Nada neste mundo me agita o seio,
senão o teu amor.
Lenda de S. Pedro Confessor — 9Apenas Pelágio transpôs o escuro portal da gruta, Eurico alevantou-se. Aspirava
com ânsia, como se aquele ambiente tépido não bastasse a saciá-lo. O
desgraçado resumia num pensamento devorador, numa síntese atroz, o seu longe
e doloroso passado e o seu torvo e irremediável futuro. Como voltara àquele
lugar? Como, sem lhe vergarem os joelhos, tinha ele descido das alturas do Vínio
com Hermengarda nos braços? Que tempo durara essa carreira deliciosa e ao
mesmo tempo infernal? Não o sabia. Imagens confusas de tudo isso era apenas o
que lhe restava — do Sol, que pouco a pouco lhe viera alumiar os passos, dos
ribeiros que vadeara, das penedias agras, dos recostos dos montes, das selvas que
recuavam para trás dele, dos cabeços negros que, às vezes, lhe parecera
debruçarem-se no cimo dos despenhadeiros, como para o verem correr. No
meio destas recordações incertas e materiais, outras passavam íntimas, ardentes,
voluptuosas, negras, desesperadas. Por horas, que haviam sido para ele uma
eternidade de ventura, o respirar daquela que amava como insensato se
misturara com o seu alento; por horas sentira o ardor das faces dela aquecer as
suas, e o coração bater-lhe contra o seu coração. Depois, avultavam-lhe no
espírito a imagem veneranda de Siseberto e o altar da sé de Híspalis, junto do
qual vestira a pura estringe de sacerdote, e Carteia, e o presbitério e as noites de
agonia volvidas nos ermos do Calpe. E tudo isto se contradizia, se repelia, se
condenava, o amor pelo sacerdócio, o sacerdócio pelo amor, o futuro pelo
passado; e aquela alma, dilacerada no combate destes pensamentos, quase cedia
ao peso de tanta amargura.
Eurico deu alguns passos e encostou-se à boca da gruta; porque os membros
exaustos lhe fraqueavam, apesar de que nem um momento o abandonasse a
força da sua alma enérgica. A brisa frigidíssima da madrugada consolava-o,
como ao febricitante a aragem de um sol-posto do Outono. A seus pés estavam
as trevas do vale, sobre a sua cabeça as solidões profundas e serenas do céu
semeado dos pontos rutilantes das estrelas e mal desbotado ao ocidente pela
última claridade da lua minguante que desaparecia. Era a imagem da sua vida.
Serena e esperançosa, como o crepúsculo do luar fugitivo, lhe fora a juventude.
Desde que um amor desditoso o fizera alevantar uma barreira entre si e o ruído
do mundo; desde que se votara às solenes tristezas da soledade e a derramar
benefícios e consolações sobre a cabeça dos miseráveis e humildes; pela alta
noite do seu viver muitas vezes fulgurara uma luz de alegria, como esses astros
que brilham a espaços nos abismos do firmamento. Lá, ao menos, havia instantes
em que se esquecia do seu destino. Mas, depois que o frenesi das batalhas o
arrastara; depois que trocara as harmonias das tempestades do Calpe e o rugido das vagas do Estreito pelo gemer de moribundos nos combates e pelo retinir dos
golpes, nunca mais descera um raio de cima a alumiar-lhe o espírito. O seu
presente e o seu porvir eram, como esse vale, um precipício sem fundo,
indelineável, tenebroso e maldito.
E pelo céu tão plácido e melancólico; pelo céu, que ele às vezes se punha a
contemplar às horas mortas no pobre presbitério de Carteia ou assentado em
algum promontório, a sua imaginação voou até os desvios do Sul, e as lágrimas
de saudades começaram a rolar-lhe mansamente pelas faces. O desventurado
tinha saudades das tristezas do ermo, porque já não podia ter desejos dos
contentamentos humanos.
Engolfado naquelas cogitações dolorosas, o guerreiro conservou-se por algum
tempo imóvel e com os olhos cravados nos astros cintilantes, que pareciam
sorrir-lhe e chamá-lo para o seio imenso do Senhor. As lágrimas correram-lhe
então mais abundantes, e o coração parecia dilatar-se-lhe com o pensamento da
morte. Insensivelmente ajoelhou e estendeu as mãos para o firmamento: os seus
lábios murmuravam com cicio quase imperceptível. Era a oração da alma,
férvida, procelosa, que os agitava: era essa oração que todos nós sabemos no
momento de suprema agonia e que nenhumas palavras, nenhuma escritura
poderiam representar: oração que é um mistério entre Deus e o homem e que
nem os anjos compreendem: gemido enérgico de todas as misérias terrenas,
cuja intensidade só a Providência, que as acumula ou dissipa, sabe pesar nas
balanças da justiça e da piedade divinas.
A morte; esta ideia, tremenda, indiferente ou formosa, segundo a vida é
risonha, pálida ou negra, veio suavizar o martírio daquela alma atribulada, como
em estio ardente as grossas águas da trovoada refrigeram a terra, que estua sob
os raios aprumados do sol. Tinha-a buscado; buscado com a placidez horrível da
desesperança; como um remédio de cuja eficácia a consciência da imortalidade
o fazia duvidar. Seria não mais do que ir deitar-se em leito de dores externas?
Talvez: mas a mudança podia ser refrigério: tanto bastava. A morte parecia,
contudo, fugir a ele para que nem este último desejo se lhe cumprisse. Houve um
instante em que lhe ocorreu o pensamento de subir ao pináculo escarpado do
Auseba e despenhar-se no vale. Refugiu desta ideia, porque era covarde. Eurico,
o sacerdote soldado, não devia fenecer ímpia e vilmente; devia depor o peso
intolerável da vida no campo das batalhas pelejadas em nome da Cruz e da
Espanha. E no recontro daquele dia, uma voz íntima lhe murmurava que o havia
de obter.
Este anelar pela morte era uma bem triste cobiça! E quando se lembrava de
que essa mulher que aí jazia a poucos passos dele; essa mulher, em cuja
adoração concentrara todos os afectos dos mais formosos dias da vida; cuja
imagem sonhada nas solidões do Calpe, desenhada de contínuo diante dos olhos
da sua alma, gravada com um selo de saudade e de amargura em todas as suas
cogitações; essa mulher que, pouco havia, por horas de delicioso delírio, apertara
contra o peito, e que pudera, outrora, torná-lo o mais feliz dos homens; quando se
lembrava de que sobre isso tudo ele deixara cair a campa de bronze do
sacerdócio, que ninguém podia erguer, o desgraçado sentia estalarem-lhe uma a uma todas as fibras do coração, e fugir-lhe do seio um grito semelhante ao que
rebenta dos lábios do condenado ao suplício do potro, no primeiro movimento da
mão pesada do algoz.
E, como se quisesse ainda mais saciar-se de dor, encaminhou-se para o lado
onde Hermengarda repousava. Ao clarão da tocha que espargia uma luz mortiça,
o guerreiro contemplou-a naquele inquieto dormir. Era bela; mais bela que nos
tempos da primeira mocidade! O seu gesto angélico, desbotado pela palidez,
emagrecido pelos pesares e terrores, ganhara em expressão, em reflexo dos
íntimos pensamentos o que perdera em viço e em toques de inocência. Bonina
desabrochada nos campos da vida, brilhara com todas as pompas do seu vicejar
à luz da manhã; o ardor intenso do meio-dia a fizera pender; a viração da tarde
lhe traria, talvez, ainda frescor e viveza; mas a sua fragrância perdia-se nas auras
que passavam; nas suas cores harmoniosas revia-se, apenas, o céu! Aquela alma
fugia solitária pela terra num viver incompleto e volveria aos abismos da criação
sem conhecer o mais profundo e enérgico dos afectos humanos, o amor, que une
dois espíritos como dois fragmentos de um todo, os quais a Providência separou
ao lançá-los na terra, e que devem buscar-se, unir-se, completar-se, até irem,
depois da morte, formar, talvez, uma só existência de anjo no seio de Deus.
Mas quando Eurico se lembrou de que, porventura, isto era sonho; de que
podia ser que essa alma não passasse na vida tão vazia e solitária como ele
julgava, e que esse coração, que poucas horas antes pulsara tão perto do seu,
batia, acaso, por outrem, sentiu o suor frio manar-lhe da fronte. A tocha baça e
fúnebre que mal alumiava a irmã de Pelágio pareceu-lhe retinta em sangue; e,
como cedro arrancado por tufão repentino, foi encostar-se à rocha lateral, cuja
superfície irregular lhe escondia Hermengarda. O vê-la despertara todo o delírio
do seu primeiro amor, e aquela ideia intolerável, que tantas vezes o atormentara
nas solidões do Calpe, espremia-lhe agora o coração com redobrado furor.
E assim ficou por alguns momentos mudo, anelante, aniquilado. Quem era,
onde estava, por que viera ali, não o saberia dizer. Os pensamentos revolviam-se-
lhe na mente, como as ondas num sorvedouro marítimo, tempestuosos, rápidos e
indistintos.
De repente, um ai comprimido veio acordá-lo daquela espécie de torpor
doloroso. Estremeceu. Era a voz de Hermengarda. Aproximou-se manso e
manso, de modo que ela não o visse. Assentada sobre o leito, demudado o gesto,
e com o susto pintado no olhar, a irmã de Pelágio estendia os braços voltando o
rosto para o lado, como quem tentava afastar visão tão medonha. Pelas suas
palavras incoerentes e truncadas, o guerreiro conheceu que um sonho mau a
agitava, até que, inteiramente desperta, essas palavras confusas se começaram a
coordenar em períodos inteligíveis. O pular do coração de Eurico redobrava de
violência, ao passo que o seu respirar se ia tornando cada vez mais imperceptível.
— Sempre ele! sempre esta visão de remorso! — murmurou Hermengarda.
— Meu pai, meu pai! Perdoe-te o céu o orgulho com que repeliste o gardingo...
Perdoe-te o céu o haveres-me obrigado a sacrificar aos pés desse orgulho o
sentimento de amor que se alevantara neste coração. Nós ambos assassinámos o
desgraçado; mas a punição caiu inteira sobre mim! Embora. Eu não te amaldiçoarei, oh meu pai! A tua filha nunca te acusará ante o supremo juiz.
Depois, ficou por alguns instantes calada, com os olhos fitos no rochedo
fronteiro, em cuja face escabrosa as sombras pareciam dançar e agitar-se à luz
da tocha que ardia a curta distância, e que a aragem movia. Crera perceber perto
de si um gemido abafado, cortando fugitivo o grande silêncio nocturno.
— Vai-te, vai-te! — prosseguiu ela. — Que posso eu fazer-te, infeliz?... Bem
longo e atroz tem sido o meu martírio, porque ainda não achei no mundo alma
com quem me fosse dado repartir o cálice do infortúnio; a quem houvesse de
contar os tormentos que há tanto tempo me varreram dos lábios o sorrir. Se
vivesses, seria tua; tua esposa, tua escrava!... mas a bênção nupcial não pode
descer entre o túmulo e a vida. Fávila!... meu pai!... diante do trono do Senhor,
onde são iguais o duque e o gardingo, jura-lhe que tua filha repeliu o seu amor
por obedecer-te: dize-lhe que o pranto correu destes olhos ao ouvir a nova da sua
morte. Oh, dize-lhe, dize-lhe que não fui eu que o assassinei.
E aqui, deixando pender a cabeça sobre o peito, pareceu voltar ao sentimento
da realidade mas aquela espécie de terror febril, que lhe haviam gerado no
espírito os transes, qual mais doloroso, por que sucessivamente passara, tornou a
apossar-se dela. Favoreciam-no o lugar, a hora, o silêncio. Hermengarda
alevantou de novo os olhos desvairados e, firmando-se no rochedo, tentava
erguer-se.
— Era Eurico! — murmurou ela. — Depois de dez anos, bem conheci a sua
voz! Mais triste, só: triste como tantas vezes a tenho ouvido nos meus sonhos de
remorsos! Bem conheci o seu gesto! Mais pálido e carregado, só: pálido e
carregado, como tantas vezes tem surgido do sepulcro para vir mudamente
acusar-me silencioso e quedo ante mim, por longas e não dormidas noites. Era
ele!... um espectro cujo coração eu sentia bater, cujos braços me apertaram por
cima do abismo revolto, através da floresta, pelos recostos das serranias. Dos
seus olhos caiu sobre o meu seio uma lágrima! As lágrimas dos mortos
queimam... devoram a vida; porque bem sinto a morte chamar-me...
Tinha-se posto de joelhos, com as mãos estendidas, parecia implorar piedade.
— Morrer! tão cedo! Quando apenas torno a ver meu irmão?!.. Pelágio!
Pelágio! por que me deixaste? Vem despedir-te da tua pobre Hermengarda.
Eurico a espera para o noivado do sepulcro, e eu não posso tardar.
E desvairada, pôs-se em pé, chamando por Pelágio com voz sufocada.
Apenas, porém, dera os primeiros passos, soltou um gemido agudo e ficou
imóvel. Diante dela, realidade ou fantasma, estava a origem dos seus terrores
secretos. Era o gardingo que a amara, que ela cria morto, e cuja imagem
vingadora vinha mais uma vez atormentá-la. O vulto cravara nela um olhar
ardente, que a fascinava. Sorriso doloroso lhe pousava nos lábios. Estendeu o
braço, segurando a mão de Hermengarda, que pretendeu recuar e não pôde.
Como petrificada, parecia que os pés se lhe haviam enraizado no chão da
caverna. Aquela mão, que segurava a sua escaldando de febre, era gelada como
a de um morto. A vida do gardingo tinha-se concentrado toda no coração, que lhe
despedaçavam duas ideias, horríveis porque associadas: o amor correspondido e
tomado ao mesmo tempo maldito, monstruoso, impossível por uma palavra fatal, que lá estava escrita em caracteres de fogo, e que ele via, escutava, sentia — o
sacerdócio!
— Oh, Deus to pague! — disse Eurico em voz baixa e lenta — que lançaste na
tão longa noite da minha alma um raio fugitivo de luz, luz santa e pura de
contentamento e felicidade!... Há dez anos que não me alumia, e ela é tão bela,
ainda quando passa como o relâmpago! — E, depois de estar calado alguns
instantes, com o gesto do íntimo e angustiado cogitar, prosseguiu: — Não,
Hermengarda, não! Os vermes ainda não receberam a parte da sua herança que
eu lhes retenho. Morri; porém não para isso que, na linguagem mentirosa do
mundo, se chama a vida. Durante anos dei-a a devorar à desesperação, e a
desesperação não pôde consumi-la. Pendurei-a alta noite, pela espessura das
trevas, nas rochas escarpadas do mar do Ocidente, à beira dos precipícios, e o
mar e os precipícios não quiseram tragá-la. Atirei-a à torrente impetuosa das
batalhas, e o ferro embotou-se nela. O céu guardava-me para te ouvir palavras
de amor e arrependimento; essas palavras de inefável doçura que nunca esperei
escutar. É que na minha fronte está gravada a maldição de cima: é que ainda me
faltava o derradeiro martírio... Ao menos posso acabar o teu: o pensá-lo é um
refrigério. Hermengarda, eu vivo ainda! Vivi para te salvar da desonra, e todo o
meu passado esqueci-o. Só uma coisa não, porque me subverteu para sempre o
futuro; porque, depois de passageira alegria, me recalcou mais violentamente
esperanças que ousaram um momento agitar-se no fundo desta alma, tranquila
na desesperança. Agora, se há repouso debaixo da campa, posso ir buscar lá meu
repouso. Mas dize-me; oh, dize-me ainda outra vez, que amas Eurico! Repete
diante do que respira aquilo que proferiste diante da sombra criada pelo teu
terror. Essas palavras, e o morrer!... O teu amor e a morte; eis para mim a única
ventura possível, mas que não tem igual na terra.
E Hermengarda sentia ao contacto daquela mão fria e trémula apertando a
sua, no acento dessas frases, tempestuosas como o oceano, tristes como céu
proceloso, que lá, no peito do vulto que tinha ante si, havia um coração de
homem vivo, onde chaga antiga e cancerosa vertia ainda sangue. A espécie de
pesadelo em que se debatia desaparecera com a realidade. O repentino impulso
da sua alma foi lançar-se nos braços de Eurico. Fora ele o objecto do seu quase
infantil e único amor, amor condenado ao silêncio antes do primeiro suspiro,
antes do primeiro volver de olhos; era o cavaleiro negro, cujo nome se tornara
conhecido e glorioso por todos os ângulos da Espanha; era ele, finalmente, o
homem que duas vezes acabava de salvá-la. Reteve-a, todavia, o pudor e, talvez,
aquela misteriosa tristeza que escurecia as ideias desordenadas vindas de tropel
aos lábios do guerreiro. Procurando asserenar a violência dos afectos que a
agitavam, Hermengarda respondeu com uma voz fraca e trémula:
— Bendita a mão do Senhor, que te salvou, Eurico, leal e nobre entre os mais
nobres e leais filhos dos Godos! Graças à piedade do céu, que por meio de tantas
desventuras e perigos nos uniu nos paços que restam ao filho do duque de
Cantábria! No devanear do terror revelei-te, sem querer, o segredo do meu
coração: a sua história, ouviste-a. Perdoa à memória de meu pai, e, se de mim
depende a tua felicidade, as palavras que me saíram involuntariamente da boca te asseguram que serás feliz. O orgulho que a ambos nos fez desgraçados, não o
herdou Pelágio. Que o herdasse, mal caberia nestas brenhas, na caverna dos
fugitivos. E depois, que nome há hoje na Espanha mais ilustre que o do cavaleiro
negro, o nome de Eurico? Morreres?!... Oh, não! Salvaste Hermengarda do
opróbrio: se nunca te houvera amado, ela te diria como te diz hoje: sou tua,
Eurico!
A filha de Fávila, cujo profundo e enérgico sentir mal poderia compreender
quem só a houvera visto no momento em que tímida recuava diante do perigo
mais aparente que real das margens do Sália, proferiu estas palavras com um
tom de entusiasmo, com uma expressão afectuosa tão íntima, que o guerreiro
caiu a seus pés. A ventura embargava-lhe a voz. O que lhe tumultuava no
coração não tem nome na linguagem dos homens; era mais que a loucura. Com
um movimento delirante, apertou contra os lábios a mão da donzela.
Queimavam! Depois de largo silêncio, ele murmurou enfim:
— Minha! ... Quem há na terra que possa roubar-ma?... Anos de tormentos,
fostes como um dia de bonança e deleite! Imagem que absorveste esta existência
inteira; anjo que me fazes surgir do meu inferno para o teu céu, tu foste que me
salvaste a mim! Oh, como é bom ser feliz!... Tinha-me já esquecido!... Como o
Sol deve agora ser belo, serena a aragem da tarde, meigo o murmurar do ribeiro,
viçosa a verdura do prado!... Tinha-me também esquecido! Tens razão,
Hermengarda. Quero viver: o viver é delicioso, delicioso porque será contigo...
ao pé de ti... a adorar-te sempre, sem me lembrar do que existe, além de ti, no
universo. Vem, minha amante, minha esposa!, vem jurar que me pertences,
perante o altar e aos pés do sacerdote...
A esta palavra fatal, um grito semelhante ao de homem ferido de morte,
rompeu agudo e rápido do seio do cavaleiro. A mão de Eurico abandonou a mão
de Hermengarda, e os seus olhos brilharam com fulgor infernal. Recuou,
afastando de si a irmã de Pelágio, sobressaltada por aquele gesto subitamente
demudado, por aquele olhar ardente e vago. Ela não podia compreender a causa
de semelhante mudança... Com o braço esquerdo estendido, o guerreiro parecia
querer arredá-la de si, enquanto com a mão confrangida apertava a fronte, como
se buscasse esmagar um pensamento atroz que lhe surgia lá dentro.
— Afasta-te, mulher, que o teu amor me perdeu! — murmurou enfim. — Há
entre nós um abismo: tu o abriste; eu precipitei-me nele. Um crime, só um
crime, pode unir-nos... — Fez uma pausa, e prosseguiu: — E por que não se
cometerá ele? Talvez obtivéssemos perdão!... Perdão? Oh meu Deus, não o terias
para o sacrílego... não! Afasta-te, Hermengarda. Diante de ti tens um
desgraçado, um desgraçado que fizeste!
A donzela uniu as mãos lavadas em lágrimas, e exclamou:
— Eurico! Eurico! enlouqueceste?... Por piedade, explica-me este horroroso
mistério? Por que me repeles? que te fiz eu... eu que te amo, que sou tua, tua para
sempre?!
Mas os olhos cintilantes do cavaleiro tinham amortecido: derribado na luta que
travara com o destino, o seu combater de tantos anos terminava, finalmente. Um
sorriso insensato substituiu-lhe no rosto as contracções habituais de melancolia.
Afigurava-se-lhe que em roda dele balouçava a caverna, e a luz fumosa da tocha
que ardia segura no braço de ferro cravado na pedra parecia-lhe faiscar em fitas
cor de sangue. Esvaído, vacilante, assentou-se num fragmento da rocha e,
estendendo a mão para Hermengarda, pegou de novo na dela e, com um sorriso
indizível, continuou em voz submissa:
— Dez anos! ... Sabes tu, Hermengarda, o que é passar dez anos amarrado ao
próprio cadáver? Sabes tu o que são mil e mil noites consumidas a espreitar em
horizonte ilimitado a estrela polar da esperança e, quando, no fim, os olhos
cansados e gastos se vão cerrar na morte, ver essa estrela reluzir um instante e,
depois, desfechar do céu nas profundezas do nada? Sabes o que é caminhar sobre
silvados pelo caminho da vida e achar ao cabo, em vez do marco miliário onde o
peregrino de tréguas aos pés rasgados e sanguentos, a borda de um
despenhadeiro, no qual é força precipitar-se? Sabes o que isto é? É minha triste
história! Estrela momentânea que me iluminaste, caíste no abismo! Arbusto que
me retiveste um instante, a minha mão desfalecida abandonou-te, e eu
despenhei-me! Oh, quanto o meu fado foi negro!
Hermengarda contemplava-o com assombro e terror... Como o entenderia
ela? Eurico prosseguiu...
— Olha tu! ao pôr-do-sol, no Estio, ia eu assentar-me sobre um cerro
marítimo, alongando a vista pelo oceano tranquilo, e parecia-me divisar-te
desenhada na atmosfera, a sorrir-me. Então, as lágrimas de felicidade
começavam a brotar-me dos olhos: depois, lembrava-me de quem eu era, e
essas lágrimas condensavam-se a meio das faces e queimavam como se fossem
metal candente. A horas mortas, correndo pelos desvios, quando o vento açoitava
os arbustos enfezados da montanha, cada sombra que se meneava ao luar, sobre
o chão pardacento, era a tua sombra que eu via. Outras noites, em que mais
tranquilo podia, a sós comigo, engolfar-me nos pensamentos de Deus, a tua
imagem vinha interpor-se entre mim e a lâmpada mortiça que me alumiava, e o
hino do presbítero de Carteia, que devia, talvez, escrever-se nos hinários das
catedrais da Espanha, ficava incompleto ou terminava por uma blasfémia;
porque também te via sorrir, mas a outrem, mas a homem feliz com o teu amor,
e eu tinha então sede... sede de sangue... Era uma lenta agonia! E sempre tu ante
mim: nas solidões das brenhas, na imensidade das águas, no silêncio do
presbitério, nos raios esplêndidos do sol, no reflexo pálido da Lua e, até, na hóstia
do sacrifício... sempre tu!... e sempre para mim impossível!
— Mas deliras!... — interrompeu Hermengarda... — Que tens tu com o
presbítero de Carteia; com esse ilustre sacerdote, cujos hinos sacros reboavam
ainda há pouco pelos templos da Espanha, e a quem, decerto, o ferro ímpio dos
árabes não respeitou? A tua glória é outra e mais bela; a glória de seres o
vencedor dos vencedores da Cruz. A sua era santa e pacífica. Deus chamou-o
para si, e tu vives para ser meu. Ninguém existe hoje no mundo que possa
embaraçá-lo. Esquece o passado; esquece-o por amor de mim!
O cavaleiro sorriu de novo dolorosamente e disse-lhe:
— Que tenho eu com o presbítero de Carteia?!... Hermengarda, lembras-te do
seu nome?
Os lábios da donzela fizeram-se brancos ao ouvir esta pergunta: um
pensamento monstruoso e incrível lhe passara pelo espírito. Com voz afogada e
quase imperceptível replicou:
— Era... era o teu, Eurico!... Mas que pode haver comum entre o guerreiro e o
sacerdote? Que importa um nome... uma palavra?... que...
O cavaleiro pós-se em pé e, deixando descair os braços e pender o rosto sobre
o peito, murmurou:
— Há comum, que o guerreiro e presbítero são um desgraçado só!... Importa,
que esse desgraçado é neste momento um sacerdote sacrílego. O pastor de
Carteia...
— Oh, não acabes! — interrompeu Hermengarda, com indizível aflição.
— Era Eurico, o gardingo!
Proferindo estas palavras, que explicavam o mistério da sua existência, o
cavaleiro negro viu cair como fulminada a filha de Fávila. E ele não se moveu. A
sua imaginação tresvariada afigurou-lhe perto de si o vulto suave e triste do
venerável Siseberto, que estendia a mão mirrada entre ambos, como para os
dividir em nome da religião, que os devia salvar, e do sepulcro, a quem
pertenciam.
Neste momento uma grande multidão de crianças, de velhos, de mulheres
penetraram na caverna com gritos e choros de terror. No coração das Astúrias,
entre alcantis intratáveis, no fundo de um vasto deserto, repetia-se o grito que mil
vezes tinha soado na devastada Espanha: « Os árabes!»
Amanhecera.
Aquele sobressalto, tão impensado, revocou o cavaleiro ao sentimento da sua
situação. Ajoelhou junto de Hermengarda e, pegando-lhe na mão já fria, beijou-
lha. Nas raias da vida, aquele beijo, primeiro e último, era purificado pelo hálito
da morte que se aproximava: era inocente e santo, como o de dois querubins ao
dizer-lhes o Criador: « Existi!»
Depois ergueu-se, vestiu a sua negra armadura, cingiu a espada, lançou mão
do franquisque e, rompendo por entre o tropel, que fizera silêncio ao vê-lo,
desapareceu através da porta da gruta, cujas rochas tingia cor de sangue a
dourada vermelhidão da aurora.
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Eurico, o presbítero- Alexandre Herculano
RandomEurico, o Presbítero é a mais importante obra de Alexandre Herculano, um dos maiores escritores do Romantismo português. Lá estão presentes características marcantes do romance Romântico, como a idealização do herói, a valorização dos sentimentos e...