Onde é que se escondeu enfraquecida a antiga fortaleza?
Sto. Eulógio: Memorial dos Santos, Liv. 3.ºPresbitério de Carteia. À meia-noite dos idos de Dezembro da era de 748
1
ra por uma destas noites vagarosas do Inverno em que o brilho do céu sem lua
é vivo e trémulo; em que o gemer das selvas é profundo e longo; em que a
soledade das praias e ribas fragosas do oceano é absoluta e tétrica.
Era a hora em que o homem está recolhido nas suas mesquinhas moradas; em
que pelos cemitérios o orvalho se pendura do topo das cruzes e, sozinho, goteja
das bordas das campas, em que só ele chora os mortos. As larvas da imaginação
e o gear nocturno afastam do campo santo a saudade da viúva e do órfão, a
desesperação da amante, o coração despedaçado do amigo. Para se consolarem,
os infelizes dormiam tranquilos nos seus leitos macios!... enquanto os vermes iam
roendo esses cadáveres amarrados pelos grilhões da morte. Hipócritas dos
afectos humanos, o sono enxugou-lhes as lágrimas!
E depois, as lousas eram já tão frias! Nos seios do torrão húmido o sudário do
cadáver tinha apodrecido com ele.
Haverá paz no túmulo? Deus sabe o destino de cada homem. Para o que aí
repousa sei eu que há na terra o esquecimento!
Os mares pareciam naquela hora recordar-se ainda do rugido harmonioso do
estio, e a vaga arqueava-se, rolava e, espreguiçando-se pela praia, reflectia a
espaços nas golfadas de escuma a luz indecisa dos céus.
E o animal que ri e chora, o rei da criação, a imagem da divindade, onde é
que se escondera?
Tremia de frio em aposento cerrado, e sentia confrangido a brisa fresca do
Norte que passava nas trevas e sibilava contente nas sarças rasteiras dos
maninhos desertos.
Sem dúvida, o homem é forte e a mais excelente obra da criação. Glória ao
rei da natureza que tiritando geme!
Orgulho humano, qual és tu mais — feroz, estúpido ou ridículo?2
Não eram assim os Godos do Oeste [7] quando, ora arrastando por terras as
águias romanas, ora segurando com o seu braço de ferro o império que
desabava, imperavam na Itália, nas Gálias e nas Espanhas, moderadores e
árbitros entre o Setentrião e o Meio-Dia:
Não eram assim, quando o velho Teodorico, semelhante ao urso feroz da montanha, combatia nos campos cataláunicos [8] rodeado de três filhos, contra o
terrível Átila e ganhava no seu último dia a sua última vitória:
Quando a larga e curta espada de dois gumes se convertera em foice da morte
nas mãos dos godos, e diante dela retrocedia a cavalaria dos gépidas, e os
esquadrões dos hunos vacilavam, dando roucos gritos de espanto e terror.
Quando as trevas eram mais cerradas e profundas viam-se à claridade das
estrelas relampaguear as armas dos hunos, volteando em redor dos seus carros,
que lhes serviam de valos. Como o caçador espreita o leão tomado no fojo, os
visigodos os vigiavam esperando o romper da alvorada.
Lá, o sopro gelado da noite não fazia confranger nossos avós debaixo das
armaduras. Lá, a neve era um leito como outro qualquer, e o rugir do bosque,
debatendo-se nas asas da tempestade, era uma cantilena de repouso.
O velho Teodorico caíra atravessado por uma flecha despedida pelo ostrogodo
Handags, que, com os da sua tribo, combatia pelos hunos.
Os visigodos viram-no, passaram avante e vingaram-no. Ao pôr-do-sol,
gépidas, ostrogodos, ciros, burgundos, turíngios, hunos, misturados uns com
outros, tinham mordido a terra cataláunica, e os restos da inumerável hoste de
Átila, encerrados no seu acampamento fortificado, preparavam-se para morrer;
porque Teodorico jazia para sempre, e o franquisque dos visigodos era vingador
e inexorável.
O romano Aécio teve, porém, piedade de Átila e disse aos filhos de Teodorico:
— Ide-vos, porque o império está salvo.
E Torismundo, o mais velho, perguntou a seus dois irmãos Teodorico e
Frederico:
— Está acaso vingado o sangue do nosso pai?
De sobejo o estava ele! Ao aparecer do dia, por quanto os olhos podiam
alcançar, não se viam senão cadáveres.
E os visigodos deixaram entregues a si os romanos, que, desde então, não
souberam senão fugir diante de Átila.
Quem contará, porém, as vitórias de nossos avós durante três séculos de
glória? Quem poderá celebrar o esforço de Eurico, de Teudes, de Leovigildo;
quem saberá todas as virtudes de Recaredo e de Vamba?
Mas, em qual coração resta hoje virtude e esforço, no vasto império de
Espanha?3
Era, pois, numa destas noites como a que desceu do céu depois do desbarato
dos hunos; era numa destas noites em que a terra, envolta no seu manto de
escuridade, se povoa de terrores incertos; em que o sussurro do pinhal é como
um coro de finados, o despenho da torrente como um ameaçar de assassino, o
grito da ave nocturna como uma blasfémia do que não crê em Deus.
Nessa noite fria e húmida, arrastado por agonia íntima, vagava eu às horas
mortas pelos alcantis escalvados das ribas do mar, e enxergava ao longe o vulto negro das águas balouçando-se no abismo que o Senhor lhes deu para perpétua
morada.
Por cima da minha cabeça passava o Norte agudo. Eu amo o sopro do vento,
como o rugido do mar:
Porque o vento e o oceano são as duas únicas expressões sublimes do verbo de
Deus, escritas na face da terra quando ainda ela se chamava caos.
Depois é que surgiu o homem e a podridão, a árvore e o verme, a bonina e o
emurchecer.
E o vento e o mar viram nascer o género humano, crescer a selva, florescer a
Primavera; — e passaram, e sorriram-se.
E, depois, viram as gerações reclinadas nos campos do sepulcro, as árvores
derribadas no fundo dos vales secas e carcomidas, as flores pendidas e murchas
pelos raios do Sol do Estio; — e passaram, e sorriram-se.
Que tinham eles, de feito, com essas existências, mais passageiras e incertas
que as correntezas de um e que as ondas buliçosas do outro.4
O mundo actual nunca poderá entender plenamente o afecto que, vibrando-
me dolorosamente as fibras do coração, me arrastava para as solidões marinhas
do promontório, quando os outros homens nos povoados se apinhavam à roda do
lar aceso e falavam das suas mágoas infantis e dos seus contentamentos de um
instante.
E que me importa a mim isso? Virão um dia a esta nobre terra de Espanha
gerações que compreendam as palavras do presbítero.
Arrastava-me para o ermo um sentimento íntimo, o sentimento de haver
acordado, vivo ainda, deste sonho febril chamado vida, e de que hoje ninguém
acorda, senão depois de morrer.
Sabeis o que é esse despertar de poeta?
É o ter entrado na existência com um coração que transborda de amor sincero
e puro por tudo quanto o rodeia, e ajuntaram-se os homens e lançarem-lhe
dentro do seu vaso de inocência lodo, fel e peçonha e, depois, rirem-se dele:
É o ter dado às palavras — virtude, amor pátrio e glória — uma significação
profunda e, depois de haver buscado por anos a realidade delas neste mundo, só
encontrar aí hipocrisia, egoísmo e infâmia:
É o perceber à custa de amarguras que o existir é padecer, o pensar descrer, o
experimentar desenganar-se, e a esperança nas coisas da terra uma cruel
mentira de nossos desejos, um fumo ténue que ondeia em horizonte aquém do
qual está assentada a sepultura.
Este é o acordar do poeta. Depois disso, nos abismos da sua alma só há para
mandar aos lábios um sorriso de desprezo em resposta às palavras mentidas dos
que o cercam, ou uma voz de maldição desabridamente sincera para julgar as
acções dos homens.
É então que para ele há unicamente uma vida real — a íntima; unicamente uma linguagem inteligível — a do bramido do mar e do rugido dos ventos;
unicamente uma convivência não travada de perfídia — a da solidão.5
Tal era eu quando me assentei sobre as fragas; e a minha alma via passar
diante de si esta geração vaidosa e má, que se crê grande e forte, porque sem
horror derrama em lutas civis o sangue de seus irmãos.
E o meu espírito atirava-se para as trevas do passado.
E o sopro rijo do Norte afagava-me a fronte requeimada pela amargura, e a
memória consolava-me das dissoluções presentes com a aspiração suave do
formoso e enérgico viver de outrora.
E o meu meditar era profundo, como o céu, que se arqueia imóvel sobre
nossas cabeças; como o oceano, que, firmando-se em pé no seu leito insondável,
braceja pelas baías e enseadas, tentando esboroar e desfazer os continentes.
E eu pude, enfim, chorar.6
Que fora a vida se nela não houvera lágrimas?
O Senhor estende o seu braço pesado de maldições sobre um povo criminoso;
o pai que perdoara mil vezes converte-se em juiz inexorável; mas, ainda assim, a
Piedade não deixa de orar junto dos degraus do seu trono.
Porque sua irmã é a Esperança, e a Esperança nunca morre nos céus. De lá
ela desce ao seio dos maus antes que sejam precitos.
E os desgraçados na sua miséria conservam sempre olhos que saibam chorar.
A dor mais tremenda do espírito quebrantam-na e entorpecem-na as lágrimas.
O Sempiterno as criou quando nossa primeira mãe nos converteu em
réprobos: elas servem, porventura, ainda de algum refrigério lá nas trevas
exteriores, onde há o ranger dos dentes.
Meu Deus, meu Deus! — Bendito seja o teu nome, porque nos deste o chorar.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Eurico, o presbítero- Alexandre Herculano
RandomEurico, o Presbítero é a mais importante obra de Alexandre Herculano, um dos maiores escritores do Romantismo português. Lá estão presentes características marcantes do romance Romântico, como a idealização do herói, a valorização dos sentimentos e...