A transgressão dos juramentos tem crescido despeadamente, e o costume de
trair os nossos príncipes cada vez é mais frequente.
Concílio Toledano XVI, C. 10O Sol ia já em alto quando o grito de « Allah hu Acbar!» [20] soou no centro dos
esquadrões do Islam. Era a voz sonora e retumbante de Tárique. Repetido por
milhares de bocas, este grito restrugiu e ecoou, como o estourar de trovoada
distante, pelos pendores das serras e murmurou e perdeu-se pelos desfiladeiros e
vales. A cavalaria árabe, enristando as lanças, arremessou-se pela planície e
desapareceu num turbilhão de pó.
— Cristo e avante! — bradaram os godos: e os esquadrões de Roderico
precipitaram-se ao encontro dos muçulmanos. São como dois bulcões
enovelados, que, em vez de correrem pela atmosfera nas asas da procela, rolam
na terra, que parece tremer e vergar debaixo do peso daquela tempestade de
homens. O ruído abafado e bem distinto do mover dos dois exércitos vai-se
gradualmente confundindo num som único, ao passo que o chão intermédio se
embebe debaixo dos pés dos cavalos. Essa distância entre as duas muralhas de
ferro estreita-se, estreita-se! É apenas uma faixa tortuosa lançada entre as duas
nuvens de pó. Desapareceu! Como o estourar do rolo de mar encapelado,
tombando de súbito sobre os alcantis de extensas ribas, as lanças cruzadas ferem
quase a um tempo nos escudos, nos arneses, nos capacetes. Um longo gemido,
assonância horrenda de mil gemidos, sobreleva ao som cavo que tiram as
armaduras batendo na terra. Baralham-se as extensas fileiras: cruzam-nas
espantados os ginetes sem donos, nitrindo de terror e de cólera, com as crinas
eriçadas e respirando um alento fumegante. Não se distingue naquele oceano
agitado mais que o fuzilar trémulo das espadas, o relampaguear rápido dos
franquisques, o cintilar passageiro dos elmos de bronze; não se ouve, senão o tinir
do ferro no ferro e um concerto diabólico de blasfémias, de pragas, de injúrias
em romano e em árabe, inteligíveis para aqueles a quem são dirigidas, não pelos
sons articulados, mas pelos gestos de ódio e desesperação dos que as proferem.
De vez em quando, um brado retumba por cima do estrupido: são os capitães que
buscam ordenar as batalhas. Debalde! As fileiras têm rareado: o combate
converteu-se num duelo imenso ou, antes, em milhares de duelos. Cada cavaleiro
árabe travou-se com um cavaleiro godo, e os dois contendores esquecem-se de
tudo quanto os rodeia: são dois inimigos, cujo ódio nasceu e encaneceu num
momento, e num momento esse rancor é intenso quanto o fora, se por largos dias
se acumulara sem poder resfolegar. Firmes, os guerreiros cristãos vibram a
pesada acha de armas que tomaram dos Francos, ou jogam a espada curta e
larga dos antigos Romanos, porque as lanças voaram em rachas tanto das mãos
dos godos, como das dos árabes. Estes, curvados sobre os colos dos cavalos e
cobertos com os leves escudos, volteiam em roda dos adversários, e, quase ao mesmo tempo, os acometem por um e por outro lado, tão rápido é o seu
perpassar. Nesta luta da força e da destreza, ora o duro neto dos Visigodos,
deslumbrado pelo incessante dos golpes, esvaído pelas muitas feridas, sufocado
pelo peso da armadura, vacila e cai, como o pinheiro gigante; ora o ligeiro
Agareno vê coriscar em alto o franquisque e logo o sente, se ainda sente,
embargar-lhe o último grito na garganta, até onde rompeu, partindo-lhe o crânio,
e sulcando-lhe o rosto. Assim, os centros dos dois exércitos semelham o tigre e o
leão no circo, abraçados, despedaçando-se, estorcendo-se enovelados, sem que
seja possível prever o desfecho da luta, mas tão-somente que, ao adejar a vitória
sobre um dos campos, terá descido sobre o outro o silêncio e o repouso do
aniquilamento.
Os soldados que seguiam a bandeira de Teodemiro tinham-se abalado para o
combate apenas viram partir os esquadrões de Roderico. A ala direita dos
maometanos era capitaneada pelo emir da cavalaria africana, Mugueiz, a quem
a sua origem cristã fizera dar o nome de Al-Rumi. O emir era o mais valente e
experimentado dos capitães de Tárique, e por isso este fiara do renegado o
mando daquela ala, na qual também esvoaçava o pendão de Juliano, que, se não
abandonara, como Al-Rumi, a crença do Calvário, tinha, contudo, amaldiçoado
também a santa religião da pátria. Estes dois guerreiros, ferozes ambos, um por
índole e hábito, outro por vingança e ambição, amavam-se mutuamente, porque
os fizera irmãos uma palavra escrita em suas consciências, a máxima afronta
humana, o nome de renegados.
O recontro dessa ala foi semelhante em tudo ao do grosso das duas hostes,
salvo que aí o franquisque encontrava no ar o franquisque, a injúria de godos
respondia à injúria proferida por bocas de godos, e as imprecações do ódio
trocavam-se com maior violência ainda. Teodemiro combatia à frente das suas
tiufadias onde mais aceso ia ser o travar da batalha, sem, todavia, esquecer o
ofício de capitão. Era isto; era o exemplo que tornava invencíveis os seus
soldados. Guiando os cavaleiros tingitanos, Juliano também rompera primeiro
adiante dos árabes. Os dois antigos companheiros de combates haviam topado
em cheio, e as lanças voaram-lhes das mãos em rachas. Os cavaleiros passaram
um pelo outro como relâmpagos, para logo tornarem a voltar arrancando das
espadas.
— Circuncidado! — bradou Teodemiro ao perpassar por Juliano na rapidez da
carreira.
— Escravo! — replicou o conde de Septum, rangendo os dentes.
A injúria vibrada pelo duque de Córdova penetrara mui fundo. Semelhante a
Judas, o conde de Tingitânia traíra a pátria pela cobiça e, defendendo o
estandarte do profeta de Medina, fazia triunfar o Alcorão. Duas vezes a sua ala
era a de um circunciso.
Os dois cavaleiros godos acometeram-se com toda a fúria de rancor
entranhável: as espadas, encontrando-se no ar, faiscaram como o ferro abrasado
na incude: mas a de Teodemiro fora vibrada por braço mais robusto, e, posto que
o golpe descesse amortecido, ainda entrou profundamente no escudo que o seu
adversário levava erguido sobre a cabeça. Entretanto Juliano, revolvendo ligeiro a espada, rompeu a couraça do duque de Córdova e feriu-o levemente no lado.
— Vencedor dos Vascónios — gritou, rindo diabolicamente, o conde de
Septum —, olha por ti! Nas margens do Chry sus não há taças de vinho, como
aquelas com que te embriagavas nos paços do teu senhor. Aqui o que corre é
sangue!
Teodemiro tinha já desencravado a espada do escudo de Juliano, em que
ficara embebida. Rapidamente ela descera de novo guiada pela raiva que
abafava o guerreiro. O golpe quebrou o escudo já falsado e bateu no elmo
brilhante do conde, com tal fúria, que este perdeu a luz dos olhos e curvando-se
para adiante, abraçou-se ao colo do cavalo, quase sem sentidos. Outra vez que o
duque de Córdova vibrasse o ferro, Juliano estava perdido: o caminho da morte lá
lhe ficara indicado no elmo.
— Que olhas para o chão, traidor? — disse Teodemiro, com voz trémula de
cólera e de escárnio e segundando o golpe. — É a terra da pátria que vendeste
aos infiéis como tu!
O ferro, porém, não pôde chegar à cimeira do capacete do conde. Outro
ferro, seguro por mão robusta, se meteu de permeio. Era a espada de Mugueiz, o
qual, passando, vira o perigo iminente do seu amigo e correra para o salvar.
Então Teodemiro voltou-se contra o renegado, e um violento combate se
travou entre ambos. Mugueiz não era menos destro que o príncipe da Bética.
Mais membrudo e robusto que ele, e além disso ainda não ferido, a vantagem era
toda sua; mas o esforço de Teodemiro supria essa inferioridade.
Entretanto Juliano recobrara o alento; a vergonha, o despeito, a sede de
vingança estorciam-lhe o coração. O nobre ginete em que cavalgava, sentindo
seu senhor semimorto, tinha corrido espantado até onde a multidão de cristãos e
árabes, travados em peleja sanguinolenta, lho consentia. O conde, cravando-lhe
os acicates, com a espada erguida na mão, arremessou-o para o lugar onde o
duque de Córdova pelejava com Mugueiz. Era um feito covarde: mas que
importava a Juliano a desonra? Assinalado com o ferrete indelével de traidor,
havia-se habituado a viver para um sentimento único — a vingança. E a vingança
era quem o impelia.
Neste momento, por uma das pontes já desertas lançadas na noite antecedente
sobre o Chry sus soava um correr de cavalo à rédea solta. Alguns soldados que
andavam mais perto da margem volveram para lá os olhos. Um cavaleiro de
estranho aspecto era o que assim corria. Vinha todo coberto de negro: negros o
elmo, a couraça e o saio; o próprio ginete murzelo: lança não a trazia. Pendia-lhe
da direita da sela uma grossa maça ferrada de muitas puas, espécie de clava
conhecida pelo nome de borda, e da esquerda a arma predilecta dos godos, a
bipene dos francos, o destruidor franquisque. Subiu rápido a encosta de onde
Roderico atendia aos sucessos da batalha. Parou um momento e, olhando para
um e outro lado, endireitou a carreira para o lugar onde flutuavam os pendões
das tiufadias da Bética. Como um rochedo pendurado sobre as ribanceiras do
mar, que, estalando, rola pelos despenhadeiros e, abrindo um abismo, se atufa
nas águas, assim o cavaleiro desconhecido, rompendo por entre os godos,
precipitou-se para onde mais cerrado em redor de Teodemiro e Mugueiz fervia o pelejar.
Juliano tinha-se aproximado no entanto do esforçado duque de Córdova, que,
ferido e obrigado a combater com o destro e feroz renegado, a custo se poderia
defender dos golpes do conde, golpes que o ódio e a cólera dirigiam. Alguns
cavaleiros da Bética voaram a socorrer Teodemiro; mas os árabes com que
andavam travados tinham-nos seguido de perto e, rodeando Mugueiz, haviam
tornado inútil o socorro dos cavaleiros cristãos. O apertado revolver das armas
formava uma selva de ferros em volta dos dois capitães inimigos, através da qual
debalde o conde de Septum buscara muitas vezes abrir caminho para ferir
Teodemiro, até que finalmente, galgando por cima de um árabe derribado,
pudera vibrar um golpe. O elmo do nobre godo restrugira, e o guerreiro vacilara.
A última página da sua vida parecia escrita no livro dos destinos. Os dois
adversários do duque de Córdova iam tingir de negro as que ainda lhe restavam
em branco.
Mas o cavaleiro desconhecido havia passado através da hoste goda e chegara
à dianteira dos árabes. Com a maça jogada às mãos ambas abalava e rompia as
armas mais bem temperadas, e as puas entrando pelas carnes dos que se lhe
punham diante iam esmigalhar-lhes os ossos. Por onde ele atravessava, nem as
fileiras se uniam, nem os godos achavam adversários. Como a charrua, tirada
com violência em chão batido de planície, deixa após si grossas glebas
revolvidas, assim aquela arma irresistível deixava, ao passar, uma larga cauda de
cadáveres entretecida de moribundos debatendo-se em terra. Os godos,
espantados, perguntavam uns aos outros quem seria aquele temeroso guerreiro;
mas entre eles ninguém havia que pudesse dizê-lo. Se combatesse pelos
muçulmanos, crê-lo-iam o demónio da assolação; mas, pelejando pela cruz, dir-
se-ia que era o arcanjo das batalhas mandado por Deus para salvar Teodemiro e,
com ele, os esquadrões da Bética.
No instante em que o cavaleiro negro chegou ao lugar onde já o duque de
Córdova só procurava amparar-se contra Mugueiz e Juliano este, cego de furor,
descia com segundo golpe: a espada, porém, voou-lhe das mãos em pedaços,
batendo na maça do cavaleiro negro, que deixando depois cair a pesada borda ao
longo da efípia [21], ergueu o franquisque e, descarregando-o sobre o ombro do
renegado, lhe fez uma ferida profunda. A dor arrancou um brado a Mugueiz, a
cujo som o seu ginete amestrado o arrebatou para o meio dos árabes, e Juliano,
vendo-se desarmado, fugiu após ele. Então o desconhecido disse a Teodemiro
algumas palavras sumidas e, sem esperar resposta, internou-se outra vez no meio
dos esquadrões agarenos.
Desde este momento a ala direita dos muçulmanos começou de afrouxar,
porque Mugueiz, malferido, se retraíra para o acampamento. Alguns xeiques
ilustres jaziam moribundos ou mortos às mãos do cavaleiro negro, que parecia
escolher as suas vítimas entre os mais nobres guerreiros do Islam. Animados por
ele, os godos, cobrando novos brios, procuravam imitá-lo e arremessavam-se
destemidos através da hoste inimiga, que debalde procurava resistir à torrente. Os
sinais da vitória dos godos eram já dolorosamente certos para os muçulmanos.
Roderico viu isto e exultou. O Sol inclinava-se para o ocaso e o centro do exército árabe, onde se achava Tárique, estava firme; mas os clamores do
triunfo, que já soavam na ala esquerda dos cristãos, começavam a espalhar a
incerteza entre os soldados do profeta. Foi então que o rei dos Godos ordenou à
sua ala direita descesse contra os berberes e, dispersando-os, acometesse os
esquadrões de Tárique, que pareciam haver lançado raízes no solo
ensanguentado do campo da batalha.
Um quingentário partiu à rédea solta para levar a ordem fatal aos filhos de
Vitiza. A frente dos seus soldados os dois irmãos falavam a sós com Opas e
contemplavam o combate. Apenas ouviram o que se lhes ordenava, Sisebuto e
Ebas, voltando-se para os esquadrões que lhes obedeciam, clamaram:
— Vingança!
Este brado foi repetido por Opas e pelos nobres que o seguiam. Então, no meio
daquela espessa selva de lanças repercutiu um grito que respondia aos dos
capitães:
— Glória ao rei Sisebuto! Morte ao traidor Roderico!
E os filhos de Vitiza e o hipócrita bispo de Híspalis, com as lanças aprumadas e
as espadas na bainha, lançaram-se pelo vale abaixo, e a mor parte dos
esquadrões seguiram-nos. Apenas Pelágio, duque de Cantábria, ficou imóvel à
frente dos soldados vascónios e de algumas tiufadias da Galécia e da Narbonense
que, alheias à traição daqueles mal-aventurados, recusaram segui-los.
Roderico viu enovelarem-se nos ares os rolos de pó que se alevantavam sob os
pés dos ginetes:
— Valentes mancebos — exclamou —, hoje a Espanha vai ser salva por nós!
Vede — acrescentava, sorrindo e falando com os guerreiros que o cercavam,
muitos dos quais haviam condenado a sua arriscada confiança na generosidade
dos filhos de Vitiza —, vede como eles voam contra os africanos! Quando um
grande risco ameaça a pátria não há ódios entre os Godos: todos eles são irmãos,
porque todos eles são filhos desta nobre terra de Espanha.
E o quingentário que voltava gritou de longe:
— Somos traídos!
Roderico empalideceu. A certeza da vitória tinha-se desvanecido.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Eurico, o presbítero- Alexandre Herculano
RandomEurico, o Presbítero é a mais importante obra de Alexandre Herculano, um dos maiores escritores do Romantismo português. Lá estão presentes características marcantes do romance Romântico, como a idealização do herói, a valorização dos sentimentos e...