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Certo dia pedi ao Samuel que contasse como eram as aulas, os professores, se ele estudava, enfim. Ele se entusiasmou e me disse que ele gostava muito de estudar. Contou das boas notas que tirava e que pensava em fazer faculdade e ser doutor. Falou de uns capítulos que caíram no vestibular. Vestibular? Aquilo me soou muito estranho. Na minha turma, não se falava disso. Era só zoação! Falava-se das minas, do veado, do brau, do cara que apanhou ou bateu, das bebidas e dos pequenos. Vivia-se programando qual seria a próxima gandaia. Até o futebol perdeu o encanto. Tudo era bagunça!

Vez ou outra, "emprestávamos" uma moto para dar umas voltas. Mas sempre tínhamos o cuidado de buscar a moto noutro bairro. E depois de andarmos bastante, abandonávamos o bagulho em algum lugar distante. O cuidado era não dar sorte ao azar. O perigo era vacilar. Depois, descobrimos que dava para clonar umas placas.

-Escuta, como essa moto veio parar aqui no quintal de casa? Perguntava minha mãe, vez ou outra, com aquele ar de desconfiada.
-Não enche, mãe. É de um mano meu. Emprestei, mas já vou devolver. - Ela fingia acreditar e ficava por isso mesmo. Na prática, acho que as pessoas tinham medo, mas ninguém gostava da nossa turma. Eu notava que as pessoas me olhavam receosas e desconfiadas. Eu fazia de conta que não notava, mas enxergava tudo.

*

Aos quinze anos, tive um grande susto. Combinamos ir a uma festa, uma espécie de show de artistas regionais. Desses que acontecem em parques públicos. Foi o Pitbull quem convocou a galera. Combinamos o local do encontro. Todo mundo apareceu, não faltou ninguém. Então, o Pitbull descreveu um plano.

- É o seguinte galera : tem uns brogoiós pegando as "minas" da nossa área. É por isso que nossa moral não pega ninguém. Vamos dar um mix na festa e mostrar quem manda aqui, tá ligado? - O plano era disfarçadamente cercá-los e, sob um sinal, a gente cair de pau em cima deles. Bebemos antes de ir, para ficamos mais corajosos, e fomos. O Pitbull, com seu canivete, e alguns outros maiores também tinham soco-inglês e estiletes. Um cara tinha uma corrente. Fomos ao show e aos poucos identificamos nossas vítimas. Nem vi nada das apresentações. Sob um sinal do Pitbull, atacamos.

Foi um corre-corre danado! Arranquei um pedaço de madeira que protegia uma planta. Cheguei por trás de um carinha e mandei com toda força na cabeça do sujeito. Vi o sangue jorrar e o cara desabar. Senti-me um máximo!

Bati, apanhei. Mas, no final, estava todo ensanguentado. Lá pelas tantas, me vi sozinho e comecei a correr para uma direção que eu nem sabia qual era. Quando parei, vi que estava longe e num lugar estranho, sozinho. A maior roubada! Achei uma torneira na rua e me lavei. Tirei a camiseta toda suja e rasgada, a lavei e tornei a vestir. Depois de um tempo, fui chegando na nossa vila e tinha algo estranho. Muitos carros de polícia andavam de um lado para outro. Fiquei me esgueirando, até que vi dois companheiros apavorados.

-Que foi, pessoal?
-Deram um teco no Pitbull!
-O quê?! - não acreditei. Tinham matado o Pitbull! Logo ele! O mais corajoso, o mais destemido. Foi aí que percebi que ninguém dos nossos tinha uma arma de verdade. Fiquei apavorado, mas disse que íamos nos vingar, que era só questão de tempo. Fui para casa e nessa noite não dormi. Só pensava em como conseguir uma arma.

Não contei nada para minha mãe, mas pelo meio-dia do outro dia, ela veio com quatro pedras nas mãos.

-E aí? Você não tem nada para me contar? Agora você viu seu futuro? Viu o que acontece com valentões? Cadê o cara agora? - Tinham contado a ela do acontecimento. Isso tudo foi aos berros. Não falei uma palavra. Mas quando ela se aproximou, dei-lhe um safanão. Ela se estatelou contra a parede. Vi seus olhos arregalados. Ficamos todos os dois calados. Entrei no quarto, cobri a cabeça e dormi.

*

Na escola, o clima ficou sinistro. Todos os professores tiraram uma casquinha, todos bateram o mesmo lero. Eu não escutava ninguém. Tinha uma ideia fixa. Achava que ninguém entendia nada, que eram todos chinelões. Depois, descobrir que o Pitbull tinha um berro. Pois não é que tomaram o revólver do Pitbull e o mataram? E ainda o furaram com o próprio canivete? Fiquei abismado! Como é que tinha acontecido aquilo?

Ninguém comentava nada comigo, mas eu via as pessoas cochichando quando eu passava. Aos poucos fui substituindo o Pitbull. Arrumei até um canivete parecido com o dele, como se fosse um tributo pelo legado. Mas não conseguia esquecer que ele foi morto com a própria arma e que nem sequer um revólver resolveu.

ToscoOnde histórias criam vida. Descubra agora