Arrebatada no palor das trevas.
Breviário Gótico: Hino de S. Gerôncio.Era ao cair do dia. O nordeste seco e regelado corria as campinas do espaço,
onde, através da atmosfera puríssima, cintilavam as estrelas. O clarão de
Segisamon incendiada reflectia de longe nas brancas tendas dos árabes,
acampados a bastante distância dos muros da povoação destruída. Em volta do
arraial, pelas coroas dos outeiros, acendiam-se as almenaras, a cuja luz, ténue,
comparada com a do incêndio de Segisamon, se viam passar os atalaias
nocturnos. Abdulaziz, semelhante a cometa caudato, seguia a sua órbita de
extermínio, deixando após si vestígios de fogo. O exército devia ao romper da
alva internar-se nos vales da Tarraconense.
Segisamon tinha na véspera oferecido um espectáculo semelhante ao de
muitas outras cidades da Espanha levadas à escala pelos muçulmanos. Não só a
cobiça e o desenfreamento da soldadesca multiplicavam aí as cenas de rapina,
de violência e de sangue, mas também a política dos capitães árabes procurava
aumentar a terribilidade desses dramas repetidos para quebrar os ânimos dos
Godos e persuadi-los à submissão. O dia precedente a esta noite que começava
tinha sido consagrado pelos vencedores ao repouso, depois de um duro lavor de
morte e ruínas. Os jogos, os banquetes, as dissoluções de todo o género haviam
recompensado brutalmente o esforço brutal dos destruidores de Segisamon.
Às coortes do renegado Juliano tocava nesta noite a vigia do arraial: eram
godos os que guardavam o campo, onde as virgens da Espanha tinham sido
violadas; onde a Cruz cativa fora mais de uma vez ludibriada; onde os velhos
sacerdotes haviam sofrido contentes o martírio no meio das afrontas. Aqueles
homens perdidos, rodeando esse montão de abominações, ainda não fartos dos
deleites infernais em que tinham tido parte com os infiéis, embriagavam-se,
bebendo pelos vasos sagrados, e escarneciam blasfemos a crença da sua infância
no meio de hedionda ebriedade.
O murmúrio imenso do arraial foi amortecendo gradualmente com o fechar
da noite. Em breve não se ouviu nas tendas do Islam mais que o respirar lento de
tantos milhares de homens adormecidos no gozo. Junto, porém, das almenaras as
risadas dos soldados do conde de Septum, os cantos obscenos inspirados pela
embriaguez, as disputas ardentes do jogo, em que o ouro corria de mão em mão,
soavam ainda em volta do silêncio do campo. Pouco e pouco, este mesmo ruído
foi afrouxando, ao passo que os fachos acesos nas chapadas dos outeiros
esmoreciam. A escuridão e o silêncio reinaram, enfim, até nas atalaias. Os
soldados godos, cansados de dissoluções, haviam também repousado. E para que
prestaria velar? O terror que inspiravam os árabes era o melhor guardador do
arraial. Como ousariam os cristãos, medrosos atrás dos muros dos seus castelos,
saltear o campo de Abdulaziz? As vigias e almenaras eram apenas uma velha fórmula militar, cuja significação a série não interrompida dos triunfos até então
alcançados tornara ininteligível.
Pela calada, porém, da alta noite e no meio das trevas que cobrem, como
amplo manto, aquele turbilhão de homens de guerra, descansando então para ao
romper do Sol rugir de novo impetuoso, vê-se ainda, através das telas mal unidas
de uma tenda mais vasta, reverberar vivo clarão, e ouve-se o rir alegre, o
altercar, o tinir argentino das taças; todos indícios, enfim, de que a orgia se
prolongou aí até mais tarde. Ao redor da tenda jazem por terra, com os alfanges
nus junto a si, alguns soldados da guarda de Abdulaziz, composta dos guerreiros
mais temidos do exército, os negros do remoto país do Al-Sudan. Nos ouvidos
deles restruge debalde o alto ruído que soa do interior do pavilhão. Dormem,
também, profundamente, e apenas à porta da tenda um deles vela imóvel
encostado à acha de armas.
A tenda era, de feito, a do esforçado filho de Muza. A mesa do banquete ainda
vergava com os restos das iguarias: os brandões já gastos e os candeeiros
mortiços derramavam uma claridade suave pelo aposento. Reclinado sobre um
almadraque coberto de preciosa alcatifa do oriente, o emir escutava o mais
moço dos xeiques que estavam junto dele, o qual, ora cantava os versos
voluptuosos de Zoheir que acendiam a imaginação do jovem guerreiro, ora lhe
repetia os antigos poemas licenciosos e satíricos de Ben-Hagiar que ele aplaudia
com estrondosas risadas.
O conde de Septum e os mais capitães godos aliados dos agarenos
conservavam-se ainda nos lugares que haviam ocupado durante o banquete. Para
aquela extremidade da vasta mesa viam-se algumas ânforas tombadas e outras
ainda cheias dos vinhos mais preciosos da Espanha; as taças que giravam ao
redor eram as que produziam o tinir que soava fora, no meio do ruído das falas,
dos gritos e dos cantos monótonos do xeique Abdalá.
Um guerreiro, cuja barba crespa e cerrada lhe caía como flocos de neve
sobre os anéis dourados do saio de malha, estava assentado à direita de Juliano. A
brancura dos seus cabelos era o único sinal que se lhe enxergava de uma larga
peregrinação na terra; porque o rosado da tez, a viveza dos olhos azuis, o garbo
nos meneios e a robustez dos membros agigantados mostravam nele mais que
muito a compleição vigorosa de homem de boa idade. Era Opas, o bispo Opas,
que se esquecera do sacerdócio, como se havia esquecido da pátria, e que,
habituado à vida solta dos arraiais, excedia já na violência de paixões ignóbeis os
mais desenfreados e bárbaros chefes das tribos semi-selvagens da África. Muitos
outros tiufados e quingentários, assentados ao longo da mesa, davam mostras de
infernal alegria, despejando as taças de prata, que os libertos lhes enchiam de
novo para de novo rapidamente se esgotarem.
— Vede os nazarenos malditos — dizia Abdulaziz em voz baixa ao xeique
Abdalá, olhando de través para os godos. — O amor da embriaguez nunca os
deixará ver a luz que emana das páginas do divino Alcorão. Para eles o fruto da
vide será sempre a ponte estreita, da qual, ao passarem na morte, se despenharão
no inferno.
— E que nos importam as suas almas tisnadas — replicou Abdalá — se eles nos ajudam a sujeitar à lei do santo profeta o império de Andaluz?[26] Sem Deus
e sem pátria, deixai-lhes ao menos a sua bruteza.
O Bispo de Híspalis percebeu que falavam dele e dos outros godos, porque os
xeiques haviam volvido para lá os olhos. Erguendo-se então com a taça em
punho, exclamou em arábico:
— Ao invencível Abdulaziz; a um dos mais nobres vingadores de Vitiza!
— Alfaqui dos romanos [27] — respondeu o emir — a lei do profeta não
consente que eu aceite a saudação que atravessou por lábios tintos no licor
amaldiçoado por ele.
— E que montam as maldições do teu profeta? — replicou Opas em tom de
gracejo. — Devemos nós por isso deixar de saudar o ilustre filho de Muza com o
abençoado e generoso vinho dos férteis outeiros da Espanha?...
— Infiel!... — interrompeu o emir em cujos olhos cintilara o despeito. Depois,
reportando-se, prosseguiu em tom brando, mas firme, como quem queria ser
prontamente obedecido:
— Nobres cavaleiros do Gharb, valentes xeiques do Negid, de Berryah, e de
Al-Moghreb, a noite vai alta, e ao romper da manhã é necessário partir. Que o
sono vos desça sobre as pálpebras nas vossas tendas de guerra!
A estas palavras, godos e árabes, alevantando-se, foram saindo da tenda
vagarosamente e em silêncio. Só o bispo de Híspalis, apertando a mão de Juliano,
murmurou:
— Oh, quanto fel se mistura com o prazer da vingança! Mas cumpra-se o
nosso fado.
Ao atravessarem o arraial, os dois filhos renegados da Espanha notaram que
nos cabeços das almenaras a escuridão era tão profunda como no resto do
campo. Tudo, porém, estava tranquilo. Apenas, a pouca distância, lhes pareceu
verem passar como sombra um cavaleiro que se encaminhava para o lado do
pavilhão de Abdulaziz. Era, provavelmente, algum soldado de Al-Sudan, que,
tresnoitado, se retraía para o seu alojamento junto da tenda do emir.
Entretanto este, apenas só, começou a caminhar agitado e a passos largos de
uma até outra extremidade do aposento, que ricos panos da Síria dividiam dos
que ocupavam os servos. No seu gesto, turbado por afectos encontrados,
passavam sucessivamente os vestígios destes: ora a indignação lhe pesava nos
sobrolhos confrangidos; ora lhe sorria nos olhos um pensamento voluptuoso; ora a
compaixão parecia suavizar-lhe esse feroz sorrir. Por fim, o moço Abdulaziz,
como vencido pela tempestade da sua alma, assentou-se no almadraque, e cobriu
o rosto com ambas as mãos. Conservou-se assim por largo tempo, em silêncio e
quedo, até que, afinal, as suas paixões triunfaram e rebentaram com violência.
Batendo as palmas, o emir bradou:
— Al-Fehri!
Um dos panos que dividiam a tenda em várias quadras alevantou-se de um
lado, e um vulto negro e disforme, que parecia arrastar-se com dificuldade,
encaminhou-se para o emir. Era como um tronco de gigante pelo espadaúdo do
corpo, pela amplidão do ventre e pela desmesurada grossura da cabeça, onde só lhe alvejavam os olhos embaciados. O monstro, apenas deu alguns passos, parou,
cruzando sobre o peito os braços grossos e curtos semelhantes a dois madeiros
informes.
— Eunuco — disse Abdulaziz com voz agitada —, conduz aqui a última das
minhas cativas que especialmente confiei de ti.
O vulto recuou e, franzindo a espécie de reposteiro que lhe dera passagem,
desapareceu. Passados alguns momentos, tornou. Uma figura de mulher, cujas
formas mal se podiam adivinhar através de um raro cendal que a cobria até os
pés, acompanhava-o. Com passo firme, ela se encaminhou para Abdulaziz, e o
eunuco desapareceu de novo.
— Filha dos cristãos — disse em língua romana o emir —, os dois dias que me
pediste para chorares o teu cativeiro passaram. Resolveste, finalmente, a ser a
mais amada entre as mulheres de Abdulaziz; ser a invejada das donzelas do
Oriente e quase a rainha das províncias de Andaluz, porque acima de Abdulaziz
só dois homens existem na terra, o emir de Al-Moghreb, aquele que me gerou, e
o descendente do profeta, o que rege todo o império dos crentes?
— A minha resolução é morrer, quando te aprouver — replicou a cativa com
serenidade —; porque essa resolução há muito que eu a tomei. Enganei-te,
pagão, quando te pedi dois dias para chorar! Escarneci de ti, porque te abomino.
Esperava que um braço de guerreiro que vale mais do que o teu viesse arrancar-
me do cativeiro. Ai de ti, se ele soubesse qual tinha sido o meu fado! Folga,
pagão, de que a sentença fulminada por Deus contra os filhos da Espanha me
abrangesse também. Nesta hora não fora eu; foras tu quem deveria perecer. Mas
ele não pôde salvar-me; só me resta dizer-te: infiel, tu és maldito de Deus;
príncipe dos árabes, tu és servo dos demónios; homem que me pedes amor, sabe
que eu te detesto.
— Dize tudo — interrompeu o emir, apertando com força o braço da cativa e
fitando nela os olhos onde lutavam amor profundo e cólera violenta —, exala em
injúrias a tua dor orgulhosa: sê, até, blasfema; mas não digas que detestas
Abdulaziz; não digas que amas um godo e que ele fora capaz de te vir roubar da
minha tenda. Desgraçado do nazareno que se lembrasse de amar-te depois que
Abdulaziz te chamou sua. Onde se iria esconder esse mal-aventurado filho de
uma raça vil e covarde, que pudesse escapar a este braço, o qual ao estender-se
arranca pelos fundamentos os vossos castelos e reduz a pó os templos do vosso
Deus e os muros das vossas cidades?
— Aquele que eu cria viesse em meu socorro — tornou com voz firme a
cativa — não se esconderá de ti no dia em que estiverem em volta dele todos os
seus irmãos em esforço e amor da terra natal: porque nesse dia das grandes
vinganças vê-lo-ás face a face. Muitas vezes os teus guerreiros têm fugido diante
dele; muitas vezes o incêndio dos arraiais pagãos tem ajudado o incêndio das
nossas cidades a alumiar as trevas da noite, e a sua mão foi a que lançou o facho
sobre a tenda do agareno. Esse, ao menos, se ainda se esconde, não é por temor
de ti, nem dos teus cavaleiros, que, tantos por tantos e ainda em dobro, muitas
vezes tem visto fugir.
— Entendo-te, altiva filha dos Godos — replicou Abdulaziz. — Falas do que vós outros chamais Pelágio, e que só de noite ousa sair das solidões das suas
montanhas para acometer as tribos de Al-Moghreb que fizeram assento no
conquistado Gharb ou para assassinar os cavaleiros do deserto transviados.
Apenas Sarkosta e Tarkuna vissem flutuar sobre as suas muralhas os estandartes
do Islam, eu iria arrancá-lo dos seus esconderijos para o punir. Mas tu abreviaste
os dias do foragido nazareno. Dentro de pouco o seu cadáver servirá de pasto às
aves do céu porque amou aquela que eu escolhi.
— Deus defenderá meu irmão — disse titubeando a donzela, cuja firmeza
começava a abandoná-la, receando ver cumprida a ameaça do emir.
— Irmã de Pelágio?! Oh, repete-o, mil vezes! São as prisões do sangue que te
unem ao cruel inimigo dos crentes?
— Por que finges ignorá-lo? Os velhos cavaleiros que me acompanhavam e
que comigo foram cativos no mosteiro que profanaste já o terão revelado.
— Nem as promessas, nem os tormentos puderam tirar de suas bocas o teu
nome e a tua hierarquia. Mas jura-me que és a irmã de Pelágio, e ele poderá
esquivar, se quiseres, o seu tremendo destino.
— Fora inútil negar o que eu própria confessei. O meu nome é Hermengarda:
o duque de Cantábria, Fávila, foi meu pai, e Pelágio é o filho e sucessor de Fávila.
O emir ficou alguns momentos calado com o braço de Hermengarda preso na
mão robusta que ela sentia trémula com o tumultuar dos afectos que agitavam o
coração do árabe. Este, por fim, exclamou:
— Pelo precursor do santo profeta: por Iça, Hermengarda, que, se amas teu
irmão, me digas: « eu serei tua.» Estas palavras o farão senhor da mais rica
província do Andaluz, daquela que ele escolher para reinar como emir: os
guerreiros que o seguem serão os vális das suas cidades, os alcaides dos seus
castelos: dos meus tesouros metade será dele. As escravas que muito hei amado
não mais verão sorrir-lhes o rosto de seu senhor. Tu serás rainha do meu
coração; rainha sem rival; senhora de tudo sobre quanto se estende o poder de
Abdulaziz, do filho querido do invencível Muza. Profere só essas palavras, e a
sorte de Pelágio será invejada pelos nossos mais ilustres guerreiros!...
No gesto do agareno todos os vestígios da cólera tinham desaparecido: só nele
se lia a ansiedade de um amor imenso que precisa, mais que do gozo brutal, de
um sentimento acorde com os próprios sentimentos.
Mas Hermengarda só vira afronta e opróbrio nas palavras do emir, e o ódio a
este homem, cuja natural fereza e orgulho o amor convertera em brandura e,
talvez, em submissão, tornou-se ainda maior ao ouvi-lo. Recobrando toda a
energia da sua alma, que por um momento vacilara, respondeu, olhando para
Abdulaziz com ar de desprezo:
— Nem sempre os valentes conquistadores da Espanha podem achar traidores
que vendem por ouro e honras infames os sepulcros de seus pais e os altares do
Senhor. Não! Pelágio não aceitará nunca um lugar entre os filhos de Vitiza e o
conde de Septum; porque Deus o guarda para vingador de seus traídos irmãos.
Infiel, grande era o preço que davas por uma filha da serva raça dos Godos:
guarda-o para o empregares melhor: para comprares as livres e nobres donzelas
do teu país. Tudo o que me ofereces é vil; porque vem de ti, maldito. Só uma oferta te aceito, há muito que ta pedi: a morte... a morte, e que seja breve.
Abomino-te, destruidor da Espanha... Não! Enganei-me. Desprezo-te, salteador
do deserto.
Com os lábios brancos e o olhar desorientado, o emir ouvia as palavras de
Hermengarda, e a sua fronte enrugava-se como a face do oceano ao passar do
furacão. Tremendo silêncio reinou por alguns momentos na tenda. Com um rir
abafado e diabólico, o emir o rompeu por fim:
— A morte? Não terás a morte: juro-to pelo sepulcro do profeta. Porque a
abelha zumbiu aos ouvidos do caçador faminto, arrojará ele para longe o mel do
seu favo e esmagará o insecto? Tu serás minha, mulher orgulhosa, porque o meu
amor é, como o meu ódio, inexorável e fatal. Depois quando o incêndio que me
devora estiver extinto; quando o tédio morar para mim nos teus braços, irás cevar
nas tendas dos berberes a sensualidade brutal dessa soldadesca selvagem. Pode
ser que teu nobre irmão venha entretanto salvar-te... Guarda para então as
soberbas; que hoje, pobre escrava, só te resta obedecer à voz do teu senhor.
Ao dizer isto, Abdulaziz, segurando com a dextra o braço de Hermengarda,
apertou-o com tanta violência que a desgraçada deu um grito de agonia e caiu de
joelhos aos pés do árabe. O emir ergueu-a e, impelindo-a com força, ao tempo
que despedaçava com a esquerda o raro cendal que lhe velava o rosto, a fez cair
pálida e trémula sobre o almadraque. Os lábios da donzela quiseram ainda
proferir algumas palavras — porventura uma súplica; mas apenas murmuraram
sons inarticulados, e feneceram em arquejar doloroso.
No seu furor, o filho de Muza, não sentira um rugido de cólera que respondera
ao grito de Hermengarda, nem um ai passageiro e sumido, que, segundo era
íntimo, parecia de homem a quem a ponta de um punhal rasgara subitamente o
coração. Nas telas, porém, que dividiam o aposento do lugar de onde pouco antes
saíra o eunuco e que ficavam fronteiras à entrada principal da tenda uma figura
humana se estampou negra sobre o chão brilhante da tapeçaria. O emir,
volvendo casualmente os olhos, a viu. Crescia rápida. Escutou. Passos ligeiros
soavam no vasto aposento. Voltou-se. Mas apenas pôde erguer o braço: vira
reluzir no ar um ferro; vira um vulto coberto de armas semelhantes às dos
cavaleiros de Al-Sudan: sentiu um golpe que lhe partia o braço erguido e que,
batendo-lhe ainda no crânio, lhe retumbava no cérebro. Deu um grito, fechou os
olhos e caiu aos pés de Hermengarda, manando-lhe o sangue da fronte. O
monstro humano que conduzira ali a irmã de Pelágio assomou então do topo
interior da tenda: o brado do emir o atraíra. Vendo seu senhor derribado e junto
dele o que o ferira, o eunuco fez uma horrível visagem, como pretendendo falar:
mas somente soltou um rugido acompanhado de um gesto de ameaça. Segundo o
atroz costume do Oriente, Al-Fehri, destinado desde a infância ao serviço
misterioso do harém, fora condenado em tenros anos a nunca imitar a voz
humana. Privado da língua, as suas expressões eram acenos ou aflitos e
inarticulados rugidos.
O cavaleiro observava-o. Fê-lo sorrir o ademã feroz e ameaçador do eunuco.
Tinha previsto todas as dificuldades daquela arriscada empresa e contava com o
seu esforço e frieza de ânimo para as vencer. Ligeiro, travou de uma das tochas que ardiam junto da mesa do banquete e chegou-a às ricas tapeçarias que
forravam a tenda. A chama enredou-se na tela: um rolo de fumo espesso trepou
em espirais, enegrecendo-lhe os recamos e lavores brilhantes. Em breve, as
labaredas abraçadas com feixes de lanças, com os panos custosos, que
ondeavam torcendo-se, treparam até o cimo e, curvando-se espalmadas sob o
tecto, romperam em línguas ardentes aprumadas para o céu. O incêndio,
espalhando ao longe a sua sinistra claridade, erguia-se como um tocheiro
disforme aceso no meio do arraial e despertava assim do sono profundo os
soldados de Al-Sudan lançados em volta do pavilhão do emir.
Mas já a este tempo o cavaleiro se afastava do lugar daquela cena medonha.
As palavras « liberdade» e « Pelágio!» , proferidas por ele, tinham calado como
um bálsamo de vida no coração de Hermengarda. O desconhecido, tomando-a
nos braços, atravessou ligeiro para o lado do arraial onde estanciavam os godos.
Outro cavaleiro lhe tinha de rédea dois ginetes. Hermengarda, a quem o perigo e
a esperança haviam restituído toda a natural energia, não hesitou em
acompanhar o seu audaz e misterioso salvador. Seguindo os caminhos tortuosos e
incertos que as tendas do imenso arraial formavam e guiando-se pela Lua, que
principiava a sair detrás dos outeiros, os três fugitivos encaminharam-se para o
lado do campo além do qual as montanhas, lá ao longe, reflectiam já o luar das
cumeadas cobertas de neve.
Entretanto Al-Fehri correra a despertar os negros da guarda do emir, e o
cavaleiro ainda ouviu os gritos destes ao contemplarem o incêndio mais prestes
em acordá-los que o eunuco. À entrada da tenda, o vigia que devera despertá-los
ao primeiro sinal de Abdulaziz havia adormecido de sono mais profundo que o
deles. Um punhal enterrado na garganta até o punho lhe selara para sempre os
lábios. Os gestos de desesperação de Al-Fehri fizeram conhecer aos soldados o
perigo do emir. Por entre as chamas, ferido e semimorto, a custo puderam salvá-
lo. Pouco a pouco, o tumulto alongou-se pelo arraial: os xeiques árabes e os
capitães de Juliano corriam para o lugar onde brilhava o incêndio, e, dentro em
pouco, as vozes desentoadas, o tocar das trombetas, o rufar dos tambores, o
tropear dos cavalos naquela vasta planície fariam crer a quem olhasse para ali
dos montes vizinhos que no arraial se pelejava uma batalha nocturna.
No meio da confusão que produzira por toda a parte este acontecimento
inesperado e cujo motivo e circunstância inteiramente se ignoravam, ninguém
reparou nos dois cavaleiros e na donzela, que, atravessando rapidamente por
entre as tendas dos árabes e dos godos, se dirigiam para as atalaias do norte. Era,
porém, aqui onde os maiores perigos aguardavam os três fugitivos.
A revolta do campo chegara aos ouvidos dos vigias. Sobressaltados pelo clarão
que refulgia do lugar do incêndio e pelo rumor que soava dessa parte, o grito de
alarme correra de boca em boca, de uns para os outros outeiros, que
sucessivamente se iluminavam. No largo giro que tal bradar fizera, aquela cadeia
de sons uniformes fora subitamente quebrada. Lá, na almenara do norte,
nenhuma voz respondera ao vozear dos esculcas; nenhuma luz de fogueira
brilhara de novo. De cada um dos postos vizinhos, uma decania de corredores
transfretanos desceu, então, aos vales e, subindo depois por uma e outra encosta, vieram todos topar na coroa do outeiro. A claridade da Lua, cujos raios
inclinados roçavam já pela terra, viram reluzir no chão troços de armas, e,
estirados ao pé delas, estavam os corpos de seus donos envoltos nos saios de
malha. Rápido e violento devia ter sido o cometimento, numerosos os cavaleiros
inimigos; porque nem um dos atalaias pudera escapar. Nem um, que todos aí
jaziam! Braço robusto tinham por certo aqueles que assim ousavam penetrar no
campo de Abdulaziz: as feridas profundas assinadas nos cadáveres davam disso
testemunho. Não havia que duvidar: Pelágio salteara o arraial. O incêndio que
reverberava ao longe e o arruído como de um grande combate diziam que o
facho da vingança fora arrojado ao meio das tendas do Islam, e que o ferro dos
defensores da Espanha viera, nas trevas da noite, lavar com sangue o lugar dos
banquetes, tinto ainda de vinho e imundo de prostituição.
Este pensamento passou fugitivo e confuso pelo espírito dos guerreiros, que
olhavam como petrificados para a cena de morte que tinham ante si, a qual, de
um lado, era alumiada pela luz débil da Lua nascente e, do outro, pelo clarão
avermelhado e ainda mais frouxo do incêndio ao longe. Um correr de cavalos
que subiam ligeiros a encosta da banda do arraial lhes divertiu a atenção.
Volveram para lá os olhos. Três vultos montados se dirigiam para ali. Dois,
cobertos de armas escuras, ladeavam o terceiro, cujas roupas alvejavam ao luar.
Os corredores transfretanos adiantaram-se para eles. Ao aproximarem-se, viram
que o vulto branco era de mulher e que os outros trajavam saios e elmos e
traziam achas de armas. Eram em tudo semelhantes aos guerreiros de Al-Sudan
que compunham a guarda do emir.
Um dos dois cavaleiros afastou-se da donzela e, dirigindo-se aos capitães das
decanias, unidas no topo do outeiro, disse-lhe em romano, com voz que simulava
profunda cólera:
— Os inimigos entraram no campo e acometeram a própria tenda de
Abdulaziz. Os soldados do conde de Septum lhes deram passagem: porque a eles
estava confiada a guarda do campo. Em qual das atalaias estão os traidores?
— Os valentes da Transfretana nunca mereceram esse nome — replicou um
dos decanos ou capitães dos esculcas. — Foi aqui onde deram o passo aos
inimigos; mas o caminho destes foi por cima dos seus cadáveres. Julgai-os.
E as duas decanias afastaram-se para os lados. Vinte cadáveres estavam
lançados por terra.
— Sobre eles não caiu o opróbrio na sua última hora — disse o guerreiro
depois de contemplar um momento aquele espectáculo. — Abdulaziz ordena que
se guardem estreitamente as saídas do campo. Não tardam os cavaleiros zenetas
que vêm ajuntar-se nas atalaias convosco, a fim de que nenhum infiel possa
escapar, enquanto nós vamos conduzir para lugar seguro, fora do arraial revolto,
a escrava querida do emir. Vinde! — prosseguiu ele, voltando-se para o
companheiro.
Atravessando por entre os soldados tingitanos, a donzela e os seus libertadores
começaram a descer apressadamente a encosta.
Já os três fugitivos iam a alguma distância, quando, como tomado de uma
ideia súbita, um dos esculcas exclamou:
— Aquele homem é godo! Nenhum árabe fala assim a língua romana: muito
menos os broncos guerreiros de Al-Sudan. Por minha fé, que são inimigos!
Os acontecimentos inesperados dessa noite, a incerteza em que se achavam os
esculcas sobre o que sucedia no arraial, a rapidez com que se passara esta cena
e, sobretudo, a audácia e o tom imperativo com que o desconhecido falara não
haviam dado lugar à reflexão e às suspeitas. Mas as palavras do soldado foram
para todos um raio de luz:
— Tens razão, bucelário — atalhou o capitão da decania. — Fazei-os parar.
Os três, que já iam a meia encosta, ouviram muitas vozes clamar:
— Esperai!
— Somos perseguidos! — disse em voz baixa aquele que ficara junto da
donzela enquanto o outro falava com os vigias.
— Está salva! — respondeu o companheiro, que parecia ter concentrado todos
os seus cuidados num pensamento único, a fuga de Hermengarda.
Duas flechas lhes sibilaram então por cima das cabeças.
— Covadonga e Pelágio! — gritou o que proferira as últimas palavras. Eram
chegados à raiz do monte, junto ao qual uma planície inculta e coberta de urzes
se estendia até ir topar com os bosques que povoavam os primeiros cabeços das
serranias setentrionais.
A esta voz, lá na orla da floresta, ao cabo do sarçal, surgiram de repente uns
reflexos metálicos, que se agitavam trémulos, semelhantes à fosforescência de
um marnel por noite sem lua. Depois, o grito de « Covadonga e Pelágio!» foi
repetido daquele lado da gandra, como respondendo ao que soltara o cavaleiro.
— São os nossos valentes irmãos — disse ao companheiro o que falara com os
decanos das tiufadias transfretanas. — São nossos irmãos que nos esperam. Tu,
Sancion, guiarás ao meio deles a nobre irmã do duque de Cantábria. Entretanto
eu reterei aqui os miseráveis renegados, que já descem do outeiro a perseguir-
nos: retê-los-ei enquanto alcançais a entrada do bosque e vos embrenhais na
serrania, seguindo ao norte. A agrura das montanhas e a profundeza dos vales das
Astúrias demorarão os inimigos, quando eu haja de perecer e não puder
embargar-lhes os passos. Ide-vos.
— Não perecerás sem mim, cavaleiro negro — replicou o fero Sancion. —
Cumprirei o que ordenas, porque jurei obedecer-te cegamente enquanto não
salvássemos a irmã de Pelágio. Mas, apenas alcançar a orla da floresta onde
mandaste esperar os nossos dez companheiros, voltarei com todos os que me
quiserem seguir. Para guiar a filha de Fávila bastam dois guerreiros: o resto não
bastará, talvez a reter durante o tempo necessário para a fuga a turba dos infiéis
que se aproxima.
E, sem esperar a resposta do cavaleiro negro, Sancion adiantou-se, dizendo à
donzela, que apenas pudera perceber algumas palavras truncadas da
conversação dos dois:
— Partamos!
E a galope, acompanhado de Hermengarda, brevemente se alongou pela
vereda torcida, que se distinguia no meio das moitas, como beta alvacenta
estampada no tapete escuro das sarças.
A atenção do cavaleiro negro, que os seguira com os olhos, foi, porém,
distraída para o outro lado pelo tropear, já pouco distante, dos corredores
transfretanos, que a toda a brida se acercavam dele. Era chegada a ocasião de
mostrar o extremo do seu esforço.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Eurico, o presbítero- Alexandre Herculano
RandomEurico, o Presbítero é a mais importante obra de Alexandre Herculano, um dos maiores escritores do Romantismo português. Lá estão presentes características marcantes do romance Romântico, como a idealização do herói, a valorização dos sentimentos e...