Da morte às trevas,
Imortal, te diriges!
Merobaude: Poema de CristoAventura das armas muçulmanas tinha chegado ao apogeu, e a sua declinação
começava, finalmente. E na verdade, a ira celeste contra os Godos parecia
dever estar satisfeita. O solo da Espanha era como uma ara imensa, onde as
chamas das cidades incendiadas serviam de fogo sagrado para consumir aos
milhares as vítimas humanas. O silêncio do desalento reinava por toda a parte, e
os cristãos viam com aparente indiferença os seus vencedores poluírem as
últimas coisas que, até sem esperança, ainda defende uma nação conquistada —
as mulheres e os templos. Teodemiro pagava bem caro o procedimento que o
desejo de salvar os seus súbditos o movera a seguir. O pacto feito por ele com os
árabes não tardou a ser por mil modos violado, e o ilustre guerreiro teve de se
arrepender, mas já debalde, por haver deposto a espada aos pés dos infiéis, em
vez de pelejar até a morte pela liberdade. Fora isto o que Pelágio preferira, e a
vitória coroou o seu confiar no esforço dos verdadeiros godos e na piedade de
Deus.
Os que têm lido a história daquela época sabem que a batalha de Cangas de
Onis foi o primeiro elo dessa cadeia de combates que, prolongando-se através de
quase oito séculos, fez recuar o Alcorão para as praias de África e restituir ao
Evangelho esta boa terra de Espanha, terra, mais que nenhuma, de mártires. Na
batalha de junto do Auseba foram vingados os valentes que pereceram nas
margens do Chry sus; porque mais de vinte mil sarracenos viram pela última vez
a luz do Sol naquelas tristes solidões. Mas, nesse dia de punição, esta devia
abranger assim os infiéis, como os que lhes haviam vendido a pátria e que ainda
vinham disputar a seus irmãos a dura liberdade de que gozavam nas brenhas
intratáveis das Astúrias.
O ardil de Pelágio para resistir com vantagem aos muçulmanos, cem vezes
mais numerosos que os cristãos, surtira o desejado efeito. Ainda que muito a
custo, os cavaleiros enviados em cilada para a floresta à esquerda das gargantas
de Covadonga puderam chegar aí sem serem sentidos dos árabes, que se haviam
aproximado mais cedo do que o fizera crer a narração do velho Velido. Os infiéis
pararam nas bordas do Deva, no sítio em que rompia do vale, e os seus
almogaures tinham ousado penetrar avante. Os cavaleiros da cilada, que a pouca
distância passavam manso e manso, ouviram distintamente o tropel dos ginetes
inimigos.
Mas, quando, ao primeiro alvor da manhã, Pelágio se encaminhava com o seu
pequeno esquadrão para a garganta das serras, já os árabes rompiam por ela e
começavam a espraiar-se, como ribeira que, saindo de leito apertado, se dilata
pela campina. Os cristãos recuaram, e os infiéis, atribuindo ao temor esta fuga simulada, precipitaram-se após eles. Pouco a pouco, o duque de Cantábria
atraiu-os para a entrada da gruta de Covadonga. Chegado ali, pondo à boca a sua
buzina, tirou um som prolongado. Imediatamente os cimos dos rochedos, que
pareciam inacessíveis, cobriram-se de fundibulários e flecheiros, e uma nuvem
de tiros choveu de toda a parte sobre os africanos e sobre os renegados godos.
Vacilaram; mas o desejo da vingança levou-os a apinharem-se, esquadrões após
esquadrões, à entrada da caverna, onde, finalmente, encontravam desesperada
resistência. Então, como se despegassem do céu, grandes rochedos começaram
a rolar sobre eles dos cimos do precipício que lhes ficava sobranceiro. Mãos
invisíveis os impeliam. Cada rocha traçava no meio daquele vulto informe que
oscilava, naquela vasta planície de alvos turbantes e de capacetes reluzentes, uma
escura mancha, semelhante a chaga horrível. Eram dez ou vinte guerreiros,
cujos membros esmagados, cujos ossos triturados, cujo sangue confundido
espirravam por cima das frontes dos seus companheiros. Era medonho! —
porque a esse espectáculo se ajuntava o grito de raiva de desesperação dos
pelejadores, grito feroz e agudo, só comparável a bramido de cem leoas a quem
os caçadores do Atlas houvessem, na ausência delas, roubado os seus
cachorrinhos.
Pela volta da tarde, apenas do numeroso e brilhante exército dos árabes alguns
milhares de cavaleiros fugiam desalentados diante dos foragidos das Astúrias,
que os perseguiam incansáveis além de Cangas de Onis.
Fora no momento em que Pelágio penetrava, na sua fingida fuga, sob o vasto
portal da gruta, que o cavaleiro negro saía. O jovem guerreiro viu-o e
estremeceu. Eurico tinha as faces encovadas, o rosto pálido e transtornado, e
havia em todo o seu gesto uma tão singular expressão de tranquilidade que fazia
terror. Enquanto os cristãos defendiam a entrada ele esteve quedo, como
indiferente, ao combate; mas, logo que os árabes, acometidos já pelas costas,
principiaram a recuar; e que Pelágio pôde combater na planície, o cavaleiro,
abrindo caminho com o franquisque, desapareceu no meio dos inimigos. Desde
esse momento, debalde, o duque de Cantábria o buscou: nem ele, nem ninguém
mais o viu.
Era quase ao pôr-do-sol. Seguindo a corrente do Deva, a pouco mais de duas
milhas das encostas do Auseba, dilatava-se nessa época denso bosque de
carvalhos, no meio do qual se abria vasta clareira, onde sobre dois rochedos
aprumados assentava um terceiro. Era, provavelmente, uma ara céltica.
Em frente da tosca ponte de pedras brutas lançadas sobre o rio, uma senda
estreita e tortuosa atravessava a selva e, passando pela clareira, continuava por
meio dos outeiros vizinhos, dirigindo-se, nas suas mil voltas, para as bandas da
Galécia. Quatro cavaleiros, a pé e em fio, caminhavam por aquele apertado
carreiro. Pelos trajos e armas, conhecia-se que eram três cristãos e um
sarraceno. Chegados à clareira, este parou de repente e, voltando-se com aspecto
carregado para um dos três, disse-lhe:
— Nazareno, ofereceste-nos a salvação, se te seguíssemos: fiamo-nos em ti,
porque não precisavas de trair-nos. Estávamos nas mãos dos soldados de Pelágio,
e foi a um aceno teu que eles cessaram de perseguir-nos. Porém o silêncio tenaz que tens guardado gera em mim graves suspeitas. Quem és tu? Cumpre que sejas
sincero, como nós. Sabes que tens diante de ti Mugueiz, o emir da cavalaria
árabe, Juliano, o conde de Septum, e Opas, o bispo de Híspalis.
— Sabia-o — respondeu o cavaleiro —, por isso vos trouxe aqui. Queres saber
quem sou? Um soldado e um sacerdote de Cristo!
— Aqui!?... — atalhou o emir, levando a mão ao punho da espada e lançando
os olhos em roda. — Para que fim?
— A ti, que não eras nosso irmão pelo berço; que tens combatido lealmente
connosco, inimigos da tua fé; a ti, que nos oprimes, porque nos venceste com
esforço e à luz do dia, foi para te ensinar um caminho que te conduza em salvo às
tendas dos teus soldados. É por ali!... A estes, que venderam a terra da pátria, que
cuspiram no altar do seu Deus, sem ousarem francamente renegá-lo, que
ganharam nas trevas a vitória maldita da sua perfídia, é para lhes ensinar o
caminho do inferno... Ide, miseráveis, segui-o!
E quase a um tempo dois pesados golpes de franquisque assinalaram
profundamente os elmos de Opas e Juliano. No mesmo momento mais três
reluziram.
Um contra três! — Era um combate calado e temeroso. O cavaleiro da cruz
parecia desprezar Mugueiz: os seus golpes retiniam só nas armaduras dos dois
godos. Primeiro o velho Opas, depois Juliano caíram.[30]
Então, recuando, o guerreiro cristão exclamou:
— Meu Deus! Meu Deus! Possa o sangue do mártir remir o crime do
presbítero!
E, largando o franquisque levou as mãos ao capacete de bronze e arrojou-o
para longe de si.
Mugueiz, cego de cólera, vibrara a espada: o crânio do seu adversário rangeu,
e um jorro de sangue salpicou as faces do sarraceno.
Como tomba o abeto solitário da encosta ao passar do furacão, assim o
guerreiro misterioso do Chrysus caía para não mais se erguer!...
Nessa noite, quando Pelágio voltou à caverna, Hermengarda, deitada sobre o
seu leito, parecia dormir. Cansado do combate e vendo-a tranquila, o mancebo
adormeceu, também, perto dela, sobre o duro pavimento da gruta. Ao romper da
manhã, acordou ao som de cântico suavíssimo. Era sua irmã que cantava um dos
hinos sagrados que muitas vezes ele ouvira entoar na catedral de Tárraco. Dizia-
se que seu autor fora um presbítero da diocese de Híspalis, chamado Eurico.
Quando Hermengarda acabou de cantar, ficou um momento pensando.
Depois, repentinamente, soltou uma destas risadas que fazem eriçar os cabelos,
tão tristes, soturnas e dolorosas são elas: tão completamente exprimem
irremediável alienação de espírito.
A desgraçada tinha, de feito, enlouquecido.
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Eurico, o presbítero- Alexandre Herculano
RandomEurico, o Presbítero é a mais importante obra de Alexandre Herculano, um dos maiores escritores do Romantismo português. Lá estão presentes características marcantes do romance Romântico, como a idealização do herói, a valorização dos sentimentos e...