Berenice e Sara levantaram do sofá de forma brusca. Ambas agiam com muita rapidez, sem disfarçarem o nervosismo. Enquanto Sara arrastava a mesa e os sofás para o canto da sala para liberar um espaço livre no centro da casa, Berenice correu para outro cômodo e voltou rapidamente com um jarro de barro. A velha retirou um punhado de pó branco de dentro do jarro e contornou um circulo no chão.
— O que é isso? — questionei, referindo-me ao pó que formava o grande círculo desenhado no chão.
— É sal — respondeu Sara.
— Agora, ponha ela dentro da proteção — ordenou Berenice, formando quatro punhados de sal espaçados com distâncias equivalentes dentro do circulo.
Sara agarrou meu braço e me puxou até o centro do círculo de sal e voltou ao carrinho da sua filha, como se tentasse protege-la de mim. Mesmo com ela verbalizando — Fique tranquila, não vai acontecer nada —, pude sentir a insegurança transcrita no tom tremulo de sua voz.
Permaneci quieta, no centro do círculo, atônita por causa daquela mudança brusca de atitudes em ambas. Berenice surgiu com um tronco em brasa, murmurando palavras irreconhecíveis e ao mesmo tempo soprava a fumaça da brasa sobre mim. Soprou fumaça nos braços, nas pernas, nas costas e no peito.
Olhei para Sara, buscando alguma explicação, mas ela se apresentava tão apreensiva quanto eu. Foi o estopim para meu desespero, o que aquelas mulheres estavam fazendo comigo?
Berenice, fora do círculo, ficou próxima a um dos punhados de sal, de frente para mim, então expos o antebraço esquerdo e esticou o braço direito em minha direção com mão aberta com o dedo anelar e o indicador apontando para cima enquanto o médio e o mindinho estavam direcionados para baixo. Então a velha gritou — Iah Veh — Caminhou no sentido anti-horário para o próximo punhado, fez a mesma sequencia de gestos e gritou — Adonai — Seguiu para o próximo punhado, a mesma sequencia de gestos e gritou — Eheieh — Já no ultimo punhado e ultima sequência, gritou — Agla — Assim que pronunciou a ultima palavra, Berenice começou a gemer, como se fosse acometida por uma dor súbita.
Olhei para Sara, que acabara de levar a mão a cabeça, e perguntei — O que está acontecendo? — ela não respondia, estava concentrada em Berenice. Mantendo a mão fechada, Sara cobria o carrinho da Alice com as costas, visivelmente transtornada. Agia como se quisesse ajudar a velha, mas não queria deixar a Alice sozinha.
Berenice começou a sacudir o corpo, como se estivesse em um tipo de transe. O silêncio perdia seu reinado pelo sons esquisitos do farfalhar produzido pelo movimentos e gemidos trêmulos daquela velha.
Sem saber o que fazer, caminhei para fora do círculo, mas Sara gritou — Não saia do circulo! Não importa o que aconteça ou o quão estranho possa parecer, não saia do círculo.
Obedeci Sara, voltei ao centro.
De repente, Berenice começou a gritar de forma estridente, vociferando palavras que nem mesmo conseguiria reproduzir. Saltei assustada, levando as mãos ao peito. Olhei para Sara e supliquei — Eu vou sair. — com o rosto derretido e o olhar lacrimoso, ela balançou negativamente a cabeça em resposta. Os gritos daquela mulher deram lugar a grunhidos graves, ao mesmo tempo que encurvava o corpo em minha direção. A velha me olhava inclinando a cabeça para frente, tentando, sem sucesso, ultrapassar a linha de sal desenhada a minha volta. O cabelo bagunçado e os olhos esbranquiçados oferecia a ela uma aparência repugnante. Então, ela estendeu os braços, redentor.
— Eu quero sair daqui, me tira daqui? — Sussurrei, olhando para Sara que assistia a tudo sem tirar os olhos daquela velha demonizada.
O cão começou a latir incessantemente. O animal estava agitado, pulava em volta do círculo, rosnava para mim, latia e latia. O animal falava comigo, pedia para que parasse com o que estava fazendo, pude sentir suas intenções com naturalidade. Então a sua dona, movendo-se como uma figura de gesso em stop motion estendeu a mão em direção ao seu cão. A face daquela mulher demonizada estava inerte, não movia nenhum musculo do rosto, agia como uma marionete sem cordas. O cão se aproximou da dona, ressabiado, olhando-a de baixo para cima, aproximando-se vagarosamente. Observávamos com aflição para aquela estranha reação do lobo, choroso. Já bem próximo da dona, o animal esticou o focinho até a mão de sua senhora. Subitamente, o cão começou a rosnar, ele sabia que aquela mulher não era mais a sua dona. A velha o agarrou o cão com força e, com uma velocidade e força não condizente ao seu velho corpo, segurou o animal pela nuca e o jogou longe. Ouvi o choro do pobre animal ser interrompido bruscamente pelo impacto contra a parede. Sara correu até o cachorro sem coragem de tocá-lo. O animal estava morto.
A mulher voltou-se para mim, murmurando em uma língua estranha, com a voz rouca. Sara levantou e se aproximou da amiga possuída, mas provavelmente lembrou do que aconteceu com o cachorro, então parou e começou a olhar em volta.
Comecei a chorar, de soluçar. A única coisa que conseguia pensar é Não saia do círculo!
A única coisa audível eram meu choro e os murmúrios da mulher possuída. Porém, logo comecei a ouvir estalos secos, como sons de ossos quebrando. Olhei para o cão e percebi; não dava para aguentar ficar dentro daquela merda de círculo.
— Puta que o pariu, me tira daqui Sara, me tira daqui! — Gritei em vão, pois Sara estava fazendo sei lá o que com o pé da mesa e parecia não me ouvir. Serrei os punhos e gritei com a mulher — Me deixa em paz, sua louca!
Os sons de ossos ficaram ainda mais altos e sucessivos, vinham do cachorro moribundo, sua pele abriu ao meio, rasgada por forças invisíveis. O sangue escorria livremente formando uma poça circular. O animal tornara-se um amontoado de carne retorcido e movediço. Era possível ver seus órgãos se misturando entre ossos esmigalhados, músculos dilacerados e pelugem ensanguentada. Aquela carne moída se movimentava sem qualquer estimulo visível, emoldurando pouco a pouco o que parecia um rosto, uma face monstruosa com chifres.
A pequena Alice começou a chorar também, deixando toda a situação ainda mais perturbadora. Os sons de choro da criança, os murmúrios incessantes da velha possuída e os meus soluços produziram uma trilha aterrorizante.
Olhei para Sara. Ela estava usando um dos pés da mesa que ela mesmo havia retirado para riscar sua superfície de madeira, formando algum tipo de símbolo triangular com ranhuras insistentes que pareciam representar formas de um grande triangulo tribal. Eu gritei por seu nome, mais de três vezes seguidas, mas ela permanecia concentrada na mesa, girando e apoiando o objeto entre as mãos, com visível cuidado para deixar o símbolo desenhado numa direção específica.
A face formada pelo amontoado orgânico que já foi um cão transformava-se em uma cabeça inteira com parte de um ombro, estava se transmutando nalgum monstro humanoide, membro por membro. Cheguei no meu limite, que se dane a porra do circulo! Corri em direção à porta.
Sara gritou — NÃO!
Ao ouvir o grito desesperado da Sara, olhei para trás. Tropecei e, caída no chão, pude ver aquela velha possuída correndo em minha direção. Com os cabelos desgrenhados e os olhos esbranquiçados fixos em meu pescoço.
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A Imperatriz de Levron
Mistero / ThrillerTudo começou quando minha alma ainda pertencia a um corpo humano, em um tempo onde humanos podiam ter outros humanos como propriedade. Caminhei do inferno ao paraíso, ainda em vida. Após morrer, fui condenada ao inferno. Mas Lúcifer, o príncipe da l...