Para as almas, não sei se diga demasiadamente positivas, se demasiadamente
grosseiras, o celibato do sacerdócio não passa de uma condição, de uma
fórmula social aplicada a certa classe de indivíduos cuja existência ela modifica
vantajosamente por um lado e desfavoravelmente por outro. A filosofia do
celibato para os espíritos vulgares acaba aqui. Aos olhos dos que avaliam as
coisas e os homens só pela sua utilidade social, essa espécie de insulação
doméstica do sacerdote, essa indirecta abjuração dos afectos mais puros e santos,
os da família, é condenada por uns como contrária ao interesse das nações, como
danosa em moral e em política, e defendida por outros como útil e moral. Deus
me livre de debater matéria tantas vezes disputada, tantas vezes exaurida pelos
que sabem a ciência do mundo e pelos que sabem a ciência do céu! Eu, por
minha parte, fraco argumentador, só tenho pensado no celibato à luz do
sentimento e sob a influência da impressão singular que desde verdes anos fez
em mim a ideia da irremediável solidão da alma a que a igreja condenou os seus
ministros, espécie de amputação espiritual, em que para o sacerdote morre a
esperança de completar a sua existência na terra. Suponde todos os
contentamentos, todas as consolações que as imagens celestiais e a crença viva
podem gerar, e achareis que estas não suprem o triste vácuo da soledade do
coração. Dai às paixões todo o ardor que puderdes, aos prazeres mil vezes mais
intensidade, aos sentidos a máxima energia e convertei o mundo em paraíso, mas
tirai dele a mulher, e o mundo será um ermo melancólico, os deleites serão
apenas o prelúdio do tédio. Muitas vezes, na verdade, ela desce, arrastada por
nós, ao charco imundo da extrema depravação moral; muitíssimas mais, porém,
nos salva de nós mesmos e, pelo afecto e entusiasmo, nos impele a quanto há
bom e generoso. Quem, ao menos uma vez, não creu na existência dos anjos
revelada nos profundos vestígios dessa existência impressos num coração de
mulher? E por que não seria ela na escala da criação um anel da cadeia dos
entes, presa, de um lado, à humanidade pela fraqueza e pela morte e, do outro,
aos espíritos puros pelo amor e pelo mistério? Por que não seria a mulher o
intermédio entre o céu e a terra?
Mas, se isto assim é, ao sacerdote não foi dado compreendê-lo; não lhe foi
dado julgá-lo pelos mil factos que no-lo têm dito a nós os que não juramos junto
do altar repelir metade da nossa alma, quando a Providência no-la fizesse
encontrar na vida. Ao sacerdote cumpre aceitar esta por verdadeiro desterro:
para ele o mundo deve passar desconsolado e triste, como se nos apresenta ao
despovoarmo-lo daquelas por quem e para quem vivemos.
A história das agonias íntimas geradas pela luta desta situação excepcional do
clero com as tendências naturais do homem seria bem dolorosa e variada, se as
fases do coração tivessem os seus anais como os têm as gerações e os povos. A
obra da lógica potente da imaginação que cria o romance seria bem grosseira e
fria comparada com a terrível realidade histórica de uma alma devorada pela
solidão do sacerdócio.
Essa crónica de amarguras procurei-a já pelos mosteiros quando eles desabavam no meio das nossas transformações políticas. Era um buscar
insensato. Nem nos códices iluminados da Idade Média, nem nos pálidos
pergaminhos dos arquivos monásticos estava ela. Debaixo das lajes que cobriam
os sepulcros claustrais havia, por certo, muitos que a sabiam; mas as sepulturas
dos monges achei-as mudas. Alguns fragmentos avulsos que nas minhas
indagações encontrei eram apenas frases soltas e obscuras da história que eu
buscava debalde; debalde, porque à pobre vítima, quer voluntária, quer forçada
ao sacrifício, não era lícito o gemer, nem dizer aos vindouros: « Sabei quanto eu
padeci!»
E, por isso mesmo que sobre ela pesava o mistério, a imaginação vinha aí para
suprir a história. Da ideia do celibato religioso, das suas consequências forçosas e
dos raros vestígios que destas achei nas tradições monásticas nasceu o presente
livro.
Desde o palácio até a taberna e o prostíbulo, desde o mais esplêndido viver até
o vegetar do vulgacho mais rude, todos os lugares e todas as condições têm tido o
seu romancista. Deixai que o mais obscuro de todos seja o do clero. Pouco
perdereis com isso.
O Monasticon é uma intuição quase profética do passado, às vezes intuição
mais dificultosa que a do futuro.
Sabeis qual seja o valor da palavra monge na sua origem remota, na sua
forma primitiva? É o de — só e triste.
Por isso na minha concepção complexa, cujos limites não sei de antemão
assinalar, dei cabida à crónica-poema, lenda ou o que quer que seja [1] do
presbítero godo: dei-lha, também, porque o pensamento dela foi despertado pela
narrativa de certo manuscrito gótico, afumado e gasto do roçar dos séculos, que
outrora pertenceu a um antigo mosteiro do Minho.
O Monge de Cister, que deve seguir-se a Eurico, teve, proximamente, a
mesma origem.
Ajuda — Novembro de 1843.
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Eurico, o presbítero- Alexandre Herculano
RandomEurico, o Presbítero é a mais importante obra de Alexandre Herculano, um dos maiores escritores do Romantismo português. Lá estão presentes características marcantes do romance Romântico, como a idealização do herói, a valorização dos sentimentos e...