Então os Godos cairão na guerra;
Então fero inimigo há-de oprimi-los
Com ruínas sem conto, e o susto e a fome.
Hino de Sto. Isidoro, em LUCAS DE TUI, Chronicon, Liv. 3º.No templo. Ao romper de alva.
Dia de Natal da era de 748.1
Mais de sete séculos são passados depois que tu, ó Cristo, vieste visitar a terra.
E as tuas palavras foram escutadas pelos indomáveis filhos da Gótia, e eles
ajoelharam aos pés da cruz.
Era que nessas palavras divinas havia uma poesia celeste, a qual as almas
rudes mas virgens do Setentrião sentiam casar-se com as suas primitivas virtudes.
Tu evangelizavas a liberdade e condenavas todo o género de tirania: tu
restituías ao valor a sua generosidade, à generosidade a sua modéstia; tu
revelavas inauditos mistérios no esforço do morrer: a constância dos teus
mártires escurecia a dos nossos guerreiros quando, debaixo do punhal de inimigo
vitorioso, recusavam confessar-se vencidos.
Tu convertias o amor, esse afecto delicioso, até então limitado ao gozo
material da mulher, em sentimento grande e sublime: alargavas o âmbito do
coração por toda a terra, por tudo quanto nela vive e respira, e davas-lhe para
conquistar todas as existências dos céus.
A generosidade, o esforço e o amor, ensinaste-os tu em toda a sua
sublimidade: só nas almas dos bárbaros estavam eles em germe. Não para os
romanos corrompidos, mas para nós, os selvagens setentrionais, era o
cristianismo. Para estes o Evangelho assemelhava-se ao Sol que rompe de além
das serras e que ilumina, aquece e alegra; para os escravos abjectos dos césares
assemelhava-se ao Sol mergulhando-se no mar, que só deixa nos campos
escuridão, frialdade e tristeza.
Por isso, enquanto eles voltavam as costas à tua cruz ou a lançavam de envolta
com os ídolos nos seus mesquinhos larários, nós quebrávamos no fundo das selvas
ou no topo das montanhas as imagens de Odin, de Tor e de Freda e corríamos a
abraçar-nos com ela.
Tem compaixão de nós, ó Cristo; lembra-te de que os ossos dos que assim o
fizeram ainda não são inteiramente cinzas debaixo das lousas; porque só quatro
séculos têm passado por cima deles.2
Quem é hoje cristão e godo nesta nossa terra de Espanha?
Uma geração degenerada pisa os restos de heróis: homens sem crença,
blasfemos ou hipócritas, sucederam aos que criam na grandeza moral do género
humano e na providência de Deus.
Dantes, os príncipes do povo eram os capitães das hostes: a espada dos reis, a
primeira que se tingia no sangue dos inimigos da pátria.
Dantes, o sacerdote era o anjo da terra: os que passavam curvavam-se para
beijar a fímbria da sua estringe; porque a paz e a esperança entravam em todas
as moradas sobre que desciam as bênçãos dele.
Dantes, o juiz era o pai do oprimido, o tribunal o abrigo do inocente, a justiça o
nervo do Império Gótico.
Dantes, nos conselhos dos prelados, dos nobres, dos homens livres as leis iam
buscar a sanção da sabedoria e aferir-se pela utilidade comum. Lá o rei sabia
que o poder lhe vinha de Deus e da vontade dos Godos, que o ceptro era cajado
de pastor, não cutelo de algoz, e a coroa uma carga pesada, não uma auréola de
vanglória.
Hoje, nos paços de Toletum só retumba o ruído das festas, os francos e os
vascónios talam as províncias do Norte, e a espada dos guerreiros só reluz nas
lutas civis.
Hoje, os príncipes na embriaguez dos banquetes esqueceram-se das tradições
de avós; esqueceram-se de que era aos capitães das hostes da Germânia que os
romanos imbeles davam o nome de reis.
Hoje, a prostituição entrou no templo do Crucificado, os claustros das catedrais
velam com o seu manto de pedra as abominações da torpeza, e as mãos do
sacerdote deixam muitas vezes humedecida a tela que veste os altares com
vestígios do sangue derramado covarde e vilmente.
Hoje, a cobiça assentou-se no lugar da equidade: o juiz vende a consciência no
mercado dos poderosos, como as mulheres de Babilónia vendiam a pudicícia nas
praças públicas aos que passavam, diante da luz do dia.
Hoje, a espada substituiu o conselho dos prelados, dos nobres e dos homens
livres: a coroa é uma conquista, a lei vontade do desonrado vencedor de pelejas
domésticas, a liberdade palavra mentida.
Império de Espanha, império de Espanha! por que foram os teus dias
contados?
3
O Sol oriental que ora bate ridente no pavimento da igreja aflige a minha
alma, porque me parece que, alumiando esta terra condenada, se assemelha a
homem cruel que viesse dar uma risada junto ao leito do moribundo.
Porque te havia eu de amar, ó Sol, se tu és o inimigo dos sonhos do imaginar;
se tu nos chamas à realidade, e a realidade é tão triste?
Pela escuridão da noite, nos lugares ermos e às horas mortas do alto silêncio, a
fantasia do homem é mais ardente e robusta.
É então que ele dá movimento e vida aos penhascos, voz e entendimento às
selvas que se meneiam e gemem à mercê da brisa nocturna.
É então que ele colige as suas recordações; une, parte, transmuda as imagens
das existências que viu passar ante si e estampa nas sombras que o rodeiam um
universo transitório, mas para ele real.
E é belo esse mundo de fantasmas aéreos, por entre cujos lábios descorados
não transpiram nem perjúrio nem dobrez, e a cujos olhos sem brilho não assoma
o reflexo de ânimos pervertidos.
Aí há o repouso, a paz e a esperança que desapareceram da terra; porque o
mundo das visões cria-o a mente pura do poeta: ela dá corpo e vulto ao que já só
é ideal, e o passado, deixando cair o seu imenso sudário, ergue-se em pé e,
pondo-se diante do que medita, diz-lhe: — aqui estou eu!
E este o compara com o presente e recua de involuntário terror:
Porque o cadáver que se alevanta do pó é formoso e santo, e o presente que
vive e passa e sorri é horrendo e maldito.
E o poeta atira-se chorando ao seio do cadáver e responde-lhe: — esconde-me
tu!
É lá que esta alma, árida como a urze, sente, quando aí se abriga, refrescá-la
como um orvalho do céu.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Eurico, o presbítero- Alexandre Herculano
RandomEurico, o Presbítero é a mais importante obra de Alexandre Herculano, um dos maiores escritores do Romantismo português. Lá estão presentes características marcantes do romance Romântico, como a idealização do herói, a valorização dos sentimentos e...