Dentro de mim

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Berenice ficou desacordada por mais de meia hora. A mesma mulher que a pouco tempo agia como um demônio, segurava uma xícara de chá com as duas mãos tremulas. Seus olhos concentravam-se no monte de carniça formada pelo que já foi seu animal de estimação.

— E agora? — Arriscou Sara, rompendo o silêncio constrangedor.

Berenice serrou os olhos e os mirou em Sara, com ódio tão evidente que suas rugas foram esmagadas por sua expressão sisuda — Saiam daqui.

Sara olhou para mim, enquanto agitava a filha nos braços e se voltou para Berenice — Mas o círculo foi...

Sara foi brutalmente interrompida pelo grito da Berenice — SAIA AGORA MESMO DA MINHA CASA!

Nós duas saímos daquela casa e fomos direto para o carro, sem despedida. Fiquei em transe, não consegui reagir a nada, apenas entrei no carro e esperei. Sara se demorava em frente à casa, encarando Berenice. As duas encaravam-se, ambas com pesar. Despediram-se sem pronunciar nenhuma palavra.

Esperei a casa sair da vista através do retrovisor para insistir na pergunta — O que foi aquilo?

Sara olhou pelo retrovisor e comentou — O começo só tem sentido, o fim.

Sentada no banco de trás, ao lado da Alice, me estiquei, colocando meio corpo entre os bancos dianteiros e puxei o freio de mão — Chega de frases enigmáticas! Acabei de ver uma mulher se transformar em um demônio e vir para cima de mim como um zumbi do inferno, além de trazer algum monstro a vida através dos restos daquele cachorro. Que porra é essa? Porque você me trouxe aqui, Sara?

A esposa do meu pai estava com as duas mãos apoiadas sobre o volante, com a cabeça baixa — Tudo bem, vou te contar. — Apoiei um braço no painel, o outro no banco e passei o restante do corpo para o banco da frente. Ela prosseguiu — Tudo começou a uns três anos...

— Quando você conheceu o papai?

— Sim, no dia em que fui a sua casa pela primeira vez senti a presença de alguma coisa dentro de você.

Bati a mão no painel — Como assim, sentiu a presença de que? Você é algum tipo de bruxa ou coisa do tipo?

Sara coçou a cabeça — Isso importa?

Recostei ao banco — O que você sentiu?

Sara ajeitou o espelho para ver a pequena Alice. Ligou o carro e continuou a falar — Existe uma fonte única de toda energia... Porém, entre a fonte primária e as coisas que conseguimos enxergar e tocar, existe um universo de coisas que não podemos compreender. — Olhou para mim — Essa coisa que tentou se materializar usando os restos daquele cachorro como recipiente veio desse lugar — Voltou-se para estrada — No começo, achei que fosse só um demônio artificial. Uma influência negativa sem muita importância, mas depois percebi que era uma entidade própria.

Olhei preocupada — Um demônio?

Ela balançou a cabeça — Não posso afirmar com certeza, mas o que posso dizer é que aquela manifestação é de um recipiente para abrigar um espírito expulso.

— Manifestação? Aquela coisa virou uma cabeça e estava ganhando a forma de um corpo inteiro.

Aquilo é a representação do que os antigos chamam de vaso.

— Um vaso para que?

— Para abrigar uma entidade que não pertence a esse mundo

— E essa coisa está dentro de mim?

Sara abaixou a cabeça — É um hospedeiro parasita. No começo, essa entidade influencia o corpo abrigo e com o tempo assume a consciência, com suas memórias e dominando seu espírito, assumindo sua identidade e a própria vida do corpo que o abriga. Uma energia como essa não pode surgir em todas as pessoas. Não sabemos quem foi o primeiro a descobrir essa entidade, mas desde sua primeira aparição não temos notícias de alguém que tenha conseguido se libertar dela. Aos poucos o hospedeiro assume a identidade de seu corpo abrigo.

— Como assim, sabemos? Você faz parte de alguma sociedade secreta que trabalha com essas forças sobrenaturais?

— É uma longa história. — ela olhou com pesar, derretendo as sobrancelhas — Ele te escolheu como abrigo por algum motivo, você precisa entender o que essa manifestação quer com você.

Segurei em seu braço — Está dizendo que aquela coisa está me acompanhando e tentando assumir a minha vida. — Recostei ao banco, com os olhos lacrimosos e rejeitando com a cabeça — E esse negócio que vocês fizeram lá naquela casa? Isso tudo foi para expulsá-lo. Essa coisa sumiu, não foi?

Sara jogou o cabelo para trás — O que tentamos fazer foi um ritual para evocar suas forças e tentar se comunicar com ele, descobrir o que ele queria. Porém, subestimamos a influência dessa manifestação. Sua força foi superior à experiência de Berenice e parte da energia dessa coisa a controlou, a fim de resistir e permanecer no seu corpo. A resistência de Berenice fez com que sua força, mesmo sem sair do corpo a dominasse como um boneco.

— Mas e agora?

— Você precisa manter o silêncio, pelo menos até descobrirmos o que fazer. 

A Imperatriz de LevronOnde histórias criam vida. Descubra agora