Por quantas desventuras a pátria dos Godos tem sido abalada: quão repetidos a
pungem os golpes dos fugitivos e a nefanda soberba dos trânsfugas, quase
ninguém ignora.
Código Visigótico II, 1-7.A passagem de tão avultado número de godos para os inimigos e o crepúsculo
que descia obrigaram Roderico a fazer cessar o combate, enquanto a noite
pousava tranquila sobre aquela campina povoada de aflições e dores. A aurora
rompeu meiga e serena, como nos dias em que vinha trazer as alvoradas alegres
às malhadas dos pastores, que, colmadas, amarelejavam outrora pelas margens
relvosas do Chrysus, em vez das tendas de guerra, que ali alvejavam agora com
os primeiros resplendores da madrugada. O homem debatia-se aí nas vascas da
morte, e o Sol passava envolto na sua glória, indiferente às angústias daqueles
que, em seu ridículo orgulho, se chamavam monarcas e conquistadores do
mundo; passava, sem lhe importar se os vermes vestidos de ferro chamados
guerreiros se despedaçavam uns aos outros, com o delírio insensato das víboras
no momento dos seus amorosos ardores.
Pelas trevas, um ruído sumido, mas incessante, de passadas de homens e de
tropear de cavalos soara horas inteiras em um e em outro campo. Era que em
eles ambos surgira uma ideia idêntica. O rei godo havia resolvido formar um
corpo só das relíquias da sua hoste e com ele acometer a principal batalha dos
inimigos, para a destruir rapidamente antes que as alas pudessem socorrê-la. O
mesmo pensamento tivera Tárique. Semelhante à trovoada do estio, que se
amontoa durante a noite em dois pólos encontrados e ao alvorecer semeia de
coriscos as solidões do céu e povoa de estampidos discordes os ecos da terra,
assim cada um dos campos se aglomerava em uma pinha gigante; convertia-se
num homem só, para em duelo de morte resolver com o seu contendor se os
filhos das Espanhas deviam aceitar a lei do Alcorão ou continuar a abrigar-se à
sombra da divina Cruz.
Tárique lançara na frente da hoste muçulmana os trânsfugas do inimigo.
Sisebuto, Ebas, o bispo de Híspalis e o conde de Septum com os seus numerosos
guerreiros constituíam a vanguarda. Seguia-se a cavalaria árabe. Os berberes
cingiam este maciço de homens e ginetes, em parte cobertos de ferro, e os
indisciplinados cavaleiros da Mauritânia, dispersos como almogaures, deviam
vagar soltos para fazer entradas nas alas inimigas e impedir assim que elas
pudessem a tempo socorrer o centro do exército, que o general árabe esperava
desbaratar no primeiro ímpeto.
Roderico pela sua parte, tinha posto na vanguarda as tiufadias vitoriosas de
Teodemiro, os cavaleiros da Cantábria guiados pelo moço Pelágio, filho de
Fávila, que sucedera a seu pai no governo daquela província, e, finalmente, os
guerreiros escolhidos da Lusitânia e da Galécia, que ele próprio capitaneava.
Como Tárique, o rei godo colocara de um e de outro lado na hoste apinhada os
flecheiros e fundibulários selvagens do Hermínio e os montanheses vascónios,
antiga raça de celtas, irmãos em linhagem, em valor, em crueza, em armas e
em costumes. Na retaguarda estavam os soldados da província Cartaginense que
não tinham seguido o exemplo dos trânsfugas por andarem derramados em
outros lugares ou, talvez, porque, não corrompidos, guardavam ainda no coração
vestígios de amor da pátria.
Ao amanhecer, cada um dos capitães inimigos viu com assombro que a
mesma traça de guerra de que pretendera valer-se para obter a vitória ocorrera
à mente do seu adversário. Era, porém, tarde para alterar a ordem da batalha.
Ao mesmo tempo as trombetas godas e os anafis árabes deram o sinal do
combate, e o grito de « Cristo e avante!» confundiu-se em estampido medonho
com o brado de « Allah hu Acbar!» - o brado de guerra dos pelejadores
sarracenos.
O chão pareceu afundir-se com o encontro daquelas duas mós enormes de
homens armados, e o eco dos botes das lanças nos escudos convexos e nas armas
sonoras dos cavaleiros repercutiu nas encostas fronteiras e desvaneceu-se ao
longe, murmurando entre as quebradas. Desde o primeiro embate, não mais fora
possível distinguir os exércitos travados como dois lutadores furiosos. Era um
vulto só, indelineável, monstruoso, imenso, cujo topo ondeava, semelhante ao de
canavial movido pelo vento cujos contornos indecisos se agitavam, torciam,
alargavam, diminuíam, oscilavam, como tapetes de nenúfares sobre marnel
revolto pelo despenhar das torrentes. Nuvens de setas sibilavam nos ares: as
espadas sarracenas cruzavam-se com as espadas godas: a cateia teutónica ia,
zumbindo, abrir fundos regos nas fileiras árabes, e os membros ossudos dos peões
lusitanos e cântabros estouravam debaixo das pancadas violentas dos manguais
[22] da peonagem mourisca. Muitos ginetes vagueavam sem donos; muitos
cavaleiros combatiam a pé. Desgraçado do que, ferido, caía em terra; porque
para ele não havia misericórdia: o punhal acabava o que o franquisque ou a
cimitarra começara. Dir-se-ia que os regatos de sangue, serpeando por entre as
duas hostes enredadas e salpicando as frontes e corpos, eram as veias
descarnadas e rotas daquele grande vulto, coleando na derradeira agonia.
O cavaleiro negro, ao cessar a batalha do dia antecedente, desaparecera do
campo, sem que ninguém soubesse dizer como ou onde se escondera. Só
Teodemiro parecia não o ignorar; porque, ao falarem do desconhecido e das suas
quase incríveis façanhas, os tiufados e quingentários que em volta dele
esperavam o romper da manhã e o recomeçar da peleja, o duque de Córdova
buscara sempre mudar de conversação ou respondera, carregando-se-lhe o
semblante de tristeza: « É, porventura, algum desgraçado que procura o repouso
da morte, e para o homem que resolveu morrer, que feito de valor será
impossível? Se ele não quer deixar na terra nem o eco vão de um nome glorioso,
respeitai-lhe os desejos, porque profundo deve ser o abismo da sua desventura.»
Ao som, porém, das trombetas que anunciavam o renovar do combate, o
cavaleiro negro não tardara a aparecer onde mais acesa andava a briga. Via-se,
contudo, que era principalmente nas fileiras dos árabes, onde as puas agudas e cortadoras da sua temerosa borda ou maça de armas faziam maiores estragos.
Mas, quando algum dos godos trânsfugas ousava esperar-lhe os golpes ou
tentavam feri-lo, ouvia-se-lhe um rugido como o de maldição preso na garganta
por cólera imensa, e o seu miserável contrário não tardava a golfar o sangue na
terra da pátria que traíra e a entregar aos demónios a alma tisnada pela infâmia
da perfídia. Os árabes supersticiosos quase criam ver nele Íblis, o rei infernal do
Geena, armado da espada percuciente, solto por Deus para os punir das ofensas
cometidas contra o divino Alcorão. Diante dele recuavam os mais esforçados
muçulmanos, e só de longe os flecheiros lhe disparavam alguns tiros, que se lhe
empenavam no escudo ou, roçando por este, vinham bater-lhe na armadura,
debaixo da qual manava já o sangue de algumas feridas, e os membros lassos
começavam a desmentir a impetuosidade do espírito.
Como na véspera, o Sol inclinava-se das alturas do céu para o ocaso, e ainda a
batalha estava indecisa, se é que o terror que incutia o cavaleiro negro no lugar
onde pelejava não fazia pender um pouco a balança do lado dos godos. De
repente, um grito agudo partiu do mais espesso revolver do combate; este grito
gigante, indizível, de íntima agonia, era o brado uníssono de muitos homens; era o
anúncio doloroso de um sucesso tremendo. O cavaleiro negro, que, impelido pela
ebriedade do sangue, e semelhante a rochedo que se despenha pelo pendor da
montanha, ia derramando a morte através dos esquadrões do Islam, volveu os
olhos para o lugar onde soara o bramido retumbante da multidão. Era no centro
do exército godo. As tiufadias vergavam em semicírculos para a banda do
Chry sus, como o açude minado pela torrente, a ponto de desprender-se das
margens, oscila e se curva, bojando sobre a veia inferior das águas. A muralha
de ferro que, posta entre o Islamismo e a Europa, dizia à religião do profeta de
Yathrib « não passarás daqui» vacila, como a quadrela de cidade fortificada
batida muitos dias por vaivém de inimigos. Por fim, aqueles vastos maciços de
homens ligados pela cadeia fortíssima da disciplina, do pudor militar e do
esforço, derivam rotos ante os turbilhões dos árabes, ondeiam e derramam-se na
campina. Pelo boqueirão enorme aberto no centro da hoste goda precipitam-se
as ondas dos cavaleiros maometanos, e, após eles, a turba dos berberes, com um
bramido bárbaro. Debalde as alas tentam ajuntar-se, travar-se uma com a outra,
soldar os membros despedaçados do leão ibérico. Passa por lá a impetuosa
corrente dos netos de Agar que envolve e arrasta os que pretendem vadeá-la.
Deus contara os dias do império de Leovigildo, e o sol do último deles era o que
descia já para o ocidente!
O cavaleiro negro vira a fuga das batalhas godas, advertido pelo clamor que a
precedera. Voltando as rédeas do seu murzelo, esporeou-o para aquela parte.
Levava lançado às costas o escudo, onde os tiros dos arqueiros africanos
ciciavam, como a saraiva no Inverno batendo nos troncos despidos do roble.
Pendia-lhe da esquerda do arção a borda ensanguentada, da direita franquisque.
O ginete tresfolegava na fúria da carreira, açoitando os ares com as crinas
ondeantes e atirando-se ao meio da espécie de voragem aberta nas fileiras
cristãs, a qual como que tragava uns após outros os esquadrões muçulmanos. Ao
chegar à confluência daquelas encontradas torrentes de homens armados, o guerreiro parou, e, olhando em roda por um momento, ouviu-se-lhe um grande
brado. Era a primeira vez que a sua voz soava no meio da batalha, e a única
palavra que lhe saiu da boca foi o nome de Teodemiro. Esse brado devia chegar
longe, reboando como o trovão. Dir-se-ia que o cavaleiro estava habituado à
conversação do bramido dos mares revoltos e do rugir das ventanias pelas fragas
das serras; porque naquele grito, conjunto inexplicável de cólera e de dor, havia
uma semelhança, uma harmonia com o gemido imenso da natureza quando luta
consigo mesma no passar da tempestade.
Mas aos ouvidos de Teodemiro não podia chegar a voz do desconhecido.
Arrastado pelos turbilhões de fugitivos, forcejando por obrigá-los a voltar o rosto
contra os árabes, ora com palavras de amarga repreensão, ora com o exemplo, o
duque de Córdova combatia mui longe dele. Em vão o cavaleiro negro lhe
repetia o nome: era inútil este chamar e, apenas, servia para atrair os golpes dos
agarenos vitoriosos. As achas de armas, as cimitarras, os dardos faziam centelhar
a armadura e o escudo do desconhecido, que, tomado, ao que parecia, de um
pensamento doloroso, alongava os olhos por toda a parte em busca de
Teodemiro. Com um gemido de desalento, o cavaleiro saiu, enfim, da espécie de
torpor que o tornava imóvel ante o espectáculo de tanta desventura, e o seu
despertar foi tremendo. Erguendo em alto a maça de armas e vibrando-a
furiosamente em volta de si, começou a partir espadas e a abolar armaduras. Em
breve, ao redor dele, no meio dos muçulmanos vencedores, o terror invadia os
ânimos, como na véspera, como nesse mesmo dia, se espalhara por toda a parte
onde haviam reluzido as puas da sua ensanguentada borda ou o ferro do seu
cortador franquisque.
Apenas, à força de golpes, o cavaleiro negro abriu no meio dos muçulmanos
vencedores uma larga clareira, esporeando o ginete, lançou-se para o lado em
que os godos desordenados se retraíam ante as espadas do Islam. No espaço
intermédio entre os fugitivos e os árabes flutuava sem recuar o pendão do duque
de Córdova. Em volta desse pendão tremulavam as signas das tiufadias da Bética,
que, cercadas por todos os lados, resistiam ainda ao embate dos sarracenos. No
meio, porém, dos que abandonavam vilmente o campo da batalha nem uma
única bandeira se hasteava; mas pelo esplêndido das armas, o guerreiro
conheceu aqueles que não ousavam resgatar com a vida a honra das Espanhas.
Eram os soldados escolhidos de Roderico; era a brilhante cavalaria que ele
próprio capitaneava! A indignação trasbordou da alma do guerreiro:
- Rei dos Godos, rei dos Godos! - exclamou ele - és covarde! Embora vás
esconder a tua ignomínia nos muros de Toletum. Ainda neste campo de batalha
restam homens valentes: ainda Teodemiro combate, não por teu trono desonrado,
mas pela terra de nossos pais. Foge tu com os que não sabem morrer pela pátria;
que nas margens do Chrysus ficam os que hão-de perecer com ela! Maldito o
godo e cristão que foge para ser servo!
E o cavaleiro apertou de novo as esporas ao possante murzelo.
Não tardou, porém, que o furor se lhe convertesse em tristeza, e que as
lágrimas, rebentando-lhe dos olhos, lhe apagassem a maldição que haviam
murmurado os lábios. O seu valente cavalo galgava na carreira por cima de cadáveres e de moribundos, de cristãos e de infiéis, e a terra, convertida em
brejo de sangue, apenas soava debaixo dos pés do ligeiro animal. Passando por
meio dos esquadrões sarracenos, podia dizer-se que o desconhecido se
assemelhava ao anjo do Senhor, quando desce por entre os mundos onde habitam
os demónios, solitário e temido no império dos filhos das trevas que o odeiam. A
fama das suas façanhas tinha-o cercado de uma auréola de terror supersticioso,
e, quando passava, os guerreiros do deserto apontavam para ele e em voz sumida
diziam uns aos outros:
- Ei-lo que vem! ei-lo, o cavaleiro negro!
Mas, porque parou ele, sofreando subitamente o ginete? Que há aí, nessa
extensa seara ceifada de homens de guerra, que possa atrair os olhos do mais
incansável dos segadores? No sítio em que parou estava, poucas horas antes,
hasteada a signa real: era o centro da hoste goda; mas dos que aí pelejavam, uns
lá vão ao longe precipitar-se no abismo da ignomínia; outros, os mais felizes,
adormeceram no seu último sono no regaço da pátria. O guerreiro fitou os olhos
no chão: a foice da morte, passando por ali, cerceara a derradeira esperança do
império de Teodorico. O espectáculo que se lhe antolhava era a explicação do
terror que se apossara de tantos homens valentes. Fugiam: Roderico, porém,
estava aí! mas retalhado de golpes; mas sem vida! Já não seria debaixo de seus
pés que o trono da Espanha se desfaria aos golpes do machado dos árabes. Um
ceptro sem dono em Toletum e mais um cadáver junto às margens do Chrysus,
eis o que restava do último rei dos Godos! Com a sua morte fenecera ao redor
dele a esperança, e com a esperança dera em terra o esforço dos ânimos mais
robustos. As alas ignoravam este triste acontecimento e por isso pelejavam ainda.
Mas pouco tardou a ser geral a rota; porque pouco tardou a espalhar-se aquela
nova fatal. Um dia bastara para aniquilar o império que durante quatro séculos
fora o mais poderoso e civilizado entre as nações germânicas estabelecidas nas
diversas províncias romanas. A corrupção dos últimos tempos concluíra a sua
obra, e o edifício da monarquia gótica, ainda rico de majestade exterior,
mostrara, enfim, desconjuntando-se e desabando, o fervor dos vermes que
interiormente o roíam. A Cruz, derribada com ele, só devia tornar a hastear-se
triunfante em todos os ângulos da Espanha depois do combater de oito séculos.
Uma parte do exército godo ainda pudera salvar-se atravessando o rio: mas as
pontes lançadas na véspera tinham por fim estalado, derivando pela corrente
debaixo do peso dos fugitivos, e as águas devoravam muitos que o ferro havia
poupado. Teodemiro, que não perdera o ânimo no meio daquela desventura,
alcançara fazer passar à margem oposta as relíquias dos soldados da Bética e os
restos de muitas tiufadias de outras províncias. Nos arraiais, os árabes, senhores
do campo, saudavam a vitória com o som dos instrumentos bárbaros, e com
clamores de alegria que iam sussurrar ao longe pelos vales e campos, desertos
dos seus moradores. Um homem só combatia ainda daquele lado à beira do rio.
Era o cavaleiro negro. Cercavam-no muitos sarracenos, mas de longe, porque os
que ousavam aproximar-se dele caíam a seus pés moribundos. Às vezes, como
que tentava romper por entre os inimigos, mas era tentar o impossível. No volver
dos olhos inquietos para um e para outro lado, parecia buscar descobrir alguma coisa naquele vasto campo onde só descortinava os cadáveres dos vencidos e os
vultos ferozes dos vencedores. Por fim, voltando o rosto para a margem oposta,
viu flutuar sobre uma eminência o pendão de Teodemiro. Uma expressão
fugitiva de contentamento lhe assomou então ao gesto. Despedindo das mãos a
borda ensanguentada, que sibilou por meio dos árabes apinhados em volta, o
guerreiro arrojou-se à torrente. A luz do Sol que se punha, viu-se-lhe umas
poucas de vezes reluzir o elmo, alongando-se pela superfície das águas e
desaparecendo por largos espaços. As trevas, que já desciam densas, e a
impetuosidade da corrente que o arrastava não permitiram prever-se qual seria a
sua sorte. Eurico era a última e tenuíssima esperança que bruxuleava nos
horizontes do império godo: como estrela cadente que se imerge nos mares,
aquele esforço brilhante se desvanecera na escuridão que tingia as águas do
Chry sus!
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Eurico, o presbítero- Alexandre Herculano
RandomEurico, o Presbítero é a mais importante obra de Alexandre Herculano, um dos maiores escritores do Romantismo português. Lá estão presentes características marcantes do romance Romântico, como a idealização do herói, a valorização dos sentimentos e...