Passado algum tempo, encontrei meu amigo Samuel. Ele me olhou meio de longe. Conversamos banalidades e combinamos de nós encontrar na formatura do ensino fundamental.
-A gente se vê na formatura!
-Tô ligado. Pode crê. - Mas eu não fui. No fundo, eu sabia que não merecia aquele diploma. Não tinha nenhuma sensação de conquista. Fui para a lan house onde eu tinha entrada franca. Tinha um acerto com o dono. Era um lugar de encontro dos chegados. Eu ficava lá, olhando sacanagem. Depois, ficava postando no chat coisas que quase nunca eram verdade. Ou jogando, que o que mais se fazia. Aí eu ficava horas sem ver o tempo passar.*
Minha mãe veio com uma conversa de que eu precisava trabalhar. Trampo?! Senti o drama. Ninguém me daria emprego. Todos comentavam da minha fama de indisciplinado e metido.
Passando pelo mercadinho perto de casa, avistei o Samuel vestido o uniforme. Entrei. Precisava trocar uma ideia com ele sobre trampo.
-Não é que o cara me chamou porque disse que eu sou boa praça? - gabou-se o Samuel. Na hora, rimos. Mas era verdade, ele era gente boa. Mas fiquei bolado. Nem sequer me despedi do Samuel, de raiva. Tive vontade de bater nele. Mas era verdade! Ele tinha por merecer, e eu também, só que noutra banda.
Eu já era formado em vadiagem. Minha mãe me sustentava e eu nunca soube de onde vinha o dinheiro. Minhas roupas eram surradas. Mas vez ou outra ela aparecia com uma peça nova. O pisante, fazia tempo que eu arrumava do meu jeito. Quase sempre junto com o boné. O celular "comprei" de um trambiqueiro da vila. Fazia uns rolos e ganhava algum. Mas trabalhar?
Ou estava na rua, ou trancado no meu quarto. Era o melhor lugar da minha vida. Minha casa era dessas pequenas, composta por uma sala, cozinha, um banheiro, dois quartos, uma cobertura de Eternit, onde minha mãe lavava roupa. As calçadas eram todas rachadas. Não tinha nenhuma árvore no quintal nem no passeio. Era comum o mato tomar conta. Também não tinha grama. Ela tinha sido pintada de branco, mas nunca mais recebeu nenhuma tinta. As paredes internas eram riscadas e sujas. O banheiro não tinha box e a torneira sempre vazava. Tinha gato na água e na energia elétrica. Eu sempre achava que ela tinha aparência de abandonada. Não havia nenhum sinal de vida.
*
Um dia, uma professora festejava seu aniversário. Combinamos o presente e fui escolhido, por unanimidade, para entregá-lo. Em meio a um superanimado "parabéns a você", me aproximei com um belo e grande pacote. Logicamente a professora ficou surpresa e começou a se emocionar. Provavelmente mil coisas passaram pela cabeça dela.
-Professora, pensamos em um presente que demonstrasse o nosso sentimento pela senhora. Então, fizemos uma vaquinha e compramos este presente, que esperamos seja de grande serventia. - A sala ficou em silêncio. A professora agradeceu e abriu o presente. Era uma vassoura! Ela ficou desconcertada e a turma inteira comemorou. Depois, meio constrangidos, alguns puxa-sacos tentaram remediar.
-Desculpa aí, professora. Foi só uma brincadeirinha! - alguns babacas se atreveram.
No intervalo, todos nos divertimos com a cena. O acontecimento se espalhou pela escola inteira. Alguns imitavam a professora.
-Vocês viram a cara dela? - comentávamos, animados, e o alvoroço era grande.
-E os olhos! Cara, eu achei que eles saltariam fora da cara da bruxa! - comenta outro, animado.*
-Chame sua mãe e passe na secretaria da escola - disse a diretora séria, mas tranquila. Claro que eu não falei nada a minha mãe, mas no outro dia ela apareceu por lá. Foi preciso que eu trocasse de escola. Ninguém queria me aceitar. Mas a escola era meu palco, eu não poderia ficar sem frequentá-la. E depois eu estava justificado, eu era estudante.
-Não enche, mãe. Eu vou arrumar uma escola. Pode deixar.
-Você vai arrumar uma escola? Pago pra ver. De que jeito? - Então, fui falar com um cara que era líder comunitário. Fizemos um acordo : eu trabalharia nas eleições fazendo minha turma votar nele e ele conseguiria que eu entrasse na escola. Resolvido. Fácil. Nunca mais vi o sujeito. Mas entendi depois que ele ajudou sim, mas os professores da escola onde eu estudava.Na nova escola, tratei de circunscrever minha ação fora da sala de aula. Quase sempre eu dormia no fundo da sala. Alguns professores ousaram me chamar a atenção. Eu não respondia, apenas lançava um olhar de ódio e estava resolvido. Essa era uma boa estratégia. Assim, os professores não me importunavam e eu ficava na minha.
Nos intervalos, eu entrava em ação. Eu era o aviãozinho. Logo me enturmei. Eu andava pelos corredores como se estivesse sendo escoltado. Ninguém se mentia comigo nem com os da turma. Íamos direto para trás da escola onde podíamos fumar à vontade. Ninguém aparecia por lá. Era lá também o matadouro : levávamos as periguetes e mocreias para lá, naquele esquema brabo, meio na marra e pronto. Quando alguém diferente aparecia, era só ordenar : - Vaza daqui. Logo só aparecia os da diretoria. Ninguém ousava se meter por lá. Nem os inspetores. Era um combinado sem combinar. Mas parecia melhor assim para todo mundo.
*
O Samuel também estudava lá. Tinha trocado de namorada, mas estava namorando firme de novo. E a menina era a mais bonita da escola. E o desgraçado continuava ainda bem vestido. E era amigo de todo mundo. O dele era outro esquema, e parecia funcionar mais. Dei-me conta de que o Samuel era mais vivo do que pensava. No fundo, ele quem sabia das coisas. Mas a essa altura parecia que eu precisava manter a fama que eu mesmo tinha construído. O meu orgulho era ser mau. Como eu iria abrir mão disso?
Eu estava bem mais calmo. Pudera, estava comendo maconha com farinha. Parece que nada mais importava. E a droga? Era simples. Um cara me entregava na rua, eu distribuía na escola e sobrava o meu e mais algum troco.
Acontece que minha dívida aumentou tanto que eu não tive escolha. Não era fácil conseguir grana todo dia. Então, à noite, eu fazia uns extras. Eu não faltava a nenhuma festa sequer. Dava um jeito de entrar e trampava. Fiquei conhecido por ser aviãozinho. Era só bater um fio e eu já estava lá com o bagulho.
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Tosco
Teen FictionUm jovem comum, reflexo de tantos outros empenhados em viver ou, muitas vezes, apenas sobreviver. De forma simples e direta, Tosco reflete sobre a condução da própria vida. Faz uma leitura de algumas razões afetivas envolvidas em seus comportamento...