Mochila da Capricho

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Fui incisiva — Isso não é meu! —, mas minha relutância não foi suficiente para impedir que as lágrimas escorressem pelo meu rosto.

Meu pai arrastou a mão sobre a cabeça — Não minta para mim.

Berrei — Não vou conversar na frente dela! — apontei para Sara. Porém a mulher permanecia ignorante a tudo, mantendo a cabeça baixa.

— Você não tem que escolher nada, ela é parte da família e vai ficar.

Fiquei paralisada e engoli seco, sem coragem de pronunciar qualquer palavra. Não havia mais como esconder que aquela droga era minha.

Sara aproveitou de minha posição retraída e continuou o discurso do meu pai — Hannah, você tem um futuro inteiro pela frente. — a voz suave carregava a petulância da maioria das pessoas com mais de trinta anos. Cheia de si, prosseguiu o sermão — Está bem encaminhada, mas precisa ouvir o seu pai. Pelo menos enquanto há tempo para concertar tudo isso. Ele só está tentando te ajudar.

Levantei e corri da cozinha. Meu pai gritou alguns palavrões e me chamou. Não voltei, subi as escadas e tranquei-me no quarto.

À noite ouvi meu pai bater a porta, mas não tive coragem de abri-la, permaneci quieta e trancada. Passei a pensar em muitas coisas aleatórias, a maioria delas incluía fugir de casa. Durante a madrugada, preparei uma muda de roupas, somente o que coubesse em uma mochila rosa da Capricho. A mala de viajem estava lá embaixo e eu não arriscaria descer, pois para isso teria de encarar meu pai novamente.

Subitamente, um estrondo invadiu o ambiente, um estalado alto que veio da janela. Tomei um susto ao ver aquela silhueta masculina na cortina. Mas fiquei aliviada ao reconhecer o rosto do papai desvelado da cortina por um sopro de ar gelado e o questionei — Você é louco, como subiu aqui?

O velho tossiu um sorriso — Não seja tão dissimulada, sei que você usa essa tubulação da calha para descer e subir no seu quarto desde pequena — então se sentou na cama com o corpo encurvado, visivelmente cansado — Pensa que não vi você descer para se encontrar com aquele tal "Otário" durante as férias?

— O nome dele era Otávio, pai — serrei os lábios — Isso não é legal, você não pode desrespeitar meus namorados.

— Vou fingir que não ouvi você dizer namorado no plural.

Esbocei um sorriso — Que seja — cruzei os braços e apoiei o corpo no travesseiro, á cabeceira da cama.

Nós precisamos conversar... — antes de prosseguir, ele olhou para a mochila estufada e também para o guarda roupa aberto e interrompeu o próprio discurso — É sério, você ia fugir? — seu rosto amargo intimidou minhas esperanças de paz.

Abaixei a cabeça, envergonhada — Não sou a filha que você sonhou pai.

O velho fisgou o lábio — Eu nunca sonhei com filha alguma, apenas segui meu caminho e, de repente, Deus fez esse pequeno milagre. Sei que logo voltaremos a frequentar a igreja juntos e...

— Não, não pai! — empunhei o dedo indicador contra seu rosto — É disso que estou falando. Acho que não quero mais ser a menina legal do papai que vai para a igreja e casa com o bom moço que adora jogar bola com o sogrão.

Ele ofereceu um olhar complacente e sorriu — Então é isso?

— É isso o que?

Ele segurou minhas mãos — Eu lutei tanto para fazer você se sentir especial, principalmente depois que... que... — ele ia falar da mamãe — Quero dizer, você deve estar se sentindo pressionada, com medo de não alcançar minhas expectativas.

— Não sei nada sobre esse papo psicanalítico de alcançar expectativas, mas concordo quando fala de medo?

— E do que tem medo, Hanna?

— Não sei bem, pai — mantive um olhar perdido, na direção da janela, sentindo a brisa fria alisar meu rosto — A sensação que tenho é que não estou vivendo a minha vida. Como se estivesse presa a alguma coisa.

— A verdadeira liberdade exige maturidade, querida. É preciso ter consciência das consequências de suas escolhas, isso assusta qualquer um que tenha o mínimo de discernimento do mundo a sua volta. É completamente compreensível.

— Não concordo, pai. A liberdade não precisa de maturidade, nem consciência, mas sim de coragem. O medo das consequências é conformismo, um disfarce chamado razão e civilidade, que nos impede de sermos nós mesmos.

— Isso que está falando não é liberdade, é desejo, o grande senhor de todas as ilusões. — coçou a cabeça — Você se lembra do peixinho laranja que comprei para você no seu aniversário de 10 anos?

— Claro que lembro, aquele peixe era suicida. Vivia pulando para fora, até o dia que esqueci a tampa do aquário aberta antes de dormir. No dia seguinte, chorei tanto. Me culpei tanto pelo o que aconteceu com o peixinho. É, talvez aquele peixe tivesse coragem, mas não tinha consciência.

— Por tanto, não era livre, era vitima de seus impulsos. Não existe coragem sem consciência, temos de conhecer os riscos e os benefícios de cada escolha. Papai balançou suavemente a cabeça como se negasse algo que não tivesse a certeza de compreender. Então ofereceu um sorriso, com os olhos lacrimados — Só quero que saiba que estamos do mesmo lado, que só quero o seu bem.

Abracei ele — Desculpa, é que tudo tem acontecido tão depressa... E tem aquela mulher, ela atrapalhou tudo...

— Hannah, o nome dela é Sara — disse com a voz fina e levando as mãos à cintura — Não é justo, você não pode desrespeitar minhas namoradas.

Rimos um pouco, mas insisti — É sério pai, você nem conhece ela direito e já trouxe a mulher para morar com a gente. Ela não é como a... Não pode tratar essa mulher como se fosse a...

— A Mamãe? — ele aproximou o rosto e ajeitou meu cabelo atrás da orelha — Você está certa, a Sara não vai substituir sua mamãe. Mas precisa entender que é a mulher que escolhi para passar o resto da vida e não faço isso porque quero esquecer a mamãe. Simplesmente, tinha de acontecer. Além do mais, Sara é uma boa pessoa e você deveria dar um voto de confiança para ela.

Sacudi a cabeça, inconformada — Mas você não sabe quase nada sobre ela, como pode dizer isso?

— Você a conhece ainda menos e se acha no direito de odiá-la?

O velho levantou, mas antes que ele alcançasse a maçaneta da porta, irrompi — Pai, eu estava mentindo sobre a cocaína, — abaixei a cabeça — Comprei com um amigo na escola.

O velho suspirou — Só não quero você com aquelas porcarias de novo. Temos que ser mais do que... — serrou os lábios.

— um peixinho suicida?

Esboçou um sorriso — Isso mesmo, — se voltou até aproximar-se novamente e beliscou meu nariz com os nódulos dos dedos, então deixou o quarto.

Já com a porta fechada, revirei os olhos e imitei-o, — Sara isso, Sara aquilo... — em som quase inaudível

Pude ouvir o grito do velho abafado pela porta fechada — E pode parar de me imitar, ouviu mocinha? E guarde essa roupa na mochila.


A paz.

Subitamente, senti um cansaço, meu corpo parecia possuir um peso insustentável. Não consigo lembrar momento exato que dormi, mas quando dei por mim, fui surpreendida por gritos estridentes. Reconheci o timbre de voz da Sara, aos berros, desesperada.

A Imperatriz de LevronOnde histórias criam vida. Descubra agora