XII O Mosteiro

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Se a todos se convertessem todos os membros em línguas, ainda assim não
caberia nas forças humanas o narrar as ruínas de Espanha e os seus tão diversos
e multiplicados males.
Isidoro de Beja, Chronicon

O mosteiro da Virgem Dolorosa estava situado numa encosta, no topo da
extrema ramificação oriental das que a dilatada cordilheira dos Nervásios
estende para o lado dos campos góticos. A pouca distância do vale onde se viam
as ruínas de Augustóbriga, caminho de Légio, no meio de uma solidão profunda,
aquela silenciosa morada de virgens inocentes achava-se convertida em praça de
guerra. Edifício sumptuoso, construído no tempo de Recaredo, as suas grossas
muralhas de mármore pareciam, na verdade, quadrelas de castelo roqueiro;
porque na arquitectura dos Godos a elegância romana era modificada pela
solidez excessiva do edificar germânico ou saxónico, que os rudes visigodos do
tempo de Teodorico e de Ataúlfo haviam introduzido no Meio-Dia da Europa. Os
restos dispersos das tiufadias da Galécia tinham-se encerrado em todas as
povoações e lugares fortificados ou por qualquer modo defensáveis, e os
habitantes dos povoados, acolhendo-se aí com eles, deixavam desertas as suas
moradas, incertos do dia em que veriam reluzir ao longe as lanças dos agarenos,
que já devastavam o Norte da Lusitânia e parecia encaminharem-se para o lado
de Tude. Os muros fortíssimos daquele vasto edifício, as suas portas tecidas de
ferro e carvalho, as estreitas frestas, que apenas lhe deixavam penetrar no
interior uma luz duvidosa, os tectos ameados e, finalmente, os fossos profundos
que o circundavam, tudo o tornava acomodado para larga defensão. Com
algumas decanias de veteranos que no meio do terror pudera ajuntar, o
quingentário Atanagildo havia-se acolhido aí, e com ele um grande número dos
mais abastados habitantes daqueles contornos. Protegido pela vizinhança das
serras das Astúrias, ainda livres, Atanagildo cria que o mosteiro seria sempre
inexpugnável barreira contra a violência e cobiça dos árabes. Entretidos em
submeter e pôr a saco as opulentas cidades do Meio-Dia, contentes com as veigas
feracíssimas da Bética, da Lusitânia, e da Cartaginense e com o sol quase
africano que as aquecia, que viriam eles buscar nas brenhas intratáveis e frias da
Galécia, e da Cantábria? Seriam, apenas, alguns troços dos inquietos e selvagens
berberes os que se derramavam por estas partes; mas, contra esses, eram de
sobra os tiros de catapulta arrojados das torres do mosteiro e as cateias e flechas
despedidas de entre as ameias que lhe cingiam a fronte, como a coroa de um rei
gigante, e que não podiam ser derribadas pelos manguais brutescos, únicas armas
dos broncos e seminus montanheses do Atlas.
No centro do imenso edifício erguia-se o templo monástico: peça
quadrangular, construída de grossos cantos de mármore, arrancados das
pedreiras inesgotáveis que se estendem desde os Nervásios até as cercanias de Légio. No exterior do templo, do meio de um vasto pátio que o rodeava, viam-se
negrejar na sua cinta de estreitas celas as vestiduras severas das monjas, cuja
oração contínua, quer em comum no santuário, quer na solidão das suas breves
moradas, só era interrompida por sono curto, dormido sobre a dura enxerga da
penitência. Esta parte do mosteiro era a que elas unicamente ocupavam havia
alguns dias. Os seus claustros pacíficos e saudosos, onde nunca soara o ruído
tormentoso da vida, onde nunca as dolorosas realidades do mundo haviam
penetrado, salvo nos sonhos passageiros e dourados de algum coração mais
ardente, restrugiam com o bater das armas, com o amontoar das provisões, com
o carpir dos que abandonavam os seus lares, com a violenta e brutal linguagem
da soldadesca. No meio daquela vasta mole de pedra, em que os sons discordes
reboavam, ecoando soturnos nas arcadas e corredores profundos, o templo,
aonde se acolhera a quietação monástica era como um oásis frondoso e abrigado
pelos seus palmares no meio do deserto que o sopro infernal do simum revolve,
fazendo redemoinhar nos ares aquele oceano de areia fervente.
Era ao anoitecer de um dia de Novembro. Por entre o nevoeiro cerrado que,
alevantando-se do vale vizinho, trepava pela encosta, deixando apenas livres as
negras agulhas dos cerros, lá no viso da montanha divisavam-se a custo as
ameias e muralhas à luz baça do crepúsculo, refrangida em céu pardo e húmido.
A brisa morna de oeste gemia nos troncos dos castanheiros nus, nas ramas
esguias dos pinheiros bravos, e as passadas monótonas dos vigias ao longo dos
adarves formavam um concerto acorde com o aspecto melancólico do céu e da
terra.
A esta hora duvidosa entre a claridade e as trevas, uma numerosa cavalgada
atravessava o ribeiro no fundo do vale e encaminhava-se para o mosteiro da
Virgem Dolorosa. Dez cavaleiros, cujas barbas alvas lhes caíam sobre o peito,
saindo por baixo das redes de ferro que lhes serviam de gorjal rodeavam uma
dama cujo rosto ocultava o comprido véu que, pendente do retíolo, lhe descia
sobre o alvo amículo, mas cujos meneios airosos e talhe esbelto revelavam nela
o viço e as graças da idade juvenil. Seguiam-na alguns pajens desarmados, cujos
rostos imberbes já o temor e o desalento que se pintavam em todos os semblantes
nesta época desastrada haviam sulcado de rugas. Vadeado o rio, a cavalgada
encaminhou-se por uma senda tortuosa que ia dar à entrada do mosteiro, aonde,
ao que parecia, desejavam chegar antes que de todo se fechasse a noite. Ao
aproximar-se aquela comitiva, os vigias conheceram que eram godos —
provavelmente alguns desgraçados que vinham buscar o abrigo daqueles muros
fortificados — e as grossas portas não tardaram a abrir-se para recolherem mais
esses pobres fugitivos.
Apenas os recém-chegados, atravessando o átrio do fundo portal, saíram à
cerca interior, o que parecia mais autorizado entre os velhos cavaleiros pediu
para falar a sós com Atanagildo. Levado o ancião à torre onde o quingentário
habitava, não tardou este em descer à cerca, no meio da qual, ainda a cavalo e
sem erguer o véu, a dama desconhecida esperava rodeada dos seus. Com todos
os sinais de respeito, Atanagildo dirigiu-lhe algumas palavras em voz submissa e,
tomando a rédea do palafrém, guiou-o para uma porta contígua ao frontispício da igreja. A um sinal seu a porta abriu-se, e um vulto negro de monja apareceu no
limiar dela.
O quingentário, tomando pela mão a desconhecida e apresentando-a à monja,
disse-lhe:
— Venerável Cremilde, acolhei entre as puras virgens que vos obedecem uma
das mais nobres donzelas de Espanha: é por uma noite apenas, que ela vos pede
abrigo; amanhã ao romper da alva partirá para Légio.
— Amanhã ou depois, que importa? — replicou a monja, cujo semblante
austero descobria, não tanto a decadência dos anos, como os vestígios da
penitência: — enquanto Cremilde reger o mosteiro da Virgem Dolorosa, nunca a
hospitalidade será recusada nele ao que a implorar. E quando a virtude de nobre
donzela tiver um fiador tal como vós, esta achará sempre em mim o carinho de
mãe e nas escolhidas do Senhor, que me alevantaram do meu nada ao tremendo
ministério de sua abadessa, encontrará o amor e o gasalhado de irmãs para com
irmã querida.
Dizendo isto, a boa abadessa tomou pela mão a desconhecida e, internando-se
com ela pelas arcadas que diziam para o interior do edifício, alumiadas
escassamente pelas lâmpadas turvas que de espaço a espaço pendiam das
abóbadas achatadas, desapareceu aos olhos de Atanagildo.
A noite vai no seu fim: a campa do mosteiro dá o sinal do terceiro nocturno.
Subitamente, o santuário ilumina-se, e os vidros multicores jorram nas trevas
externas a claridade dos candelabros e tochas, como de dia deixam transudar a
luz do Sol no âmbito interior da igreja; esto perpétuo de resplendores, que ora
descem do céu para a terra, ora tentam, subindo da terra para as alturas, desfazer
o manto das trevas. Numa extensa fileira, a cuja frente vem a venerável
Cremilde, as monjas entram no coro e, tomando para um e outro lado, param
voltadas para o altar. Junto da abadessa uma donzela de trajos brancos sobressai
entre as monjas vestidas de negro, não tanto pela alvura das roupas, como pela
formosura: e todavia, são formosas muitas das virgens que a rodeiam, pela maior
parte ainda no viço da vida. É a nobre dama recém-chegada, à qual nem o
cansaço de trabalhosa jornada, nem o hábito dos cómodos do mundo puderam
impedir acompanhasse na oração aquelas que o trato de poucas horas já lhe fazia
amar como irmãs. Cremilde prostra-se com a face no chão; as monjas e a dama
vestida de branco seguem o seu exemplo. Através desses lábios inocentes que
beijam o pavimento do templo murmuram durante alguns instantes as orações
submissas. Depois, a abadessa ergue-se, e pouco a pouco aqueles semblantes,
que cobre uma palidez de inefável repouso e brandura, vão-se alevantando da
terra, com os olhos voltados para o céu, semelhantes aos de anjos de mármore
ajoelhados em roda de um túmulo, que surgissem pouco a pouco animados por
vida repentina e, cheios de saudade da morada celeste, enviassem aos pés do
Senhor o seu primeiro suspiro. Então a salmista começa a entoar um dos hinos
sacros do presbítero de Carteia que havia pouco se tinham introduzido no ritual
gótico, e as demais monjas respondem em coros alternos. O hino dizia assim:
« As asas da tua providência, ó Senhor, expandem-se por cima da terra, e o
justo desgraçado acolhe-se debaixo delas:
Porque aí moram os santos contentamentos; esquecem as dores da vida; vive-
se à luz da esperança.
Confiado em ti o fraco não receia as tiranias do forte: o humilde ri das
soberbas do poderoso.
Quem revelou aos pequeninos e opressos esta divina guarida? Quem nos
ensinou a esperar? Quem a ser feliz pela fé no meio das agonias?
Foi Cristo, o teu filho querido. A tua justiça condenava à dor o género humano
ainda no berço: ele nos conquistou para a felicidade no meio dos tormentos da
Cruz.
Nós tomaremos, também, esta em nossos ombros: ela é a guia da bem-
aventurança.
O seu peso é suave: porque sob ela os espinhos da existência que
ensanguentam os membros do peregrino sem repouso, chamado o homem,
convertem-se em prado macio de relva e boninas.
Que reine para sempre a Cruz!
Erguei-a sobre todos os píncaros das serranias, gravai-a em todas as árvores
dos bosques, hasteai-a sobre as rochas marítimas, estampai-a nas muralhas das
cidades, na fronte dos edifícios, apertai-a ao coração.
E depois, que o género humano se prostre e adore nela a redenção que nos
trouxe o Ungido de Deus.
A Cruz triunfará eterna.»
Neste momento aquelas vozes harmoniosas cessaram, como se de súbito nos
lábios de todas as monjas se houvesse posto o selo da morte. A porta do templo,
aberta com violento impulso, rangera nos gonzos, e um velho ostiário viera cair
de bruços sobre as lajes do pavimento, soltando o grito doloroso que por tantos
milhares de bocas diariamente se repetia na Espanha:
— Os árabes!
As vozes confusas dos vigias, misturadas com o tinir do ferro, responderam,
como uivar de feras, às palavras do ostiário: as faces pálidas das virgens
empalideceram ainda mais.
A alvorada começava a repintar na terra a claridade do Sol escondido ainda
no Oriente. Os godos, com as armas nas mãos, coroavam as ameias. Do alto de
uma das torres Atanagildo observava a campanha, e a fronte entenebrecia-se-lhe
com um véu de tristeza.
Naquela noite muitos nobres senhores de terras tinham chegado ao mosteiro,
vindos da banda de Légio. Um numeroso exército de árabes aparecera
subitamente na véspera junto aos muros da cidade, que logo fora acometida
pelos pagãos. Era o que sabiam. Fugitivos desde o aparecimento dos inimigos, ao
anoitecer haviam enxergado para aquela parte um clarão grande e duradouro. Se
eram as fogueiras dos arraiais árabes, se o incêndio de Légio, não o podiam
resolver: só, sim, que seria impossível resistir por largo tempo cidade tão mal
defendida a tamanha cópia de infiéis, que não tardariam a derramar-se para o
lado do mosteiro, prosseguindo nas suas devastadoras conquistas pela Galécia e
pela Tarraconense.
Era esta triste profecia dos fugitivos que se tinha verificado ao romper da
manhã. Atanagildo, do alto da torre principal, vira ao longe um vulto negro que
descia dos outeiros, onde já alumiava tudo a luz matutina. Esse vulto
assemelhava-se a serpe monstruosa que, rolando-se do monte para a planície em
colos tortuosos, se lhe reflectissem nas duras conchas os raios solares; porque
naquele corpo gigante havia um contínuo e rápido cintilar. Atanagildo percebera
o que era, e por isso a tristeza lhe obscurecia a fronte.
Como a faísca eléctrica, o terror espalhara-se no mosteiro apenas se dissera
que os árabes se aproximavam. Mais de um coração de guerreiro batia
apressado, como o do pobre ostiário que buscara na piedade de Deus o amparo
que mal podia esperar das muralhas do forte edifício; do pobre ostiário, que, sem
o saber, fora desmentir o hino triunfal da Cruz, diariamente derribada dos altares
nos templos profanados da Espanha.
Dentro em breve, o exército do Islam chegara a tão curta distância, que
facilmente se distinguiam os esquadrões dos filhos do deserto e as turmas dos
berberes. Também os árabes tinham observado o reluzir das armas através das
ameias do mosteiro. A hoste inteira parou no vale, e alguns cavaleiros
encaminharam-se pela senda tortuosa que findava na ponte levadiça contígua ao
grande portal, erguida desde que pelos fugitivos constara que os muçulmanos se
avizinhavam.
Quando o quingentário conheceu que os árabes paravam no fundo do vale, o
seu coração generoso verteu sangue com a lembrança de que o esforço dos
soldados que coroavam os adarves do mosteiro, por muito que houvera sido, não
fora bastante para salvar os desgraçados que tinham buscado abrigo à sombra
daquelas muralhas. Viu o desalento pintado nos semblantes dos mais valorosos, e
a última esperança varreu-se-lhe da alma. Todavia, esperou com rosto seguro a
chegada dos cavaleiros que subiam a encosta.
Estes aproximaram-se, enfim. Por seu aspecto e trajo via-se que na maior
parte eram godos. Com as espadas nas bainhas, pareciam vir em som de paz:
também, por isso, nem uma flecha só se disparou contra eles dos muros.
Pouco antes de chegarem ao fosso profundo que circundava o edifício, um
cavaleiro que parecia o principal daquele pequeno esquadrão, adiantando-se aos
demais, veio topar com a entrada da ponte e, olhando para as muralhas, onde
reluziam imóveis as lanças dos cristãos, chamou:
— Atanagildo!
Ao ouvir aquela voz, o quingentário empalideceu: com visível ansiedade,
voltou-se para um centenário que estava junto dele, e disse-lhe:
— Mandai descer a ponte e dai passagem franca a esse cavaleiro que proferiu
o meu nome; mas a ele, unicamente a ele!
O centenário obedeceu. Daí a pouco as armas do guerreiro tiniam pelas
escadas da torre. Apenas subiu ao terrado, encaminhou-se para Atanagildo e,
estendendo-lhe a dextra, exclamou:
— Meu irmão!
O quingentário, em cujas faces pálidas passara um relâmpago de vermelhidão, recuou e, com voz afogada, respondeu:
— Atanagildo teve um irmão; mas esse morreu para ele; porque entre ele e
Suíntila está a Cruz quebrada aos pés dos pagãos; está o céu e o inferno. A minha
herança é a ignomínia do vencimento, os ferros de escravo e as promessas de
Cristo: a tua as riquezas, a vitória e a maldição de Deus. Não troco os nossos
destinos, nem quero a amizade do precito. Arrepende-te, abandona os infiéis, e
então Atanagildo te apertará ao peito e te dará aquele nome tão suave da nossa
infância, o santo nome de irmão.
— Estás louco!... — replicou Suíntila. — Porém, não foi para disputar contigo
que vim aqui: vim para te salvar. Olha para o vale: àquela hoste numerosa que lá
vês poucas horas poderão resistir estes muros mal guarnecidos. Abdulaziz, o
invencível filho do emir de África, é quem a capitaneia: Légio caiu ontem em
nosso poder, e de parte nenhuma podes ser socorrido. O bispo de Híspalis e o
conde de Septum, que vêm connosco, oferecem-te o mando de um dos seus
esquadrões. Os árabes pedem aos godos que os seguem fidelidade ao estandarte
do califa, não à crença do Islam: podes guardar tua fé. Eis o que Suíntila,
alcançou a teu favor. Estas velhas muralhas e as donzelas encerradas nestes
claustros, que Abdulaziz soube serem pela maior parte formosas e que ele destina
para enviar a Kairwan, são o vil preço da tua salvação. Suíntila aconselha-te que
o entregues; porque, apesar das injúrias, ainda se não esqueceu de que é irmão
de Atanagildo. Resolve e responde. Que devo dizer a Juliano e a Opas, a quem
supliquei para ser mandado aqui?
— Dize-lhes — atalhou o quingentário, cujos olhos faiscavam de indignação
— que eu respeito a vida de um arauto, ainda quando este é um miserável
renegado, como tu ou como eles, aliás não fora Suíntila quem lhe levaria a minha
resposta. Dize-lhes que as suas infames ofertas são para mim tão abomináveis
como eles. Dize-lhes que antes de um sacerdote sacrílego e de um conde traidor
poderem estampar o ferrete da prostituição na fronte das inocentes virgens do
Senhor terão de passar por cima das ruínas destes muros e dos cadáveres dos
meus e dos seus soldados. E tu, renegado, sai daqui! Possa eu nunca mais ver-te o
rosto e esquecer-me na hora de morrer de que nessas veias gira o sangue de
nossos nobres e generosos avós.
— Como te aprouver, meu irmão! — replicou Suíntila, e um sorriso lhe
deslizou nos lábios, descorados por mal disfarçada cólera. Proferidas estas
palavras, desceu as escadas da torre.
A cavalgada, que lenta subira a encosta, descia-a rapidamente enquanto
Atanagildo, visitando os muros, exortava os guerreiros da Cruz a pelejarem
esforçadamente. Quando estes souberam quais eram as intenções dos árabes
acerca das virgens do mosteiro, a atrocidade do sacrilégio afugentou-lhes dos
corações a menor sombra de hesitação. Sobre as espadas juraram todos
combater e morrer como godos. Então o quingentário, a quem parecia animar
sobrenatural ousadia, correu ao templo. Era necessário que as monjas soubessem
qual futuro as aguardava. Resignado a acabar defendendo-as, Atanagildo nem
por isso esperava salvá-las das mãos dos agarenos. Dolorosa era a nova; mas
cumpria não lhes esconder o seu horrível destino.
As mulheres e os velhos que tinham vindo buscar asilo no mosteiro enchiam já
o templo, em cujas abóbadas murmuravam e repercutiam os gemidos e as
preces. Rompendo pela multidão, o quingentário encaminhou-se para o coro e
chamou por Cremilde, que com as monjas acompanhava o povo nas suas
orações fervorosas. A abadessa aproximou-se das reixas douradas que a
separavam do guerreiro.
— Cremilde — disse Atanagildo em voz baixa —, é necessário valor! Dentro
de poucas horas sobre os muros do mosteiro da Virgem Dolorosa estará hasteado
o pendão dos infiéis, e eu terei deixado de existir, porque jurei sobre a cruz desta
espada ficar sepultado debaixo das ruínas dele. O exército dos árabes é
irresistível, e a única esperança que me resta é que o Senhor aceitará o meu
sangue, derramado em seu nome, como um testemunho da minha fé.
— Os infiéis — acudiu a abadessa, procurando dar às palavras que proferia
um tom de firmeza que o trémulo da voz lhe desmentia — contentar-se-ão,
talvez, com as riquezas aqui amontoadas imprudentemente e com a posse destes
lugares. Se é isto o que pretendem saiamos e cedamos ao culto ímpio de Maomé
o templo de Deus vivo, já que para o salvar seria inútil todo o sangue que se
vertesse. Com as virgens esposas do Senhor buscarei os ermos das serras do
Norte, e, como as monjas primitivas, aí acharemos a paz e o repouso, enquanto o
pai celestial não nos chama à nossa verdadeira pátria.
— Prouvera a Deus, venerável Cremilde — tornou o quingentário —, que nos
fosse lícito desamparar estes muros: deixar só entregues às profanações dos
infiéis a pedra e o cimento! Mas uma atroz mensagem acaba de me ser
mandada por quem, como eu, devia horrorizar-se dela. Repelia-a, porque se me
ofereciam vida e honras a troco da perpétua infâmia. Agora resta-me
unicamente morrer como godo e como soldado da Cruz.
— E qual era essa mensagem? — perguntou a abadessa ansiosamente. — Em
nome de quem vinha ela?
— Do bispo de Híspalis e do conde de Septum; de um sacerdote e de um
nobre. O preço da nossa liberdade era a prostituição das vossas filhas queridas,
das monjas consagradas à Virgem Dolorosa, que esses mal-aventurados
destinam para saciar as paixões brutas daqueles a quem venderam a terra de
Espanha. Para o obter cumpre-lhes, porém, passar por cima dos membros
despedaçados dos guerreiros que povoam estas muralhas. Pela Cruz assim o
juramos todos. Havemos de cumpri-la.
As palavras de Atanagildo vibraram no coração de Cremilde, como vibra o
primeiro dobre pelo finado que ainda jaz em seu leito da derradeira agonia na
alma do bom filho, que reza, chorando, ajoelhado ao pé dele. Recuou aterrada e,
volvendo para o céu os olhos enxutos, porque a aflição neles estancara as
lágrimas que despontavam, ficou por alguns momentos com as mãos erguidas,
como implorando uma inspiração de cima. Pouco a pouco, porém, as suas faces
tingiram-se da cor da vida, o sorriso da esperança rodeou-lhe os lábios, e as
lágrimas, consolo supremo das maiores mágoas e, também, expressão eloquente
dos contentamentos mais íntimos, lhe rebentaram com força e lhe orvalharam a
negra estamenha do hábito.
— O martírio! o martírio! — murmurou a abadessa. — Oh Cristo! bendito
seja o teu nome.
— O martírio, sim — interrompeu o quingentário —, mas depois do sacrilégio;
mas depois que as vítimas da corrupção dos traidores tiverem sido arrastadas
para longe da Espanha e depois que nos haréns do Oriente houverem sido
poluídas pela sensualidade brutal dos conquistadores. Eu, ao menos, não verei
esta última ofensa à santa religião de nossos pais...
— Ide — prosseguiu a abadessa, que parecia não o haver escutado, embebida
em meditação profunda. — Quando os infiéis se aproximarem, enviai-lhes
mensageiros de paz. Que vos deixem acolher às montanhas com essa multidão
de infelizes que vieram buscar o abrigo destes muros. Não cureis das monjas da
Virgem Dolorosa, nem receeis por elas. Achei um meio para as salvar da sorte
medonha que as ameaça. Desamparai-nos; porque o arcanjo do esforço é o
nosso defensor. O meu arbítrio será aceito pelas escolhidas de Cristo; sê-lo-á,
porque o Senhor mo inspirou. Nada mais é preciso dizer-vos.
E, de feito, o seu olhar e gesto eram de uma inspirada: mas nesse olhar e gesto
havia o que quer que era de severa aspereza misturado com alegria suave, como
em céu que varre o noroeste as nuvens tenebrosas remendam o azul puríssimo do
firmamento, de onde, por entre elas, jorram torrentes de luz.
— Mas o juramento? — tornou tristemente o quingentário. – Devo respeitar o
vosso segredo; todavia parece-me lícito duvidar da eficácia dos meios que
imaginais para vos salvardes das mãos dos muçulmanos.
— O vosso juramento é inútil — acudiu Cremilde — e eu vos escuso dele. A
resistência só servirá para arrastardes convosco à morte os velhos inermes e as
criancinhas inocentes. Ide, e abri pacificamente as portas aos pagãos. Se tanto é
preciso, eu vo-lo ordeno. Atanagildo, um dia nos veremos no céu.
Ditas estas palavras com toda a firmeza de resolução inabalável, a abadessa
afastou-se da reixa e encaminhou-se para o meio das freiras, que, entretanto,
haviam estado imóveis com os olhos cravados no pavimento. O quingentário
ficou por alguns momentos pensativo: depois, agitado pela luta cruel dos afectos e
pensamentos opostos que tumultuavam no seu coração, atravessou
vagarosamente o templo e desapareceu.
A um sinal de Cremilde as monjas saíram do coro; a donzela vestida de
branco, ao lado da venerável abadessa, apertava-lhe a mão entre as suas; mas os
seus meneios eram firmes como os dela e mais do que os dela altivos. Desde que
a última freira passou, as preces misturadas de soluços que sussurravam na
igreja converteram-se num som único de choro perdido, como se a última
esperança houvera desaparecido delas.
A campa do mosteiro bateu três pancadas com largos intervalos: é o sinal que
convoca as monjas a capítulo. Para lá se encaminham. A donzela que nessa noite
chegara acompanha-as, também, aí. Entraram. As pesadas portas da casa
capitular rangem nos gonzos cerrando-se, e o correr dos ferrolhos interiores
reboa ao longe pelos corredores monásticos. Ao mesmo tempo a ponte levadiça
cai sobre o fosso que rodeia as muralhas do vasto edifício; um cavaleiro se arroja
sozinho ao meio dos esquadrões do Islam, que já subiram a encosta, e pede para falar com o conde de Septum em nome de Atanagildo. Dentro de poucos
instantes ei-lo que volta, e os muçulmanos param a curta distância. Então um
grande número de crianças, de velhos e de mulheres, saindo, como torrente
comprimida, do portal profundo do mosteiro, atravessam por meio das duas
fileiras de soldados de Juliano e de guerreiros árabes que vieram colocar-se aos
lados da ponte. Esta multidão desordenada ondeia, separa-se, apinha-se de novo,
para tornar a espalhar-se, até que desaparece ao longe, caminho das montanhas.
Após ela, cobertos dos seus saios de malha, mas sem armas, os soldados de
Atanagildo seguem com gesto melancólico as mesmas trilhas por onde se vai
escoando a turba, até que também, como esta, se derramam pelas selvas densas
dos montes e pelos barrancos escarpados que, retalhando os Nervásios, dão
passagem através deles para as regiões setentrionais da Espanha.
Apenas o quingentário, que fora o derradeiro a atravessar a ponte levadiça,
volvendo os olhos arrasados de lágrimas para aquela santa morada, desceu a
encosta, as duas fileiras de soldados arremessaram-se ao fundo portal, cujas
abóbadas pela primeira vez reboaram com os gritos discordes de homens
desenfreados, e o edifício solitário respondeu-lhes com um silêncio lúgubre.
Diante deles estavam patentes as vastas arcarias e escadas, os longos corredores,
os pátios espaçosos. Lá, no centro, o templo solitário, com as portas abertas de
par em par, amostra-lhes aos olhos ávidos as suas riquezas, ao passo que parece
querer vedar ao Sol, com as cores sombrias das vidraças das janelas, o
espectáculo das profanações de que na sua existência secular vai ser teatro e
testemunha pela primeira vez.
Como o tufão rugindo se abisma nas galerias tortuosas de mina extensa, assim
os godos renegados e os muçulmanos, que os seguem de perto, se precipitam
dentro do mosteiro. Pelas arcadas e corredores, pelas salas e aposentos ouve-se o
rir e falar desentoado, o ruído de passadas rápidas, o tinir das armas, o estourar
das portas. Árabes, mouros, soldados godos da Tingitânia misturam-se, disputam,
ameaçam-se, dividindo o saco. Os xeiques e os capitães do conde de Septum
vedam-lhes unicamente a entrada das habitações interiores, onde a riqueza do
templo lhes promete à cobiça mais avultada presa. Eles sós se encaminham para
essa parte e desaparecem nos claustros monásticos, onde se não ouve outro sinal
de vivos, senão os sons de seus pés e, a espaços, o tinir das próprias armaduras,
que roçam pelos pilares de mármore.
Suíntila, o desonrado irmão do virtuoso Atanagildo, era do número dos capitães
que haviam primeiramente penetrado no claustro solitário. Tinha-se adiantado
mais e descia por uma escadaria lôbrega que terminava, segundo parecia, numa
quadra alumiada por muitas tochas. Esta circunstância, que lhe excitava viva
curiosidade, obrigou-o a apertar o passo. A meia descida parou. Crera ouvir um
cântico entoado por muitas vozes acordes, que a espaços era interrompido por
gemidos dolorosos. Escutou: não se enganava! Então o terror começou a
apoderar-se dele, e, porventura, teria retrocedido, se não sentira que alguém
mais o seguia. Eram dois xeiques árabes e um centenário do conde de Septum
que o acaso guiara para aquela parte. Interposto entre o clarão avermelhado que
sala do subterrâneo e os três que se aproximavam, Suíntila fez-lhes sinal de silêncio e continuou a descer mansamente até chegar à porta que dava da
escadaria para o aposento iluminado. Então conheceu onde estava. Era um
desses lugares misteriosos e santos que a primitiva arquitectura religiosa construía
debaixo dos templos — templos também, mas da morte; porque aí, sobre os
altares, repousavam as cinzas dos mártires, e aos pés deles os fiéis que obtinham
para última jazida uma pouca de terra onde ainda fossem afagar-lhes as cinzas o
sussurro longínquo das preces e o perfume dos sacrifícios. Suíntila achava-se na
cripta do mosteiro da Virgem Dolorosa. O clarão que vira era o de muitos lumes,
acesos em lampadários gigantes, e reverberando nas estalactites penduradas das
junturas do mármore: era o reflexo das tochas que ardiam diante dos crucifixos,
únicas imagens que se viam sobre as aras nuas. Em cada um dos túmulos das
monjas antigas, enfileirados ao comprido dos muros, negrejavam apenas uma
data e um nome. Era o que restava para memória de muitas virtudes naqueles
anais do mosteiro, naquela cronologia de pedra. O sepulcro da viúva de
Hermenegildo, o desgraçado irmão de Recaredo, elevado mais que os outros à
entrada do templo subterrâneo, semelhava um trono de rainha em palácio de
sombras, porque o ambiente grosso e frio e o hálito das sepulturas revelavam que
aí era o império da morte.
As torrentes de luz, que inundavam esta morada de terror não permitiram a
Suíntila enxergar no primeiro volver de olhos os objectos que estavam ante ele.
Espantado, tentava descobrir no meio daquela resplandecente solidão algum vulto
humano, quando os cantos e gemidos, suspensos momentaneamente, romperam
de novo: primeiro as vozes harmoniosas; depois o gemido íntimo, doloroso,
afogado; logo outra vez o silêncio.
Os dois xeiques e o centenário tinham chegado ao pé de Suíntila. Animados
uns pela presença dos outros, encaminham-se para o grande túmulo e dali olham
para o lugar de onde haviam soado os cânticos. Eis o temeroso espectáculo que
têm diante de si:
Grossos e altos cancelos de roble separam do resto do templo um extenso
recinto sem sepulcros, imediato ao altar principal: ergue-se no topo cruz
agigantada: por um e outro lado daquele espaço além das grades negrejam duas
fileiras de monjas: muitas estão de joelhos e debruçadas sobre o primeiro degrau
do altar: em pé, entre as duas fileiras, uma delas, cujos olhos desvairados
reluzem à claridade das tochas e cujo aspecto severo infunde uma espécie de
terror, tem na mão um punhal, cujo ferro sem brilho parece tinto em sangue.
Junto da monja um vulto de mulher vestida de branco sobressai no meio das
virgens cobertas de luto: unido às grades que defendem a entrada daquele
recinto, um velho, cujas melenas e longa barba lhe alvejam sobre os ombros e
peito, está de joelhos com os braços estendidos através da balaustrada: agita-o
uma convulsão horrível de pavor, que lhe embarga na garganta os sons
articulados e só lhe consente murmurar um ruído confuso, semelhante ao respiro
ansioso de agonizante. Um dos dois coros de freiras começa a entoar de novo os
salmos: a monja do punhal estende a mão, ordenando silêncio. Vai falar. Suíntila,
a ponto de arremessar-se para aquele lado, pára e escuta as suas palavras. São
lentas e lúgubres, como as de espectro que se alevantasse de alguma das campas derramadas ao longo da cripta. Dirige-as ao vulto branco que está ao seu lado:
— Ainda uma vez, nobre dama, atendei às súplicas do velho bucelário [24]
que tenta salvar-vos. Para vós há esperança na terra: a nossa mora no céu.
Quando os infiéis souberem que ainda existe na Espanha quem possa quebrar
com ouro o vosso cativeiro ou vingar com ferro a vossa afronta, respeitarão a
pureza de nobre virgem. A nós, que não temos ninguém no mundo, restava-nos
unicamente o tremendo arbítrio que o Senhor nos inspirou. O martírio não tardará
a cingir-nos a fronte de uma auréola de glória: os anjos de Deus nos esperam.
— A minha última resolução, venerável Cremilde, é acabar junto de vós e de
vossas irmãs. O meu ânimo sairá, como o delas, ileso da última prova que Cristo
nos pede na vida. Como elas, darei sem hesitar testemunho da Cruz. O velho
bucelário de meu pai mente à própria consciência quando afirma que os infiéis
respeitarão a pureza de uma donzela goda: a infâmia tem sido escrita por eles na
fronte das famílias mais ilustres da Espanha: o cutelo ou a prostituição é o que os
árabes oferecem à inocência. Eu escolho o cutelo: a morte vale mais que a
desonra. Porventura, para a evitar me guiou o Senhor ao mosteiro da Virgem
Dolorosa.
— Seja feita a vontade do Altíssimo — respondeu a abadessa alevantando ao
céu as mãos, entre as quais apertava o punhal.
Depois de um momento de silêncio, Cremilde disse, voltando-se para o lado
esquerdo:
— Hermentruda, aproximai-vos!
Uma das monjas saiu de entre as outras e veio ajoelhar aos pés da abadessa:
as suas companheiras ajoelharam também voltadas para o altar; e o hino que
Suíntila ouvira ao descer para a cripta murmurou de novo naquelas curvas
abóbadas.
Como lá no horizonte o Sol trémulo e sereno se reclina ao fim da tarde no seio
tenebroso dos mares, assim o canto melancólico e melodioso das virgens foi
pouco a pouco enfraquecendo até expirar no cicio de orações submissas. Apenas
cessou de todo, um gemido de agonia agudo e rápido soou junto da abadessa. Aos
olhos de Suíntila afigurou-se que o punhal de Cremilde descera duas vezes sobre
a monja que estava a seus pés. Um brado de cólera e horror, saindo
involuntariamente da boca do godo, restrugiu pelo templo. Crera o renegado que
Hermentruda havia sido assassinada. Pareceu-lhe então claro o sentido das
palavras misteriosas que ouvira. As monjas fugiam ao cativeiro do harém pelo
ádito do sepulcro. Ele assistia a uma cena horrenda de suicídio, e o braço mais
robusto de Cremilde apenas era o instrumento cego movido por todas essas
vontades, conformes para morrer.
— Mulher ou demónio, detém-te! — bradou Suíntila, correndo com os xeiques
[23] e o centenário para o recinto fechado e procurando abrir os fortes cancelos
que lhe embargavam os passos.
Embebidas no seu drama cruel, nem as monjas, nem Cremilde volvem sequer
os olhos para os quatro guerreiros, cujas armas reluzem ao fulgor das tochas:
Hermentruda não está morta. Ergueu-se. Tem a cabeça descoberta, os louros
cabelos esparzidos, o colo nu. Bem como o aspecto do formoso arcanjo de luz no dia em que, rebelde, a espada de fogo lhe estampou na fronte a condenação
eterna, o seio e o rosto da monja, suavemente pálidos, estão sulcados por betas
escuras, que serpeiam por aquele gesto, como às víboras estiradas ao sol sobre
um busto grego tombado entre as ruínas de antigo templo pagão. É que,
semelhantes ao nordeste frio e agudo, que, passando pela bonina viçosa, lhe
desbarata os encantos, os fios do punhal de Cremilde correram por lá violentos e
rápidos, e num momento aniquilaram a formosura da virgem.
As grades fechadas interiormente balouçam aos empuxões de Suíntila: mas
não cedem.
— Ocba — diz o godo a um dos xeiques —, correi! Chamai os mais robustos
zenetas e os negros de Tacrur armados dessas achas a cujo primeiro golpe nunca
resistiu elmo de bronze. Prestes! chamai-os aqui. Abdulaziz deve ter chegado.
Que venha! Mulher infernal lhe vai destruindo peça a peça os despojos mais
ricos, os que ele destinava para si e para o califa. Que venha salvá-los! Que
venha! Prestes, xeique de Hoara!
E, enquanto o xeique galga a extensa escadaria, os três tentam muitas vezes
estourar os grossos ferrolhos, que resistem às suas diligências. Arquejando,
Suíntila abandona a tentativa inútil. Ameaça Cremilde: as injúrias acompanham
as ameaças: seguem-nas as súplicas, as promessas, e logo, de novo, as pragas e
as afrontas. Baldado é tudo. Cremilde lançou ao renegado um olhar de
compaixão e conservou-se em silêncio.
Mas os cânticos cessaram de todo: as monjas saem sucessivamente de ambos
os lados e vêm ajoelhar aos pés da abadessa: vêm despir as galas da formosura e
comprar à custa delas a pureza da virgindade e a palma do martírio. Cada vez
mais rápido range o punhal nos colos puríssimos das virgens do mosteiro. O
gemido que expira comprimido pela constância, já se prende com o que a dor e
a fraqueza mulheril arrancam dos seios das vítimas ao descer do primeiro golpe,
e a fileira das que se vão debruçar sobre os degraus do altar cresce de instante a
instante, ao passo que rareiam as outras duas.
A terrível sacerdotisa parou. Está o seu braço cansado de tão largo sacrifício?
Não! Braço e ânimo são robustos, porque os fortalece o espírito do Senhor. É que
o momento supremo da morte se aproxima. A mourisma jorra subitamente pelo
portal estreito, como o rio caudal na caverna que se lhe estendia debaixo do leito
e cuja abóbada fendeu tremor de terra. Os guerreiros negros das tribos de
Tacrur, à voz de Abdulaziz que os precede, precipitam-se contra os sólidos
cancelos do lugar vedado: vinte machados ferem a um tempo nas grades, que
gemem sob a fúria dos golpes e mal resistem às pancadas violentas dos negros
possantes, aos quais redobra os brios a presença do emir, cuja cólera resfolega
em maldições e blasfémias.
Entre as monjas e os árabes bem curta distância medeia: e todavia, lá no mais
pequeno recinto onde soam os gemidos de dores atrozes, onde só ri uma
esperança, a da morte, há paz íntima, há o céu: aqui, na vasta cripta, onde a
ebriedade de fácil triunfo, a riqueza dos despojos, o futuro de uma larga
existência de glória e deleites sorriem na mente dos infiéis, está o furor insensato,
está o inferno. O Evangelho e o Alcorão estão frente a frente no resultado das suas doutrinas. É sublime a vitória do livro do Nazareno!
Os golpes de machado redobram: os troncos afeiçoados do roble começam a
estourar nas suas junturas. A última freira fora já curvar-se junto aos degraus do
altar; a donzela vestida de branco vai ajoelhar aos pés de Cremilde, exclamando:
— Para mim também o martírio! Salvai-me do opróbrio.
— A tua constância, filha, na dura prova de agonia por que tens passado, te
purificou. Sê uma das monjas da Virgem Dolorosa e vai com tuas irmãs receber
a coroa de mártir.
O ferro, porém, que descia sobre o colo da donzela foi cair com a mão de
Cremilde aos pés da cruz gigante do altar. Um revés do alfanje de Abdulaziz lha
cerceara: as sólidas grades estavam despedaçadas.
A abadessa vacilou e, ao cair, só pôde murmurar:
— Jesus, recebe a minha alma!
Foram as suas palavras extremas: um segundo golpe lhe atalhou na garganta o
derradeiro suspiro.
As freiras ergueram-se e encaminharam-se para o lugar em que jazia o
cadáver destroncado da abadessa. Ajoelharam junto dela com a face voltada
para a turba dos infiéis. Os seus rostos inchados, emanando sangue, eram
disformes e horríveis.
— Ao menos, tu serás minha! — exclamou o emir, lançando a mão ao braço
da donzela vestida de branco, a quem o terror desta cena rapidíssima tornara
imóvel, como uma dessas estátuas que parecem orar sobre os sepulcros nas
catedrais da Idade Média. — Filhos valentes do Al-Sudan, conduzi-a à minha
tenda. As outras, que as asas do anjo Asrael se estendam sobre os seus
cadáveres.
Daí a poucas horas a cripta estava em silêncio. As monjas da Virgem
Dolorosa jaziam degoladas em volta da venerável Cremilde, e as suas almas
puras abrigavam-se no seio imenso de Deus.[25]

Eurico, o presbítero- Alexandre HerculanoOnde histórias criam vida. Descubra agora