Das brenhas através afugentando-os
Co'a rápida carreira à ponte impele-os.
Ofício Moçárabe: Hino de S. Torquato.Os socorros dados imediatamente a Abdulaziz tinham-lhe restituído o
sentimento da vida. O clarão da sua tenda, que ainda ardia a poucos passos do
lugar para onde o haviam transportado, foi a primeira coisa que lhe feriu a vista
ao descerrar os olhos do letargo em que estivera submerso. Esse facho
desmesurado, cujo foco vermelho lhe aparecia coberto de vasta cúpula de fumo
negro, o crepitar do incêndio, o rumor e alarido do arraial e a inquietação que se
lia nos gestos dos que o rodeavam retraçaram-lhe subitamente no espírito a cena
que se passara, pouco antes, naquele pavilhão incendiado. Era um quadro
complexo e terrível: e o primeiro sinal de vida que o emir deu foi um grito de
horror e desesperação. Alçando violentamente o corpo, ficou assentado sobre o
almadraque em que estava deitado. Com o rosto lívido e tinto do sangue que lhe
corria da fronte e o olhar espantado e feroz, hesitar-se-ia, ao vê-lo, em resolver
se esse vulto era o de homem vivo, se o de morto que, afastando o sudário, se
fosse a erguer da cova para revelar alguns dos temerosos mistérios que encerra a
aparente quietação do sepulcro. Parecia que o aspecto do emir convertera em
estátuas todos os circunstantes: a imobilidade era completa, e o silêncio profundo.
Mas uma e outra coisa duraram apenas rápido instante. Com a voz rouca e
afogada, o árabe rugia:
— Segui-o! segui o infiel!... As suas armas são negras e semelhantes às dos
guerreiros de Al-Sudan... A melhor cidade do Gharb e a mais bela das minhas
escravas a quem mo trouxer vivo aqui. Todos!... Ide, trazei-mo vivo! Prestes,
xeiques, vális, alcaides, cavaleiros do profeta! Prestes! correi após o meu
assassino!
As palavras de Abdulaziz revelavam o delírio da sua alma; xeiques, vális e
alcaides olharam tristemente uns para os outros e não fizeram um único
movimento.
— Quê! Não me obedeceis? Não obedeceis ao filho de Muza — exclamou o
emir — porque a sua voz não soa no meio das trombetas e tambores; porque ele
não cinge a espada, nem cavalga o seu corcel de batalha? Sem mim, aterram-
vos as solidões das montanhas? Xeiques do Saara e de Barca, vális de Andaluz,
alcaides e almocadéns do exército dos crentes... sois covardes e desleais. Quando
corre este sangue, vós não sabeis vingá-lo!
— Não somos desleais nem covardes, Abdulaziz — interrompeu o mancebo
Abdalá, o único dos chefes árabes que ousava replicar ao emir nos seus violentos
acessos de furor. — Mas como queres que te obedeçamos, se não sabemos de
quem te havemos de vingar? De um indivíduo ou de milhares deles; dos
adoradores de Deus ou dos infiéis nazarenos; de nossos irmãos ou de nossos inimigos, não nos importa. Terás a vingança que pedes, inteira quanto mãos de
homens a podem dar. A torrente dos teus cavaleiros espera, apenas, que profiras
um nome e apontes um lugar, para correr destruidora e irresistível. Não deves
antes disso condenar-nos.
— Quereis um nome e um lugar? — interrompeu o emir. — Ainda, pois, não
os adivinhastes? Pelágio e as montanhas do Norte. Lá, lá!... Era ele ou um
demónio o que me feriu... Porquê?... Quando?... Oh, agora me lembra. Ia possuí-
la, e roubaram-na! Por alto preço pagarão os nazarenos de Al-Djuf [28] tanta
audácia. A cavalo, almogaures do deserto... Persegui-o até o encontrardes. Mas
vivo... quero-o vivo em minhas mãos! Ai daquele que o matar.
Alguns dos xeiques iam já a sair da tenda para executar as ordens do emir.
Um brado súbito deste os fez parar.
— Não!... Não partireis sem mim! Quero acompanhar-vos; hei-de
acompanhar-vos pelas brenhas e desvios; quero assistir à carnificina desses mal-
aventurados que ainda resistem aos decretos de Deus. É preciso que em breve
estejam nas minhas mãos Pelágio e sua irmã. Ambos!... Que me tragam ambos!
Daí a pouco, umas andas forradas de telas preciosas recebiam Abdulaziz,
conduzido para ali sobre o mesmo almadraque ensanguentado em que os
médicos judeus lhe haviam ligado as feridas. Rodeavam as andas os cavaleiros
negros de Al-Sudan. Duzentos berberes, filhos das serranias do Atlas, estavam,
também, em volta delas: estes deviam transportá-las a giros pelos alcantis das
Astúrias. As renques de tendas alvejantes, pontiagudas, formando uma como
vasta cidade, e que, ao subir da Lua, davam ao arraial o aspecto de um cemitério
do Oriente, sem os ciprestes fúnebres e esguios; toda essa multidão de pavilhões
brancos, semelhantes a um mar de pirâmides, havia desaparecido, e apenas o
luar, batendo nos ferros das lanças dos esquadrões cerrados e na geada que cala
sobre os turbantes dos cavaleiros, refrangia trémulo um clarão prateado.
E o sussurro que se ouvia entre tantos milhares de homens era, apenas, o
murmúrio das respirações opressas pelo frio nocturno e o resfolegar dos ginetes,
aspirando o nevoeiro húmido que se alevantava da terra.
Mas lá, na vanguarda, para o lado das atalaias do norte, donde se
descortinavam os topos recortados das montanhas sobre o chão claro do céu,
como fileiras de gigantes petrificados durante uma dança de embriaguez, tão
fantásticos eram os seus contornos, ouvia-se o ruído alto e indistinto do cruzar de
muitas vozes, do tropear de muitos cavalos; viam-se lampejar as armas nos visos
dos dois últimos outeiros que por aquela parte rodeavam o campo, e agitarem-se
ondas de vultos humanos e sumirem-se, onda após onda, como se os devorasse
voragem aberta de súbito debaixo de seus pés: eram os cavaleiros que
transpunham a eminência. O exército detrás daqueles dois outeiros, que
formavam como um ponto único, vinha sucessivamente engrossando até o lugar
em que estava Abdulaziz. Parecia um desmesurado triângulo de ferro, a ponto de
ir bater na muralha da serrania, que, vestida com a sua armadura de selvas,
esperava o embate daquele disforme vaivém, que já começava a oscilar ante
ela.
Uma cena horrenda se passava entretanto, além das atalaias, no extenso sarçal que se estendia até o sopé das primeiras montanhas. Os soldados transfretanos
tinham-se lançado pela encosta abaixo atrás dos fugitivos. Ao chegarem à
planície, um dos três desconhecidos estava diante deles, esperando-os quedo no
meio da estreita trilha aberta por entre as urzes. A acha de armas goda e a cadeia
que lha prendia ao braço reluziam unicamente naquele vulto, cujo saio e cavalo
negros e cujo silêncio profundo faziam lembrar um desses espectros errantes alta
noite pelos lugares desertos.
Os outros dois vultos galopavam a alguma distância, encaminhando-se para a
orla do bosque, onde continuavam a reverberar reflexos de armas polidas.
— Quem és tu? — disse um dos capitães das decanias, dirigindo o cavalo para
o vulto negro. — Quem és tu, que ousaste enganar os atalaias do campo de
Abdulaziz, os guerreiros do conde de Septum?
— Sou um homem que ainda não renegou nem da Cruz, nem da Espanha; um
homem que não aceitou o ouro dos bárbaros para ser o assassino covarde de seus
irmãos.
— Miserável, que ajuntas ao engano a insolência! — rugiu o decano, alçando
a espada. — As derradeiras palavras de orgulho e rebeldia acabam de sair-te dos
lábios.
Últimas palavras foram, porém, as do decano: a borda girou sibilando no ar, e
o guerreiro transfretano caiu para o lado morto, como se o fulminara o raio.
Com um grito de horror e de cólera, os que o seguiam precipitaram-se para o
desconhecido.
Rodeado de quase vinte homens, o cavaleiro negro repetia apenas uma parte
das gentilezas que praticara na fatal jornada do Chrysus. A cada golpe da borda
respondia um gemido de moribundo; depois, uma injúria ameaçadora dos que
ficavam; depois, um rir de desprezo do cavaleiro, e daí a pouco, um novo gemido
de alma que se despedia da terra. O tropel dos pelejadores rareava de instante a
instante.
Mas os que expiraram não ficarão sem vingança. Os cabos das decanias, antes
de seguirem os fugitivos, tinham enviado um bucelário que relatasse a Juliano o
que sucedera na atalaia e como eles iam no alcance daqueles a quem
irreflectidamente haviam dado passagem. O bucelário fora encontrar o conde
junto de Abdulaziz. A sua narração e o que se passara na tenda do emir eram
dois factos que mutuamente se explicavam. Os esquadrões mais bem
encavalgados foram despedidos logo em seguimento dos fugitivos. Na ideia de
que só Pelágio podia ter audácia bastante para vir acometer o filho de Muza na
sua própria tenda, os capitães do exército muçulmano não duvidaram um
momento de que fosse ele o desconhecido. Colhendo-o às mãos antes de se unir
aos seus montanheses, o extermínio destes seria fácil empresa. Assim, os
melhores almogaures deviam persegui-lo sem descanso nem tréguas até o
cativarem. Sendo assaz numerosos para resistirem a qualquer recontro
inesperado dos godos das Astúrias, bastaria que o grosso do exército os seguisse
de perto para fazer que a vitória fosse indubitável e completa.
Uns após outros, os esquadrões dos almogaures desciam já dos outeiros: o
ruído do combate e o brilho das armas serviam-lhes de guia. Pareciam rolar pela encosta e, cegos na carreira, atufavam-se no mato, que estalava debaixo dos
leves pés dos ginetes árabes. O cavaleiro viu-os e pensou. Esperar a pé firme
milhares de homens não era esforço, era loucura. Além disso, os seus
companheiros deviam ter-se já embrenhado nas selvas com a irmã de Pelágio.
Até aí não fizera mais do que defender-se dos soldados transfretanos que o
cercavam; mudando, porém, da defensão para o cometimento, arrojou-se contra
os seus adversários, e em poucos instantes os que não caíram ante a acha de
armas foram constrangidos a fugir, buscando amparar-se no meio dos
esquadrões que se aproximavam.
Então o cavaleiro deu volta. A senda alvacenta que se estirava por entre o
mato até a floresta começou a embeber-se-lhe debaixo dos pés do ginete. À
vista, assemelhava-se a um rolo de fita, estendido e retesado por momentos, que
solto, busca, volvendo-se de novo, a sua curvatura anterior. A rapidez da corrida
era quem o podia salvar: a dianteira dos almogaures árabes hesitara vendo
recuar tantos homens diante de um homem só; porém, ao retroceder do
cavaleiro, lançavam-se despeadamente após ele para o alcançarem antes que
chegasse ao bosque.
Mas a distância que os separava era grande, e os árabes, lançando-se às cegas
por entre as sarças e estevas e enredando-se nelas, retardavam-se a si próprios e
aumentavam essa distância. A sua alarida, que ia retumbar ao longe nas
anfractuosidades da serra, ajudava o esporear do guerreiro com o espanto que
produzia no ágil e robusto ginete.
Já bem perto do extremo da selva, o cavaleiro pôde distinguir uns vultos que
pareciam esperá-lo. Ao seu bradar « Covadonga e Pelágio!» respondeu o
mesmo brado, proferido por uma voz retumbante. Conheceu-a: era a de Sancion.
O fero gardingo cumprira a sua promessa. A despedida dos cristãos do campo de
Abdulaziz devia ficar escrita com letras de sangue na história dos triunfos do
Islam.
Chegando à orla do bosque, as primeiras palavras que o cavaleiro negro soltou
foram dirigidas a Sancion:
— Por que voltastes sem vo-lo eu ordenar, vós os que tínheis jurado obedecer-
me em tudo? Onde está a irmã de Pelágio?
— Segue os desvios da serra — respondeu Sancion. — Astrimiro e Gudesteu a
acompanham: Hermengarda está salva. Só até este ponto nos ligava o juramento
que demos. Foste nosso capitão: agora cessaste de o ser. Homens livres numa
terra serva, queremos combater onde tu combates, morrer se tu morreres. Ao
menos — acrescentou em tom amargo — não poderás dizer de novo que foste o
último no pelejar enquanto os valentes fugiam.
— Louco! — exclamou o cavaleiro negro. — Junto do Chrysus a Espanha
pedia aos seus filhos que morressem sem recuar: aqui é também a pátria que
exige dos seus últimos defensores que se não votem a morte inútil. Fujamos! vos
digo eu; porque a fuga não pode desonrar aqueles que mil vezes têm provado
quanto desprezam a vida. Vede... Não são apenas alguns corredores que nos
perseguem: são esquadrões e esquadrões de agarenos que transpõem após nós a
assomada.
Mas eles não o escutavam: Sancion, seguido dos seus nove companheiros,
investia com os árabes, que tinham entretanto chegado.
Semelhante à segure, entrando no âmago do carvalho, sob os golpes do robusto
lenhador, aquele punhado de homens, a cuja frente se achava Sancion, penetrou
no maciço da cavalaria árabe. O ferir das espadas nos saios e elmos retiniu num
som estridente, e a alarida dos sarracenos foi cortada por momentâneo silêncio:
depois, ouviram-se alguns gemidos abafados, a que sucederam novos gritos de
ameaça e furor e o bater e o reluzir trémulo do ferro, cruzando-se com o ferro, e
o tropear confuso dos ginetes em recontro bem travado. Os árabes haviam
parado diante de tanta ousadia. Mas, logo que o primeiro espanto passou, os dez
guerreiros cristãos, acometidos por todos os lados, começaram a recuar. O
cavaleiro negro, que ficara quedo, disse-lhes então:
— Quisestes tentar o Senhor com uma façanha inútil, e o Senhor vos
abandona. Salvai as vidas! Exige-o o desagravo da Cruz e a liberdade da
Espanha!
E pondo-se ao lado de Sancion, fez girar a sua borda destruidora no meio dos
infiéis. Naquele ímpeto os inimigos também recuaram, e o cavaleiro,
aproveitando este rápido instante, prosseguiu:
— Aos que se envergonham de poupar a vida, para a perder com glória
quando o dia do sacrifício chegar, darei eu o exemplo! Podeis dizer aos nossos
irmãos que o primeiro em fugir foi aquele que nunca fugiu; foi o cavaleiro negro.
E, voltando as costas aos agarenos, internou-se na espessura.
Habituados a considerar o desconhecido como um ente misterioso e
extraordinário, os guerreiros de Sancion deram volta, e o orgulhoso gardingo viu-
se obrigado a imitá-los.
Ei-los vão! Endireitando a carreira para o lado do norte, dirigem-se após
Hermengarda, enquanto os almogaures árabes, guiados pelo ruído dos ginetes, os
cerram de perto. Os esquadrões, penetrando na selva, assemelhavam-se a uma
serpe disforme, que se desenrolava, coleando e estirando-se por entre o
arvoredo, e que de momento a momento ameaçava tragar os fugitivos, os quais
mal podiam conservar uma pequena distância entre si e os seus implacáveis
perseguidores.
A Lua passava então nas alturas do céu: o ar, posto que frio, estava manso e
diáfano. Era uma formosa noite de Inverno; mais formosa que as sossegadas
noites do estio. As árvores, na maior parte desfolhadas, deixavam o luar, por
entre os ramos despidos e tortuosos, desenhar no chão figuras estranhas que
vacilavam indecisas: os robles nodosos e calvos, misturados com os rochedos
piramidais, que se alevantavam irregulares e fantásticos nas arestas das encostas
íngremes, nas lombadas penhascosas das serras, pareciam fileiras de demónios
caminhando de roldão a despenharem-se nos vales ou dançando nos visos das
alturas. Os cavaleiros, correndo à rédea solta, sentiam coar-lhes nas veias
involuntário terror, aumentado pelo estrupido soturno da cavalaria sarracena, que
soava e ia morrer a grande distância num quase imperceptível sussurro.
A fúria da carreira crescia ao passo que os fugitivos se embrenhavam na
maior espessura da floresta. Durante algum tempo, eles tinham podido descortinar os píncaros das montanhas e, lá muito ao longe, os mais altos cabeços
do Vínio, que reflectiam o luar no seu manto prateado de neve.
Mas a selva já começa a rarear, e os ginetes a resfolegarem com mais
violência: de instante a instante os cavaleiros cristãos, espreitando as estrelas do
horizonte, que lhes servem de guias, vêem fugir aquela teia enredada, que as
franças das árvores lhes afiguram como lançada sobre o chão claro do
firmamento. Menos frequentes, as bastas e perenes folhagens dos medronheiros
passam como globos negros, que, elevando-se a pouca altura da terra, voam
despedidos, por um e por outro lado, para trás deles. É que os onze guerreiros
principiam a galgar as alturas que são como a base irregular das montanhas,
como o pedestal comum daqueles obeliscos da criação. O galope dos corcéis dá
um som áspero de ferro batendo em pedra, e o alvejar desta revela que as
torrentes passaram por lá e arrastaram a relva e os musgos que a humidade
fizera nascer no Outono sobre o pó, acumulado nos barrocais pelas ventanias do
estio. Naquele solo pedregoso e revolto torna-se mais dificultosa a fuga, e o
ímpeto da carreira afrouxa visivelmente. Os árabes começam a sair de entre os
arvoredos e a aproximar-se dos cristãos. Enquanto estes tenteiam a medo o chão
mal gradado, que lhes rola debaixo dos pés dos cavalos, porque para eles o
tropeçar, o vacilar é a morte, os seus numerosos perseguidores, atentos só a
alcançá-los, galgam por cima do desgraçado almogaure que, derribado pelos
próprios companheiros, expira sem combate, sem glória e sem que a
perseguição dos fugitivos deixe por isso de ser, como até aí, incessante,
implacável, vertiginosa.
Depois de subirem a encosta, o cavaleiro negro e os que o seguiam viram
alongar-se diante deles uma chapada plana, em cujo topo a serra se alteava de
novo, com os seus mil acidentes de cordilheiras cortadas, de algares profundos,
de gargantas selvosas, ao lado das quais os picos agudos se atiravam para o ar ou
pendiam sobre os abismos e torrentes. A natureza, mais rude naquelas paragens,
tinha um aspecto soturno, vista assim, ao perto e à luz da Lua: era como um
oceano tempestuoso, onde todas as gradações da morte-cor se confundiam e
misturavam, desde a brancura desbotada e pálida do rochedo até a pretidão
fechada dos pinheiros retintos nas sombras da noite.
E por aquela dilatada chã os onze esforçados largam rédeas aos ginetes e
ensanguentam-lhes o ventre com o esporear incessante: o ruído do próprio correr
já não o sentem; confundem-se no estrupido do esquadrão de árabes que de mais
perto os segue. A vingança vai-lhes no encalce; e, se algum volve atrás os olhos,
aquele turbilhão enovelado que rola após eles, negro, rápido, tortuoso, composto
de centenares de vultos, cujos olhos afogueados reluzem nas trevas, cujos dentes
alvejam como os do javali irritado, assemelha-se-lhes a uma legião de
demónios, e a um rir infernal o tinir das espadas, o resfolegar dos cavalos, e o
murmurar dos cavaleiros, que parece entoarem-lhes já o hino da morte.
Na extensa chapada, tanto a fuga como a perseguição eram um frenesi, um
delírio. Cristãos e muçulmanos desapareciam por entre as sarças cobertas de
orvalho, e o ar, dividido violentamente, zumbia-lhes em roda, como um gemido
contínuo. Cristãos e muçulmanos punham o extremo da diligência nesta última tentativa. Além da planura, os alcantis e as selvas gigantes eram a esperança de
uns, o desalento de outros. Ali, os precipícios cortavam subitamente os caminhos
abertos pelas feras nas balças, e ao cabo de vale fundo os rochedos fechavam
imprevistamente a saída: aqui, a senda tortuosa ia morrer na torrente; lá, a
torrente em catadupa. Os godos afeitos àqueles desvios alpestres, sabiam-no; os
árabes adivinhavam-no ao descortinarem o espectáculo que tinham ante si, essa
espécie de caos nascido das grandes convulsões do globo na sua vida de muitos
séculos, que a baça claridade da noite tornava ainda mais fantástico.
Enfim, os cristãos atravessam a gandra e começam a embrenhar-se nas
solidões das mais agras montanhas. Os agarenos redobram então de energia; mas
debalde. Poucos passos medeiam entre uns e outros, e os fugitivos sentem já o
resfolegar dos cavalos e o respirar alto dos inimigos; mas esse espaço não se
encurta. Aí, parece estar de permeio o braço da Providência, que quer salvar os
defensores da Cruz. Furiosos, esquecidos da vontade de Abdulaziz, que exige para
pastos dos tormentos aquelas poucas vidas, os guerreiros do emir despedem de
longe as lanças, que vão pela maior parte cravar-se nos troncos dos robles. Duas,
porém, silvam por entre os fugitivos; ao mesmo tempo, dois ginetes param,
vacilam e caem. São os de Viterico e Liuba, os mais moços dos onze guerreiros.
Sem transição, sem esperança, o espectro da morte se lhes ergue diante dos olhos
fatal, incontrastável. « Oh minha mãe, vem receber teu filho!» foram as únicas
palavras que proferiu Viterico. Era às recordações maternas e à saudade que
esse último grito de um moribundo cheio de vida se dirigia. Liuba também
murmurou um nome; mas só Deus e ele o ouviram. Era o da sua amante, violada
e morta na tomada de Emérita. No transe final, aquela alma pura não revelara
aos homens o mistério do amor, da desesperação e do sepulcro. Órfão no mundo,
separado daquela em quem empregara o afecto de um coração virgem e que tão
tristemente perdera, Liuba, solitário sobre as ruínas da Espanha e sobre as ruínas
da própria existência, era o primeiro em se arrojar aos perigos; e nessa noite,
enfim, chegava para o desgraçado a hora apetecida do repousar eterno.
Debalde os almogaures dianteiros tentaram suster a corrida, para colher às
mãos os dois godos derribados. Impelidos pelos que os seguiam e arrastados pela
própria fúria, galgaram por cima deles; e quando, aos gritos dos almocadéns, ao
sofrear dos cavalos, ao baralharem-se os esquadrões em mó apinhada e ao
abrirem aos lados, puderam erguê-los do chão onde jaziam, as suas almas
tinham subido ao céu, e os seus cadáveres, esmagados, sanguinolentos,
desconjuntados, eram duas coisas informes, em que apenas se divisavam
vestígios de vultos humanos.
Logo que Viterico e Liuba caíram, um movimento incerto de hesitação
afrouxara um pouco a fuga dos seus companheiros; mas a voz de « avante!»
proferida pelo cavaleiro negro, lhes troou nos ouvidos, e essa voz foi seguida de
algumas palavras travadas de lágrimas, de que davam visível sinal o trémulo e
cortado com que eram proferidas:
— As almas de dois mártires sobem neste momento ao céu: eles orarão ao
Senhor para que salve a liberdade e a vida de seus irmãos, que só querem uma e
outra para combaterem pelos altares de Cristo.
Ditas estas palavras, o cavaleiro negro cravou as esporas no ventre do ginete, e
repetiu:
— Avante!
E os outros godos seguiram-no sem hesitar mais: a carreira tinha-se convertido
numa espécie de fúria louca e desesperada.
Os almogaures, desordenados já, retidos pelas diligências que faziam para
alçar os dois cadáveres, e embaraçando-se uns aos outros, viram desaparecer os
godos numa garganta estreita, entre rochedos e balças, enquanto os almocadéns
lhes bradavam também:
— Avante!
E os primeiros que puderam obedecer-lhes atiraram-se por aquela espécie de
fojo cavado pelas torrentes de muitos séculos; mas as sinuosidades da penedia
encobriam-lhes os godos, e, obrigados a parar frequentemente para conhecerem
a que parte eles se encaminhavam, cada vez sentiam mais remoto e ténue o
tropear dos ginetes.
Dir-se-ia que as palavras do cavaleiro negro haviam sido proféticas: o sangue
dos dois mártires fora, talvez, o preço da redenção dos fugitivos.
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Eurico, o presbítero- Alexandre Herculano
RandomEurico, o Presbítero é a mais importante obra de Alexandre Herculano, um dos maiores escritores do Romantismo português. Lá estão presentes características marcantes do romance Romântico, como a idealização do herói, a valorização dos sentimentos e...