sua procura, até que avistou seu antigo príncipe lutando bravamente com sua lâmina. Embora três das criaturas o atacassem, Aenir desviava de seus golpes, investindo contra eles com fortes estocadas. Dentro em pouco os derrotou e prostrou-se diante de Senidêssa, falando em tom urgente.

- Senidêssa, vá ajudar Oberom. Ele está ao nível do timão. Não temos tempo para explicações, apenas vá!

    A sacerdotisa alva cruzou então o navio, rumando para os degraus que a levariam onde Oberom se encontrava. Como uma pena que flutua ao sabor do vento, Senidêssa deslizou pelas tábuas amadeiradas da grande nau. Apenas uma vez em sua vida fora obrigada a usar seus dons para a batalha, e isto há séculos atrás, quando unificou as crenças de seu caído reino.

    Decidiu que lutaria aquela batalha da forma que lhe convinha, e conforme atravessava os corredores de brados doídos e metal se batendo, concentrou-se em curar as feridas de quem quer que fosse que se aproximasse. Cada tripulante que cingia seu caminho era tocado e curado de suas chagas. Focou-se neste exercício: caminhar até Oberom e curar. Seu poder a transcendia, e apesar de já esperar, não conseguiu deixar de se surpreender com o contato de sua energia à mente dos feridos. Cada lanho em suas peles não trazia apenas ardência e dor, mas os remetiam a lembranças que muito refletiam seu interior. Eram suas famílias, esperando com caldo quente à mesa e os filhos felizes e infantes brincando em diversão alegre ao os rodear. Haviam também nítidas imagens de cidades natais, tão longínquas e diferentes umas das outras, cores e céus brilhantes em infindas auroras e crepúsculos. Havia também a última vez que visitara a terra firme, a lembrança dos pés em um punhado de chão que, havia certeza, não balançaria e não retumbaria com os sabores do mar. E havia também outros poucos que já há muito sabiam ser aquela nau flutuante o seu porto seguro, sua casa e único e inegável lar. Fariam de tudo para defendê-la, pois não havia maior honra em seus corações do que derramar sangue, seu ou de seus inimigos, para a defesa do templo que os acolheu sem perguntas e com amor.

    Eis que acidentalmente, enquanto procurava fechar o lanho sangrento no braço de uma maruja, Senidêssa tropeçou e atingiu uma das criaturas com o seu poder. Ao toque, a sacerdotisa alva gritou com força e em pulmões plenos, ao passo que a criatura sombria agitou-se em ganidos medonhos. O ser esperneou, gritou e guinchou sua dor, agonizando com o poder daquela mulher alva. Dentro em pouco, fora reduzido à uma massa desforme e borbulhante no chão, deixando à mostra seus órgãos internos, putrefatos e fedegosos.

    Nunca algo houvera respondido com tamanha intensidade aos seus poderes de purificação, e naquele momento, ao ter uma mostra do teor da criatura que acidentalmente expurgara, relutantemente percebeu a natureza daquele ataque. Aqueles seres obscuros, monstruosidades disformes e mal feitas, com espinhos nas costas e olhos vermelhos de íris negras. A mão de Fatäe repousava ali.

    Recompôs-se e apertou o passo. Finalmente chegou nas escadas e subiu o pequeno desnível que separava o andar do timão do piso do convés. Lá estava Barbar Cavanha e Oberom, lutando lado a lado, cada qual a seu modo. O capitão da nau balançava sua lâmina no ar, perfurando apêndices e jugulares, ao passo que sua garrucha explodia em fagulhas e pólvora. Oberom, por sua vez, sustentava orbes de luz em suas mãos, disparando-os em rajadas de energia contra as criaturas que se aproximavam.

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