De volta ao lar

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Era  ótimo  como  Mamãe  se  preocupava  comigo.  Não  duraria  muito.  Ela  mudaria    logo  que  eu  ficasse  curado. Duas  longas  semanas  neste  fedorento  hospital  onde  queriam  cortar  minha  perna  e  queimá-la  na    fornalha. Sentia-me  feliz  ao  olhar  para  baixo  e  ver  a  perna  ainda  no  mesmo  lugar.  Puxa!  Eu  mal  podia  esperar  para voltar  à  escola e  contar  a    todos que minha perna quase fora "amputada". Ficariam  impressionados.  Eu  era  feito  de  material  excelente,  que  se  recusava  a    apodrecer  ou  morrer.  E  não chorara. Era valente, também. Lembrei-me de como Papai ficara perto de mim, parecendo triste e preocupado.  Talvez  ele  realmente  me  amasse,  embora  eu  não  fosse  seu  filho  de  verdade.        -  Papai!  - exclamei  ao vê-lo.  -  Posso perceber  que  tem  boas  notícias. -  É  ótimo  ver  você  tão  animado  e  com  aparência  tão  feliz  -  disse  ele,    sentando-se  na  beirada  da  cama  e abraçando-me  antes  de  me  beijar.  Embaraçoso.  -  Bart,  tenho  grandes  notícias.  Sua  temperatura  está    normal. O  joelho  vem  cicatrizando  muito  bem.  Contudo,  ser  filho  de  um  médico  tem  suas  vantagens.  Vou  tirá-lo  do hospital ainda hoje.  Se não o fizer, temo que você definhe e acabe sumindo. Uma vez em casa, sei que  a deliciosa  comida de  Emma  logo cobrirá de  músculos esse esqueleto. Olhou-me com  ar  bondoso,  como se  eu lhe importasse  tanto quanto  Jory;  tive    vontade  de chorar. -  Onde está Mamãe?  -  perguntei. -  Tive  que  sair  cedo,  de  modo  que  ela  ficou  em  casa  preparando  uma  festa    especial  para  comemorar  seu retorno  -  portanto. você  não pode reclamar, não é? Claro que podia!  Eu a queria aqui  comigo!  Aposto que  ela não veio porque    teve que mimar  aquela tal  Cindy, colocando-lhe  lacinhos  nos  cabelos.  Permaneci    calado    e  deixei  que  Papai  me  carregasse  até  o  carro.  Era gostoso sair  ao  sol, voltando    para casa. No  vestíbulo,  Papai  colocou-me  de  pé  sobre  as  pernas  vacilantes.  Olhei  para    Mamãe,  que  se  dirigiu  primeiro a  Papai  e  beijou-lhe  o  rosto  -  quando  eu  estava    ali,    desejando  ser  beijado  em  primeiro  lugar.  Eu  sabia  por que  ela  agia  assim:  agora,    tinha  medo  de  mim.  Via  meu  corpo  magro,  o  rosto  ossudo  e  feio.  Esforçava-se por    sorrir  quando  olhava  para  mim.  Encolhi-me  quando  ela  se  aproximou  para  cumprir  seu    dever  para  com o  filho  que  não  morrera.  Quanta    felicidade  fingida!  Eu  sabia  que    ela    não  me  amava,  que  não  me  queria mais.  E  lá  estava  Jory,  também,  sorridente  e    fingindo  estar  feliz  por  ver-me  de  volta  ao  lar,  quando  eu  sabia que todos eles  gostariam  de me ver morto. Senti-me como Malcolm quando era menino, indesejável e abandonado,  tão malditamente  infeliz. -  Bart, meu querido!  -  exclamou Mamãe.  -  Por que  parece  tão tristonho? Não    se  alegra por  estar  de volta? Tomou-me  nos  braços  e  tentou  beijar-me,  mas  libertei-me  com  um  safanão.  Vi-  lhe  o  rosto  magoado,  mas isso  não  importava. Ela  estava apenas  fingindo, como  eu era obrigado a  fingir  o  tempo todo. -  É  tão  bom  ter  você  de  volta  em  casa,  querido  -  continuou  ela  com  suas    mentiras.  -  Emma  e  eu  passamos  a manhã  inteira  ocupadas  em  planejar  o  que  poderemos  fazer  para  torná-lo  feliz.  Desde  que  reclamou  tanto    da comida horrível  do  hospital, preparamos todos os seus  pratos preferidos. Ela  tornou  a  sorrir  e,  mais  uma  vez,  estendeu  os  braços  para  me  pegar,  mas    eu  não  permitira  que  se insinuasse com as "manhas femininas" de que me falava John Amos. Boa comida, sorrisos e beijos faziam parte das "manhas  femininas". -  Bart, não seja  tão  cético.  Emma e  eu preparamos todos os  seus  pratos    prediletos. Limitei-me a  encará-la. Ela  ficou vermelha, depois disse  com  esforço: -  Sabe, os  que você  aprecia  mais. Continuou obrigando-se  a ser  delicada, enquanto Papai  veio trazer-me uma    bengala. -  Apóie  a maior  parte do  peso na  bengala até  seu  joelho ficar  mais  forte. Era  um  tanto  divertido  mancar  pela  casa  como  um  velho,  como  Malcolm    Foxworth.  Gostava  de  que  eles  me mimassem, ficando preocupados quando eu não comia. Nenhum dos presentes que me deram poderia comparar-se  aos  que me daria minha  avó, na mansão  vizinha. -  Bolas,  Bart!  -  sussurrou  Jory  durante  o  jantar.  -  Precisa  mostrar-se  tão    ingrato?  Todo  mundo  se  esforçou muito para  agradá-lo. -  Detesto torta de  maçã. -  Você  disse  que torta de  maçã era  seu  doce  preferido. -  Nunca  disse  isso!  Também  detesto galinha... e purê  de batatas...  e salada    de verdura  -  detesto  tudo!
-  Acredito  -  disse um  irmão desgostoso, que me deu as  costas  e  ignorou    alguém  tão exigente quanto  eu. Então,  ele  estendeu a  mão para pegar  uma coxa de  galinha no meu prato. -  Bem, já  que você  não quer  comer, não  devemos deixar  que estrague... Comeu  a  galinha  toda.  Agora,  eu  não  poderia  entrar  sorrateiramente  na    cozinha  durante  a  noite  e empanturrar-me  quando  eles  não  estivessem  observando.    Pois  que    se  preocupassem  com  o  fato  de  eu definhar  até  ser  apenas  pele  e  ossos, indo    terminar  numa  cova  úmida  e  fria.  Descobririam  o  quanto  sentiriam falta de mim. -  Bart, por  favor, tente  comer  um  pouquinho  -  implorou Mamãe.  -  O  que há  de    errado  com  a torta? Fiz  uma carranca  e dei  um  tapa  na mão de  Jory  quando  ele  tentou pegar  uma    fatia  de torta no meu prato. -  Não consigo comer  torta sem  sorvete por  cima. Ela  me lançou um  sorriso  animado e  chamou: -  Emma, traga o sorvete! Empurrei  o prato para  longe de  mim  e  me afundei  na cadeira. -  Não me sinto bem. Quero  ficar  sozinho. Não  gosto de  ser  mimado. Estraga-me    o  apetite. Papai  olhou-me  como  se  estivesse  perdendo  a  paciência  comigo.  Também  não    ralhou  com  Jory  por  tentar roubar-me um  pedaço de  torta. Foi  o suficiente:    apenas uma    hora e  já se haviam  cansado de mim, desejando que eu  estivesse  morto. -  Cathy,  pare  de  implorar  a  Bart  -  disse  Papai.  -  Se  ele  não  quiser  comer,    pode  retirar-se  da  mesa.  Comerá quando  tiver  fome. Meu  estômago  já  roncava  naquele  momento.  Eu  não  podia  comer  o  que  estava  à    minha  frente,  agora  que Jory  já  levara  minha  comida  predileta.  Fiquei  sentado,    morrendo    de  fome,  enquanto  todos  me  esqueceram  e começaram  a  conversar,  rir  e  agir  como    se  eu  ainda  continuasse  no  hospital.  Levantei-me  da  mesa  e manquei  na direção do meu quarto. Papai  chamou: -  Bart!  Não  quero  você  brincando  lá  fora  até  que  essa  perna  tenha  tempo    suficiente  para  cicatrizar  por completo.  Tire  um  cochilo  com  a  perna  para  cima.    Depois,    poderá  assistir  à  televisão.  Que  tipo  de comemoração  era  aquele?  Fingindo-me  obediente,  entrei  no    quarto  e  parei  perto  da  porta,  a  fim  de  poder gritar  para a  sala de  jantar: -  Não perturbem  meu repouso! Mantiveram-me  duas  semanas  no  hospital  e  agora,  que  eu  estava  em  casa,    desejavam  prender-me  por  ainda mais tempo. Eu lhes mostraria! Ninguém me prenderia dentro de casa por mais uma maldita semana! Todavia,  alguém  se  manteve  de  olho  em  mim  dia  e  noite  antes  que,  afinal,  eu  conseguisse  fugir  pela  janela, após  passar  seis  dias    inteiros  preso  dentro  de  casa.  Eu  já  perdera  uma  parcela  grande  demais  do  verão,    bem como    minha viagem  à Disneylândia. Não  ia perder  mais nada. A  grande  árvore  velha  perto  do  muro  não  foi  amistosa,  dificultando-me  a    subida.  Quando  chegasse  ao terreno vizinho, minha perna doeria. A dor  não era    tão  gostosa    quanto  eu imaginara. Ser  "normal"  não  era  lá essas  coisas.  Certa  vez,  Jory    torcera  o  tornozelo  e  continuara  a  dançar,  ignorando  a  dor.  Eu  também  era capaz    de  ignorar    a dor. No  topo  do  muro,  olhei  para  trás,  a  fim  de  verificar  se  alguém  me  seguia.    Ninguém.  Ninguém  se  importava com  o  que  eu  fizesse    para  me  machucar.  Comecei  a  farejar.  Que  cheiro  de  podre  era  aquele,  saindo  do    oco do  carvalho?  Ah, consegui  lembrar-me  vagamente.  O  que  era?  Já  não  conseguia    lembrar-me    tão bem.  Tinha a mente confusa,  cheia de névoa que  ondulava como o nevoeiro    soprado pelo  vento do oceano. Maçã.  Era  melhor  pensar  em  Maçã.  Esquecer  o  joelho  rígido  e  dolorido,    fingindo  que  ele  pertencia  a  algum velho  frágil,  como  se  tornara  Malcolm  no    final.  Minha    perna  jovem  queria  correr,  mas  a  perna  velha assumiu o controle  de  todo  o meu    corpo, obrigando-me a  apoiar  o peso na bengala. Ohhh!  Que  visão  dolorosa  seria  deparar-me  com  o  pobre  Maçã  morto  no    celeiro.  Um  miserável  saco  de pele,  couro  e  ossos.  Eu  choraria,  gritaria,    detestaria  aqueles    que  haviam  tentado  obrigar-me  a  voar  para  o Leste  e abandonar  o melhor  amigo que    possuía. Só os  animais sabiam  amar  de verdade, com  devoção. Um  século  se  passara  desde  que  eu  percorrera  aquele  caminho  pela  última    vez.  E  tive  a  impressão  de  que mais  alguns  anos  se  passaram  antes  que  eu    mancasse  até    a  porta  do  celeiro.  Controle-se,  pensei.  Reforce  a espinha  com  aço,  como  fez    Malcolm.  Prepare  os  olhos  para  uma  visão  terrível,  pois  Maçã  o  amou  demais  e agora  teve  que  pagar  o  preço  disso,  morrendo.  Nunca,  nunca  mais    eu  encontraria  um  amigo  tão  verdadeiro quanto  o pônei-filhote  de cão que  fora o    meu    Maçã. Meu equilíbrio, que  jamais  fora bom, balançou-me de  um  lado para outro, da    frente para trás,  fazendo sentirme  atordoado e  louco.  Senti  que  havia  algo    atrás    de mim.  Olhei  por  cima  do  ombro  e  não  vi  ninguém.  Nada exceto  aquelas    amedrontadoras  formas  animais  que  não  passavam  de  arbustos  podados.  Os  estúpidos. jardineiros    deveriam  encontrar  algo  mais  útil  que  perderem  tempo  podando  arbustos,  enquanto    o  dinheiro de  verdade  estava  à  espera  de  alguém  realmente  esperto  para  ganhá-lo.    Agora,  eu  pensava  exatamente  como Malcolm;  John  Amos  ficaria  satisfeito.    Precisava  procurar  John  Amos,  a  fim  de  que  ele  me  tornasse  ainda mais  esperto.Suspeitando  do  pior,  aproximei-me  do  local  preferido  por  Maçã.  Agora,  não    conseguia enxergar.  Ficara  cego!  A  bengala  tateava  o  chão  à  minha  frente.    Escuro.    Por  que  tudo  estava  escuro? Avancei  com  vagar  e  cautela,  tentando  enxergar  no    escuro.  Todas  as  janelas  do  sótão  estavam  fechadas. Pobre  Maçã,  abandonado  para    morrer    de  fome  na  escuridão.  Senti  um  nó  na  garganta,  chorando  por  dentro, lamentando    um  animal  de  estimação que  me amara mais que à  própria  vida. Precisei  obrigar-me  a  avançar  mais  um  passo.  Ver  Maçã  morto  me  deixaria  uma    cicatriz  na  alma,  na  minha alma  eterna,  que  John  Amos  afirmava  precisar    permanecer    limpa  e  pura  se  eu  desejasse  chegar  aos  portais do  céu,  os  quais  Malcolm    alcançara.Mais  um  passo.  Estaquei.  Lá  estava  o  meu  Maçã  -  e  não  estava  morto! Achava-  se  numa  baia  com  a  janela  aberta  e  corria  atrás  de  uma  bola  vermelha,  pisando-a  com  as  enormes patas  semelhantes  às  de  um  pônei  -  e    havia  bastante  comida  em  sua  tigela.  E  água  fresca,  também.  Fiquei parado,    tremendo    da  cabeça  aos  pés,  enquanto  Maçã  me  ignorava  e  continuava  a  brincar  como  se  eu    nem estivesse  ali. Ora,  ele nem  sentira  falta de  mim! -  VOCÊ!  VOCÊ!  - berrei.  -  Esteve  comendo,  bebendo e  brincando!  Durante  todo    este  tempo,  eu  às  portas  da morte  e  você  nem  se  importou!  E  julguei  que  me  amava.  Pensei  que  fosse  sentir  muito  a  minha    falta.  E agora  nem  mesmo  late  para  me  dizer  que  está  feliz  por  ver-me  de  volta!  EU  O  ODEIO,  MAÇÃ!  EU  O ODEIO POR  NÃO SE  IMPORTAR    COMIGO! Então,  Maçã  me  avistou  e  correu  para  mim,  pulando  para  colocar-me  nos  ombros    as  patas  enormes  e lamber-me o rosto. Sacudia furiosamente o rabo, mas não conseguiu me enganar. Encontrara alguém que o tratasse  melhor  que  eu  -  macacos  me  mordam  se  eu  lhe  fazia  o  pêlo  ficar  tão  bonito.    -  Por  que  não  morreu de solidão!  -  gritei. Fitei-o  com  ódio,  desejando  que  murchasse  até  sumir.  Ele  pressentiu  minha    raiva  e  retomou  à  posição normal, enfiando o  rabo  entre as  pernas  e baixando a  cabeça para  me olhar  de esguelha. -  AFASTE-SE  DE  MIM!  PRECISA  SOFRER  COMO  EU  SOFRI;  ENTÃO,  FICARA  FELIZ  POR    TERME DE VOLTA! Peguei  toda  a  sua  comida  e  água,  jogando-as  num  velho  barril.  Apanhei  a    bola  vermelha  e  atirei-a  tão  longe que  nunca  mais  ele  conseguiria  encontrá-la.  Durante  todo  o  tempo,  Maçã  permaneceu  no  mesmo  lugar,    sem sacudir  o rabo. Queria-me  de volta, mas  agora  era  tarde demais. -  Fique  no  escuro  e  morra  de  fome!  Agora,  sentirá  minha  falta  -  solucei,    tropeçando  ao  afastar-me, trancando-o  no  celeiro  com  todas  as  janelas  fechadas.    -  Fique    no  escuro  e  morra  de  fome!  Nunca  mais voltarei!  Nunca! Tão  logo  cheguei  à  luz  do  sol,  lembrei-me  de  todo  o  feno  macio  que  ele    tinha  para  deitar-se.  Voltei  ao celeiro,  agarrei  um  ancinho  e  puxei  para  fora    todo  o    feno.  Maçã  gania,  tentando  fazer-me  festas  com  o focinho. Não  permiti. -  Deite-se  no chão duro e  frio!  Terá  dor  em  todos os  ossos, mas  não me    importo,  pois  agora não  o amo mais! Furioso, enxuguei  as lágrimas  e arranhei  o rosto. Durante  toda  a  minha  vida,  eu  fizera  apenas  três  amigos:  Maçã,  minha  avó  e    John  Amos.  Maçã  matara  meu amor  e  um  dos  outros  dois me  traíra,  alimentando  Maçã  e  roubando-me  seu  amor.  John  Amos  não  se  daria    o trabalho  -  portanto, tinha que ser  minha avó. Voltei  para  casa  atordoado.  Naquela  noite,  minha  perna  doeu  tanto  que  Papai    veio  a  meu  quarto  e  deu-me um comprimido.  Sentou-se  na  beirada  da  cama  e  me    tomou    nos  braços, fazendo-me  sentir  seguro ao ouvi-lo falar  baixinho  em  adormecer  e    ter  sonhos gostosos. Mergulhei  na  feiúra.  Esqueletos  por  todos  os  lados.  Sangue  correndo  em    grandes  rios,  carregando  pedaços de  seres  humanos  para  um  oceano  de  fogo.  Morto.    Eu  estava    morto.  Flores,  coroas  de  flores  no  altar. Pessoas  que  nem  me  conheciam  enviavam-  me  flores,  dizendo-me  que  estavam  satisfeitas  por  ver-me  morto. Escutei  o mar  de    fogo tocar  música  demoníaca,  fazendo-me odiar  ainda mais música  e dança. O  sol  entrou  pela  janela  e  me  incidiu  no  rosto,  roubando-me  do  abraço  do    demônio.  Quando  abri  os  olhos, aterrorizado com o que poderia ver, avistei apenas Jory em pé junto à cama, fitando-me com piedade. Eu não precisava de  piedade. -  Bart, você  chorou  durante  a noite. Sinto muito que sua perna ainda  doa. -  Minha perna não  dói  nada!  -  berrei. Levantei-me  para  mancar  até  a  cozinha,  onde  Mamãe  estava  dando  comida  a    Cindy.  Maldita  Cindy.  Emma fritava toucinho para  meu café da manhã.
-  Quero apenas  café e  torradas!  -  gritei.  -  Só isso! Mamãe  fez  uma careta dolorida  e depois me olhou, muito pálida. Estranho... -  Não grite, por  favor, Bart.  E você  não toma café. Por  que pediu café? -  Já é  tempo de agir  como uma pessoa da  minha  idade!  -  rosnei. Sentei-me  cautelosamente  na  cadeira  de  braços  de  Papai.  Ele  chegou  e  viu-me    sentado  em  sua  cadeira,  mas não  ordenou  que  me  levantasse.  Limitou-se  a  usar  uma  cadeira  sem  braços e  encher  até  a  metade  uma    xícara de café. Completou a xícara com  dois centímetros de creme de  leite e    entregou-a    a mim. -  Detesto creme no café! -  Como pode ter  tanta certeza se nunca experimentou?    -  Eu sei. Recusei-me  a  tomar  o  café  que  ele  estragara.  (Malcolm  gostava  de  café  puro  -    eu  também  gostaria,  a  partir de  agora).  Só  me  restava  à  frente  uma  torrada  pura    -  e  se  eu  precisava  ser  como  Malcolm  e  tornar-me esperto, não podia espalhar  manteiga e geléia de morangos na torrada. Indigestão. Como Malcolm, devia preocupar-me    com  indigestão. -  Papai, o que é  indigestão. -  Algo que você  não precisa ter. Era  realmente  difícil  tentar  ser  como  Malcolm  o  tempo  todo.  Segundos    depois,  Papai  estava  ajoelhado, examinando-me a  perna  doente. -  Parece  pior  hoje  que  ontem  -  comentou,  erguendo  a  cabeça  para  encarar-me    com  ar  desconfiado.  -  Bart, você  não andou engatinhando nesse  joelho machucado,    andou? -  Não!  -  gritei.  -  Não  sou  maluco!  As  cobertas  arranharam  um  pouco  a  pele.    Lençóis  ásperos.  Detesto lençóis  de algodão. Gosto  mais dos  lençóis de seda. Malcolm  só dormia em  roupas  de  cama de  seda. -  Como sabe?  -  indagou Papai.  -  Você  nunca  teve  lençóis de seda. Continuou  a  tratar  meu  joelho,  lavando-o  e  cobrindo-o  com  um  pó  branco,    antes  de  aplicar  um  tampão  de gaze  e  prendê-lo  com  esparadrapo.-  Agora,  Bart,  estou  falando  sério.  Não  quero  que  se  apóie  no  joelho. Fique    em  casa, longe do  jardim, ou sente-se  na varanda dos  fundos. Nada  de engatinhar  na terra. -  Não é  uma varanda, é um  pátio  -  repliquei  carrancudo, para  lhe mostrar  que    ele não sabia  tudo. -  Muito  bem,  é  um  pátio  -  isto  o  deixa  satisfeito?  Não. Eu  nunca  estava  satisfeito. Então,  pensei  melhor.  Sim, eu  às  vezes  me    sentia  satisfeito  -  quando  fingia  ser  Malcolm,  o  todo-poderoso,  o  mais  rico,  o  mais  esperto. Representar  o  papel  de  Malcolm  era    fácil  e  melhor  que  qualquer  outra  coisa  ou  pessoa.  De  algum  modo,  eu tinha    certeza    de  que,  se  continuasse  a  representá-lo,  acabaria  exatamente  como  Malcolm  -  rico,    poderoso, amado. O  tipo  mais  comprido  e  chato  de  dia  se  arrastou  interminavelmente,  com  todos    de  olho  atento  em  mim.  O crepúsculo chegou e Mamãe ocupou-se em embelezar-se para Papai, que deveria chegar a qualquer momento.  Emma  preparava  o  jantar.  Jory  estava  na  aula  de  balé.  E  eu  fugi  do  pátio  às  escondidas.  Apresseime  em  atravessar  o  jardim    antes  que  alguém  me  detivesse.O  cair  da  tarde  estava  fantasmagórico,  com sombras  compridas  e  ameaçadoras.    Todas  as  pequenas  criaturas  noturnas  que  voavam  e  zumbiam  tinham saído  das  tocas  para  rodear-me  a  cabeça,  Tentei  espantá-las  com    tapas.  Ia  procurar  John  Amos.  Ele  estava sentado sozinho em  seu quarto,  lendo    uma    revista que  se  apressou em  esconder  quando entrei  sem  bater. -  Não  devia  fazer  isso  -  declarou  num  tom  azedo,  nem  mesmo  sorrindo  para    mostrar-se  satisfeito  porque  eu ainda  estava vivo  e com  as  duas  pernas. Era  fácil  assumir  a  expressão  sombria  de  Malcolm  e  assustá-lo.  -  Você  deu  comida  e  água  a  Maçã  enquanto estive  fora?        -  Claro  que  não  -  replicou  ele  ansiosamente.  -  Foi  sua  avó  quem  alimentou  e    deu  de  beber  ao cachorro.  E  tratou  dele.  Eu  já  lhe  disse  que  jamais  se  deve    confiar    em  que  as  mulheres  cumpram  a  palavra. Corrine  Foxworth  não  é  melhor  que  qualquer    outra  mulher,  com  suas  manhas  para  induzir  os  homens  a  se transformarem  em  escravos    delas. -  Corrine Foxworth...  é esse  o nome dela? -  Naturalmente.  Eu  já  lhe  disse  antes.  É  filha  de  Malcolm.  Ele  a  batizou  com    o  nome  da  mãe  dele,  a  fim  de lembrar-se  sempre  do  quanto  as  mulheres  são  falsas,    de  que  até  mesmo  uma  filha  seria  capaz  de  traí-lo  - embora ele  a amasse  muito.    Demais, na  minha  opinião. Eu  já começava a  me cansar  de estórias  sobre as mulheres  e  suas "manhas". -  Por que  não manda  ajeitar  a dentadura?  -  perguntei. Não gostava da  maneira como ele sibilava e  assoviava por  entre os  dentes    postiços  soltos  demais. -  Ótimo!  Falou  exatamente  como  Malcolm.  Está  aprendendo.  A  doença  lhe  fez    bem  à  alma  -  como aconteceu  com  ele.  Agora,  escute  com  atenção,  Bart:  Corrine  é  sua  verdadeira  avó  e  foi  casada  com  seu verdadeiro  pai.    Era  a  filha  mais  amada  por  Malcolm  e  traiu-o  ao  fazer  algo  tão  pecaminoso  que    precisa    ser castigada. -  Precisa  ser  castigada? -  Sim,  severamente  castigada;  mas  você  não  deve  permitir  que  ela  perceba  que    seus  sentimentos  mudaram. Finja que  ainda a  ama, que  ainda  a admira. E, dessa  maneira, ela  se  tornará vulnerável. Eu  sabia  o  que  significava  vulnerável.  Mais  uma  daquelas  palavras  que  fora    obrigado  a  aprender.  Fraco;  é ruim ser fraco. John Amos foi buscar sua Bíblia e colocou minha mão sobre a surrada capa preta, toda rachada  e descascando. -  A  Bíblia  do  próprio  Malcolm  -  disse  ele.  -  Legou-a  a  mim  em  seu    testamento...  embora  pudesse  ter  legado mais alguma coisa... Compreendi  que  John  Amos  era  a  única  pessoa  no  mundo  que  ainda  não  me    desapontara.  Ali  estava  o verdadeiro  amigo  de  que  eu  necessitava.  Velho,  mas  eu    também    era  capaz  de  ser  velho,  quando  desejava. Embora não pudesse  retirar  os dentes  da    boca  e colocá-los numa xícara cor  de marfim. Olhei  para a  Bíblia, desejando retirar  a mão, mas  sentindo medo do que    poderia  acontecer  se  o  fizesse. -  Jure  sobre  esta  Bíblia  que  agirá  como  Malcolm  desejaria  que  seu  bisneto    agisse:  exercendo  vingança  sobre aqueles  que mais  fizeram  mal  a  ele. Como  podia  eu  jurar  o  que  ele  exigia,  quando  uma  pequena  parte  de  mim    continuava  a  amá-la?  Talvez  John Amos estivesse  mentindo. Talvez  Jory  tivesse  alimentado e  cuidado de  Maçã. -  Por  que  hesita,  Bart?  É  um  fraco?  Não  tem  tutano?  Olhe  novamente  para  sua    mãe,  veja  como  usa  o  corpo, o  rosto  bonito,  os  beijos  e  abraços,  para  induzir  seu  pai  a  fazer  tudo  que  ela  quer.  Repare  como    ele  trabalha até  tarde,  como  está cansado  ao  voltar  para  casa.  Pergunte a  si    mesmo    o  motivo.  Ele  faz  isso por  si  próprio  - ou  para  ela  comprar  roupas  novas,    casacos  de  pele,  jóias,  e  morar  numa  casa  grande  e  bonita?  É  assim  que as    mulheres usam    os  homens, fazendo-os trabalhar  enquanto elas  se  divertem. Engoli  em  seco.  Mamãe  trabalhava.  Ensinava  balé.  Contudo,  isso  era  mais    diversão  que  trabalho,  não  é mesmo? Ela alguma vez  comprava alguma coisa  com  seu    próprio    dinheiro? Eu não me lembrava. -  Agora,  entre  para  visitar  sua  avó  e  comporte-se  como  antes.  Logo    descobrirá  quem  o  traiu.  Não  fui  eu. Entre  e  seja  como  Malcolm.  Chame-a  de    Corrine,  observe    os  olhos  dela  mostrarem  medo  -  e  saberá  quem de nós  dois  é leal  e digno  de    confiança. Eu  jurara  castigar  os  que  haviam  traído  Malcolm,  mas  não  estava  satisfeito    comigo  mesmo  ao  entrar, mancando, na sala que ela preferia usar. Parei na porta e a encarei, o coração batendo com força, tamanho era  meu  desejo  de  correr  para  seus  braços  e  sentar-me  em  seu  colo.  Era  certo    comportar-me    como Malcolm, sem  lhe dar  uma oportunidade  de explicar-se? -  Corrine  -  chamei  com  voz ríspida. Oh,  a  brincadeira  era  tão  boa  que  eu  simplesmente  não  conseguia  ser  Bart  e    sentir-me  seguro.  Quando  era Malcolm, sentia-me tão forte e  cheio  de razão. -  Bart!  -  exclamou  ela,  feliz,  levantando-se  para  estender  os  braços.  -    Finalmente  veio  visitar-me!  Estou  tão contente  por  vê-lo bem  e forte  outra vez. Então, hesitou e  indagou: -  Quem lhe disse meu nome? -  John  Amos  -  repliquei,  carrancudo.  -  Ele  me  contou  que  você  alimentou  Maçã    e  lhe  deu  água  enquanto estive fora. É verdade? -  Sim,  querido,  é  claro  que  fiz  tudo  por  Maçã.  Ele  sentiu  tanto  a  sua  falta    que  fiquei  com  pena. Naturalmente,  você  não  está  zangado.        -   Você  o  roubou  de  mim  -  declarei,  chorando como  um  bebê.  -  Ele era  o  único    amigo  que  tive  na  vida,  o  único  que  realmente  me  amava;  e  você  o  roubou.  Agora,    ele  gosta mais de  você  que de mim. -  Não, não gosta, Bart. Ele  pode gostar  de mim,  mas  ama  você. Agora,  ela  já  não  sorria  nem  parecia  satisfeita.  Exatamente  como  dissera  John    Amos,  percebi  que  estava aplicando suas  manhas. Ia dizer-me  mais mentiras. -  Não  fale  tão  asperamente  comigo  -  pediu.  -  Não  é  adequado  a  um  menino  de    dez  anos.  Querido,  esteve longe tanto  tempo e senti  tanto a  sua  falta!  Não pode    demonstrar    nem  um  pouco de  afeição? De repente, a despeito  de meu  juramento, corri  para  os  braços dela  e me    pendurei  em  seu pescoço. -  Vovó!  Machuquei  o  joelho  para  valer!  Suei  tanto  que  a  cama  ficou  molhada.    Enrolaram-me  num  cobertor frio;  Papai  e  Mamãe  me  esfregaram  com  gelo.  Havia  um    médico    malvado  que  desejava  cortar  minha  perna, mas  Papai  não  permitiu. Aquele médico    disse  estar  satisfeito  por  eu não  ser  filho dele.
Parei  para  tomar  fôlego, esquecendo-me totalmente  de  Malcolm. -  Vovó,  descobri  que  Papai  me  ama,  apesar  de  tudo  -  senão,  gostaria  que    aquele  médico  cortasse  minha perna. Ela  pareceu chocada. -  Bart,  pelo  amor  de  Deus!  Como  pode  ter  a  menor  dúvida  que  seu  pai  o  ame?    Naturalmente  que  ama.  Teria que amá-lo. Christopher  sempre foi  um  menino bondoso,  carinhoso... Como  sabia  ela  que  meu  pai  se  chamava  Christopher?  Apertei  as  pálpebras.  Ela    levara  as  mãos  aos  lábios, como se  acabasse  de  revelar  involuntariamente algum    segredo.    Depois, começou  a chorar. Lágrimas.  Um  dos  truques  que  as  mulheres  aplicavam  nos  homens.        Virei-me  para  outro  lado.  Detestava lágrimas.  Detestava  pessoas  fracas.    Pousei  a  mão  no  peito  da  camisa  e  senti  a  capa  dura  do  diário  de Malcolm contra  a pele.  Aquele livro me dava a força de Malcolm, transferindo-a das páginas para meu sangue.  O  que  importava  se  eu  tinha  o  corpo  imperfeito  e  fraco  de  uma  criança?    Que  diferença    fazia  isso, quando  ela  logo aprenderia  quem  mandava ali? Minha casa. Precisava voltar  para casa  antes  que dessem  por  minha falta. -  Boa-noite, Corrine. Deixei-a a  chorar, ainda  matutando a  respeito  de como ela podia saber  o  nome    de  Papai. Em meu  jardim,  tornei  a  verificar  o  caroço  de  pêssego.  Nada  de  raízes,    ainda.  Tornei  a  cavar  as  ervilhas-decheiro.  Ainda  não  brotavam.  Eu  não  tinha    sorte  com    flores,  com  caroços  de  pêssego,  com  nada.  Com  nada a não ser fazer o papel de  Malcolm, o poderoso. E nisso, eu estava ficando cada vez melhor. Sorridente e satisfeito,    fui  para a  cama. OS CHIFRES DO  DILEMA Bart  nunca  estava  em  nosso  jardim,  onde  deveria  estar.  Subi  na  árvore  e  me    sentei  no  muro.  Então,  avistei Bart  no quintal  da velha, de  joelhos,    engatinhando.    Farejando o  solo como um  cão. -  Bart!  -  berrei.  -  Trevo se  foi  e você  não pode  substituí-lo! Eu  sabia  o  que  ele  estava  fazendo:  enterrando  um  osso  e,  depois,  farejando    ao  redor  até  encontrá-lo.  Ele ergueu a  cabeça, os  olhos vidrados  e    desorientados...    e então começou a  latir. Gritei  com  ele,  para  chamá-lo  à  realidade,  mas  Bart  continuou  representando    o  cãozinho  travesso  antes  de transformar-se,  repentinamente, num  velho  que  arrastava  a  perna.  E  nem  mesmo  era  a  sua  perna    machucada. Que garoto maluco! -  Ande direito, Bart!  Você  tem  apenas  dez  anos, não  cem. Se continuar    andando  torto,  crescerá  assim. -  Dias  tortos levam  a caminhos tortos. -  Isso não faz  sentido. -  E o Senhor  disse:  "Faça  aos outros  o que  lhe  fizeram". -  Errado. O certo é:  "Faça  aos outros  o que gostaria que lhe  fizessem". Estendi  a  mão  para  ajudar  o  que  parecia  ser  um  velho.  Bart.  carrancudo,    levou  a  mão  ao  peito,  ofegou  e gritou que sofria do  coração, que não agüentaria subir  numa árvore. -  Estou  farto  de  você,  Bart.  Só  faz  criar  casos.  Tenha  um  pouco  de    consideração  para  com  Mamãe  e  Papai... e comigo, também. Será  embaraçoso  tê-lo como irmão ao voltarmos à  escola. Ele  mancou  atrás  de  mim  a  caminho  de  casa,  ainda  ofegante,  murmurando  entre    gemidos  que  já  era  um mestre das finanças. -  Jamais existiu um  cérebro  mais esperto  que o meu  -  resmungou. Será  que  desta  vez  ele  ficou  biruta  de  verdade?  Foi  a  única  coisa  que    consegui  pensar  ao  escutá-lo.  Prendi  a respiração,  espantado,  quando  ele    esfregou  as  mãos    com  uma  escova,  como  se  desejasse  realmente  limpálas.  Aquilo  não  era  mesmo  coisa  de  Bart.  Ele  continuava  fingindo  ser  outra    pessoa.  Logo  escovou  os  dentes e  foi  deitar-se.  Apressei-me  a  procurar  um  local    de  onde  poderia  escutar  o  que  diziam  meus  pais,  que estavam  na sala de  estar,    dançando ao  ritmo  de uma  música lenta. Como  sempre,  algo  terno,  suave  e  romântico  invadiu-me  ao  vê-los  assim.  O    modo  carinhoso  como  ela  o fitava;  a  maneira  delicada  como  ele  a  tocava.    Pigarreei  antes    que  fizessem  algo  íntimo  demais.  Sem mudarem  de posição,  ambos me lançaram    olhares  indagadores. -  Sim, Jory?  -  disse Mamãe, com  uma expressão  sonhadora nos olhos. -  Quero  conversar  com  vocês  a  respeito  de  Bart  -  declarei.  -  Acho  que  devem    tomar  conhecimento  de  certas coisas. Papai  pareceu  aliviado.  Mamãe  deu a  impressão de  murchar  ao  sentar-se,    calada,  ao lado dele no sofá.
-  Esperávamos que  você  nos procurasse  com  um  segredo de  Bart. Nada  daquilo foi  fácil  de dizer. -  Bem  -  comecei  devagar,  esperando  encontrar  as  palavras  adequadas.  -  Em    primeiro  lugar,  creio  que  devem saber  que  Bart  tem  muitos  pesadelos,  dos  quais    acorda    chorando.  Finge  demais,  tal  como  caçar  animais ferozes e outros passatempos  normais numa criança. Todavia, julgo que ultrapassa os limites quando o surpreendo engatinhando    e farejando o solo, depois desenterrando um  osso velho e sujo para carregá-lo    nos dentes e  enterrá-lo noutro lugar. Fiz  uma  pausa  e  aguardei  que  dissessem  alguma  coisa.  Mamãe  mantinha  a  cabeça    virada,  como  se procurasse  escutar  o vento.  Papai  inclinara-se  para  a frente,    fitando-me    com  grande  atenção. -  Prossiga, Jory  -  incitou.  -  Não se  interrompa agora. Não somos cegos.    Vemos como Bart  está mudando. Temendo contar  mais, baixei  a  cabeça  e  falei  em  voz  muito baixa: -  Tentei  falar-lhes  antes,  várias  vezes.  Mas  tive  medo,  então.  Vocês    pareciam,  ambos,  tão  preocupados  com Bart  que não tive  coragem  de falar. -  Por favor, não omita nada  -  disse Papai. Olhei  para ele, sentindo-me  incapaz  de enfrentar  o  olhar  temeroso de  Mamãe. -  A  velha  da  casa  vizinha  dá  a  Bart  todos  os  tipos  de  presentes  caros.  Deu-  lhe  um  filhote  de  São  Bernardo que  ele  batizou  de  Maçã, dois trens  elétricos  em    miniatura,    completos com  uma  aldeia,  montanhas, pontes... enfim,  todos  os  acessórios.    Transformou  um  enorme  salão  da  mansão  numa  sala  de  brinquedos exclusivamente    para  Bart.    E  daria  presentes  a  mim,  também,  mas  Bart  não  permite.        entreolharam. Afinal,  Papai  perguntou: -  O que mais? Atordoados,  eles  se Engoli  em  seco e  escutei  minha voz, rouca  e esquisita.  Esta  era  a pior    parte,  a que  realmente magoava: -  Ontem,  estive  no  quintal  dos  fundos,  perto  do  muro...  vocês  sabem,  onde    existe  aquela  árvore  oca.  Levei  a tesoura  de  podar  e  estava  trabalhando  como  você  me  ensinou,  Papai,  quando  senti  o  cheiro  de    alguma  coisa apodrecida.  Quando  fui  examinar...  encontrei...  -  tive  que  engolir    em  seco    mais  uma  vez,  antes  de  conseguir continuar:  -  Encontrei  Trevo. Estava morto e    apodrecendo. Cavei  uma sepultura para ele. Virei  as  costas  para enxugar  as  lágrimas  e depois contei-lhes  o resto: -  Achei  um  arame farpado  torcido no pescoço dele. Alguém  matou    deliberadamente o meu  cachorro! Eles  continuaram  sentados  no  sofá,  parecendo  chocados  e  amedrontados.  Mamãe    piscou  para  conter  as lágrimas;  ela  também  gostava  de  Trevo.  Suas  mãos  tremiam    ao    pegar  um  lenço.  Em  seguida,  ela  cruzou nervosamente  os  dedos,  mantendo-os  sobre    o  colo.  Nem  ela  nem  Papai  perguntaram  quem  matara  Trevo. Creio  que  pensavam  o    mesmo    que  eu.Antes  de  deitar-se,  Papai  veio  ao  meu  quarto  e  conversou  comigo durante  uma    hora,  fazendo  todo  tipo  de  perguntas  a  respeito  de  Bart,  o  que  fizera  ele  esta  vez,  aonde  fora;  e, também,  sobre  a  mulher  da  mansão    vizinha,  bem  como  o  mordomo.  Sentia-me  melhor,  agora  que  os prevenira.  Podiam  planejar  o  que  fazerem  com  Bart.  E,  naquela  noite,    chorei  pela  última  vez  por  Trevo,  que fora  meu  primeiro  e  único  animal  de    estimação.    Eu  ia  completar  quinze  anos,  quase  a  idade  de  um  homem, e lágrimas  eram  apenas    para garotinhos  -  não para um  rapaz  com  um  metro e oitenta de altura. -  Deixe-me  em  paz!  -  berrou  Bart  quando  lhe  pedi  que  não  fosse  mais  à  mansão    da  velha.  -  Pare  de  me delatar  ou há de  arrepender-se! Cada  dia  nos  aproximava  mais  de  setembro  e  do  reinício  das  aulas.  Até  onde    me  era  possível  perceber,  Bart não  reagia  aos  carinhosos  cuidados  que  lhe    dispensavam    meus  pais.  Na  minha  opinião,  mostravam-se compreensivos demais para  com  ele. -  Ouça-me bem, Bart, e pare de  fingir  que é  Malcolm  Neal  Foxworth, seja  ele    quem  for! Não  obstante,  Bart  não  deixava  de  lado  o  fingimento,  a  manqueira,  o  coração    fraco  que  o  fazia  arquejar  e gemer. -  Ninguém  está  à  espera  de  sua  morte  para  lhe  herdar  a  fortuna.  Meu  caro    irmãozinho,  você  não  tem  fortuna nenhuma! -  Tenho  vinte  bilhões,  dez  milhões,  cinqüenta  e  cinco  mil,  seiscentos  e    quarenta  e  dois  dólares  e  trinta centavos! - replicou ele, enumerando nos dedos. - Mas não consigo lembrar-me do quanto possuo em debêntures  e  ações,  de  modo  que  acho  que  você  pode  triplicar  esse  montante.  Um  homem  que  consegue dizer  o quanto possui  não é  rico    de verdade. Eu  nem  sabia  que  ele  era  capaz  de  dizer  um  número  como  aquele.  No  exato    momento  em  que  eu  ia responder  algo  sarcástico,  Bart  soltou  um  grito  e  dobrou-se  em  dois.  Caiu  ao  chão,  respirando  com dificuldade.
-  Depressa...  minhas  pílulas...  Estou  morrendo!  Meu  braço  esquerdo  está    dormente!  Salve-me!  Chame  os médicos! Foi  quando  saí  de  casa  para  o  jardim.  Sentei-me  numa  cadeira  no  gramado  e    comecei  a  ler  um  romance  de bolso.  Bart  estava  realmente  enchendo-me  as  medidas.    Era    como  viver  com  o  Dr.  Jekyll  e  Mr.  Hyde,  o médico  e  o  monstro.  Se  ele  precisava    representar,  por  que  diabo  não  escolhia  algum  papel  melhor  que  o  de um velho    manco    e cardíaco? -  Jory, não se  importa  se  eu  morrer?  -  Bart  saiu de casa  para me perguntar. -  Não. -  Você  nunca  gostou de  mim! -  Gostava mais de  você  quando se  comportava como alguém  da sua idade. -  Acreditaria  se  eu  lhe  dissesse  que  Malcolm  Neal  Foxworth  é  o  pai  de  nossa    vizinha  e  ela  é  realmente minha avó, de verdade? -  Ela  lhe disse  isso? -  Não.  John  Amos  contou-me  parte,  ela  conta  o resto. John  Amos  conta-me    muita  coisa.  Disse-me  que  Papai Chris  e  Papai  Paul  não  eram  irmãos;  que  minha  mãe  só  diz  isso  para  não  descobrirmos  seu  pecado.    Amos diz  que  meu  verdadeiro  pai  era  um  homem  chamado  Bart  Winslow,  que  morreu  num  incêndio.  Nossa  mãe  o seduziu. Seduziu? Lancei-lhe um  prolongado olhar  indagador. -  Sabe o que  significa essa  palavra? -  Não... mas  sei  que  é ruim, muito ruim! -  Ama nossa  mãe? A  preocupação  atormentou-lhe  os  olhos  escuros.  Sentou-se  pesadamente  no  chão    e  contemplou  os  sapatos de tênis.  Deveria  ter  Respondido depressa, espontaneamente. -  Bart,  faça-me  um  grande  favor  -  e  a  você  mesmo,  também:  entre  em  casa  e    conte  a  Mamãe  e  Papai  o  que o preocupa.  Eles  compreenderão  tudo.  Sei  que  você  julga  que  Mamãe  gosta  mais  de  mim,  mas  não  é    verdade. Ela  tem  lugar  no coração para dez  filhos. -  Dez?  -  gritou ele.  -  Quer  dizer  que  Mamãe  vai  adotar  outros? Levantou-se  de  um  pulo  e  correu,  mancando,  como  se  o  fingimento  de  velho  lhe    tivesse  roubado  a  pouca agilidade  que possuía. Na  minha opinião, aquela estadia    no  hospital  lhe  roubara  muitas  coisas. Foi  bisbilhotice  de  minha  parte,  e,  também,  não  muito  honroso,  mas  tive  que    escutar  o  que  Bart  disse  a Mamãe  quando  ficaram  a  sós.  Ela  estava  na  varanda  dos    fundos,  com  Cindy  no  colo,  lendo  um  livro enquanto  a  menina  cochilava.  Quando    Bart  se  aproximou  correndo,  Mamãe  largou  o  livro  e  passou  Cindy para  uma  cadeira    próxima.    Bart  ficou  de  pé  a  encará-la  com  uma  súplica  muda  nos  olhos.  Então,  dentre todas  as  coisas possíveis,  ele perguntou: -  Qual  é o seu nome? -  Você  sabe  o meu nome  -  respondeu ela. -  Começa com  C? -  Sim,  claro que  começa com  C. Agora, ela parecia perturbada. -  Mas...  mas...  -  titubeou  ele.  -  Conheço  alguém  que  chora  quando  você  vai    embora.  Alguém  pequeno  como eu,  que  é  trancado  em  armários  e  outros  lugares  horríveis  pelo  pai,  que  não  gosta  mais    dele.  Uma  vez,  o  pai o  colocou  de  castigo  no  sótão.  Um  sótão  grande,  escuro,    amedrontador,    com  camundongos,  aranhas e  sombras  fantásticas  por  toda parte. Mamãe  deu a  impressão de  congelar-se. -  Quem lhe contou  tudo  isso? -  A madrasta dele  tinha cabelos  ruivos, até que  ele  descobriu  que  ela  não    passava de  amante do  seu pai. Mesmo  de  onde  estava  escondido,  escutei  Mamãe  respirar  forte  e  depressa,    como  se  aquele  garotinho  que ela  costumava pegar  no  colo se  tornasse repentinamente perigoso e  ameaçador. -  Querido, você  não sabe  o  que é  uma amante, sabe? Bart  fitou o  espaço. -  Havia  uma  dama  esbelta  e  alva,  com  tons  vermelhos  nos  cabelos  escuros.  E    nem  mesmo  era  casada  com  o pai  dele,  que não  se importava com  o que ele  fazia,  se  chorava ou  até mesmo se  morria. Os lábios de Mamãe  tremeram,  mas  ela forçou um  sorriso. -  Bart, creio que você  tem  alma de  poeta.  Tudo  isso tem  cadência,  ritmo. Ele  fez  uma carranca, voltando para ela os olhos escuros e  ardentes.
-  Desprezo poetas,  artistas,  músicos  e bailarinos! Ela  estremeceu e não posso  dizer  que a  censurei. Ele também  me causou medo. -  Bart,  preciso  fazer-lhe  uma  pergunta  e  você  deve  responder  com  franqueza.    Lembre-se:  não  importa  o  que responder, não  sofrerá castigo. Você  machucou    Trevo? -  Trevo foi  embora. Nunca  mais voltará, agora, para  morar  na minha casa de    cachorro. Mamãe  o  afastou  de  si  com  um  safanão  e  se  ergueu  depressa  para  deixar  a    varanda.  Então,  lembrou-se  de Cindy  e  voltou  correndo  para  pegá-la  no  colo.  Nada  do  que  ela  fez  me  tranqüilizou  quando  observei  o    olhar de Bart. Como  sempre,  logo  após  um  de  seus    "ataques"  de  maldade,  Bart  ficou  cansado  e  sonolento,  indo  deitar-se sem  jantar.    Minha  mãe  sorriu,  depois  riu,  e  vestiu-se  para  comparecer  a  uma  festa  formal  em    homenagem  a meu  pai,  que  fora  eleito  chefe  da  equipe  médica  do  hospital  onde    trabalhava.  Postei-me  à  janela  e  observei Papai  conduzi-la orgulhosamente ao    carro. Tarde,  muito  depois  das  duas,  ouvi-os  chegarem.  Eu  ainda  não  adormecera  e    pude  escutá-los  conversando na sala de estar. -  Chris,  não  consigo  entender  Bart,  o  modo  como  fala,  a  forma  como  se    movimenta,  nem  mesmo  sua aparência.  Tenho medo de  meu próprio  filho  e isso  é    doentio. -  Ora,  querida  -  disse  Papai,  passando  o  braço  pelos  ombros  dela.  -  Creio    que  está  exagerando.  Se  continuar assim, Bart  crescerá  para ser  um  grande  ator. -  Chris,  sei  que  às  vezes  febre  muito  alta  pode  causar  danos  ao  cérebro  de    uma  criança.  A  febre  afetou  parte do  cérebro  de  Bart?  -  Ouça,  Cathy:  os  exames  de  Bart  deram  ótimos  resultados.  Não  meta  idéias  na    cabeça só  porque  o  submetemos  aos  testes.  Todos  os  pacientes  que  têm  febre  alta  são  obrigados  a  fazer  exames desse  tipo. -  Mas encontraram  algo anormal?  -  insistiu  ela. -  Não  -  disse  Papai  em  tom  firme.  -  Ele  é  apenas  um  garotinho  comum,  com    muitos  problemas  emocionais. E se alguém  pode  compreender  o  que ele  está passando, somos nós. O que significaria  aquilo? -  Mas  Bart  tem  de  tudo!  Não  está  crescendo  como  nós  crescemos.  Devia  sentir-  se  feliz.  Não  fazemos  todo  o possível  para  isso?  -  Sim,  mas  às  vezes  nem  isso  é  o  bastante.  Cada  criança  é  diferente,  tem    necessidades diferentes. Obviamente, não estamos dando a Bart  o que ele    necessita. Mamãe  era  dada  a  respostas  rápidas  e  acaloradas.  Não  obstante,  permaneceu    sentada,  calada  e  imóvel, enquanto  eu  esperava  obter  maiores  informações.  Papai    queria    que  ela  fosse  imediatamente  para  a  cama,  o que  era  fácil  perceber  pelo  modo  como  ele  lhe  beijou  o  pescoço.    Contudo,  ela  estava  imersa  em  reflexões profundas. Manteve o olhar  fixo nas sandálias  prateadas  ao falar  de como Trevo morrera. -  Não  poderia  ter  sido  Bart  -  declarou  devagar,  como  se  tentasse  convencer-  se,  e  a  Papai  também.  -  Tinha que  ser  algum  sádico  que  tortura  animais  -  você  se    lembra    de  como  lemos  que  os  animais  do  zôo  estavam sendo mutilados?  Um  desses  homens    deve ter  avistado  Trevo... E não completou a  frase,  pois raramente víamos algum  desconhecido na estrada    de  nossa  casa. -  Chris  -  acrescentou,  enquanto  aquela  horrível  expressão  de  medo  permanecia    em  seu  rosto.  -  Hoje  Bart  me pegou  inteiramente  de  surpresa.  Falou-me  a  respeito  de  um  garotinho  que  era  trancado  pelo  pai  em    armários e  no  sótão.  Mais  tarde,  disse-me  que  o  menino  se  chamava  Malcolm.  Como    poderia    ter  conhecimento  dele? Quem poderia  ter-lhe contado esse nome?  Chris,  julga  que  Bart  descobriu algo a  respeito  de nós? Tive  um  sobressalto.  O  que  havia  a  respeito  deles  que  eu  ainda  não  sabia?    Compreendi  que  tinham  algum terrível  segredo.  Afastei-me  furtivamente  e  corri  de    volta    a  meu  quarto,  jogando-me  na  cama.  Algo  horrível estava errado  em  nossas vidas.    Eu o  sentia nos  ossos  -  e Bart  devia  senti-lo nos dele,  também. A SERPENTE O  sol  e  o  nevoeiro  brincavam,  fazendo-se  mutuamente  companhia.  Eu  era    obrigado  a  ficar  sentado  sozinho em  nosso jardim.  Para  divertir-me,  olhava  as  grossas  cascas  que  se  haviam  formado  sobre  as  feridas  em    meu joelho.  Fora  prevenido  por  Papai  para  não  arrancá-las,  a  fim  de  não  ficar    com    cicatrizes  -  mas  quem  se importava  com  cicatrizes?  Comecei  a  levantar    cuidadosamente  as  beiradas  da  camada  de  casca,    só  para  ver o  que  havia  por  baixo  delas.  Não  vi  coisa  alguma  a  não  ser  pele    tenra    e  avermelhada,  pronta  para  sangrar novamente.O  sol  ganhou  o  brinquedo  no  céu  e  brilhou,  quente,  sobre  minha  cabeça.  Quase    consegui  escutar meus  miolos fritando. Não me agradava a  idéia de  miolos fritos,    de modo que procurei  uma sombra.Agora, a cabeça  me  doía.  Mordi  o  lábio  inferior  com  força  suficiente  para    arrancar  sangue.  Não  doeu,  mas  incharia tanto  posteriormente  que  Mamãe  teria  que  ficar  preocupada.  Isso  era  ótimo.  Ela  devia    preocupar-se  com  o que  se  passava  comigo.Eu  costumava  ser  o  menininho  da  Mamãe,  que  recebia  montes  de  afeição,  até    que surgiu  aquela  maldita  garotinha  para  tomar-me  o  lugar.  Em  breve,  Mamãe  e    Jory    voltariam  da  aula  de  balé. Era  tudo  com  que  se  importavam:  a  dança  e  Cindy.  Eu    conhecia  as  coisas  mais  importantes  da  vida,  o  que mais  contava:  dinheiro.    Quando    se  possuía  muito  dinheiro,  não  era  preciso  pensar  em  ter  necessidade  dele ou num    meio de consegui-lo.  John Amos e  o diário de  Malcolm  me haviam  ensinado isso. -  Bart  -  disse  Emma,  que  se  aproximara  silenciosamente  por  trás  de  mim.  -    Sinto  muitíssimo  que  você  tenha perdido  a  viagem  à  Disneylândia.  Para  compensar,  preparei  um  pequeno  bolo  de  aniversário    exclusivamente para você. Trazia  nas  mãos  um  pequeno  bolo,  com  uma  única  vela  enfiada  na  cobertura  de    chocolate.  Eu  não  tinha apenas  um  ano  de  idade!  Dei  um  tapa  no  bolo,  que  escapou    das  mãos  de  Emma  e  caiu  ao  chão.  Ela  soltou um grito, parecendo magoada  o    bastante para  chorar,  e recuou. -  Não  foi  uma  atitude  muito  grata  ou  bondosa  -  declarou,  engasgada.  -  Bart,    por  que  precisa  comportar-se tão mal?  Todos  nós tentamos o melhor  possível  para agradá-lo. Mostrei-lhe a  língua. Ela suspirou e me deixou em  paz. Mais  tarde,  Emma  tornou  a  sair,  desta  vez  com  aquela  garotinha  nojenta  no    colo.  Não  era  minha  irmã.  Eu não queria irmãs. Escondi-me  atrás  de  uma  árvore  e  olhei  em  volta.  Emma  colocou  Cindy  na  piscina    de  plástico.  A  garota bateu  os  pés  e  as  mãos  na  água  rasa.  Idiota,  idiota,    idiota...    nem  mesmo  sabia  nadar.  Veja  só  como  Emma  ri e  gosta  daquelas  palhaçadas  de  bebê,    quando  eu  sou  capaz  até  de  plantar  bananeira.  Se  eu  me  sentasse  na piscina  e    batesse    os pés e  as  mãos, ela não me acharia  tão engraçadinho... Esperei  que  Emma  fosse  embora,  mas  ela  puxou  uma  cadeira,  sentou-se  e    começou  a  descascar  ervilha. Plop, plop, plop...  as  ervilhas  verdes  caíam  na    tigela azul. -  Isso  mesmo,  queridinha  -  disse  Emma,  encorajando  Cindy.  -  Bata  na  água,    mexa  as  pernas  bonitas,  sacuda os braços  lindos,  fortaleça  os membros e  dentro em  breve estará nadando. Observei  e  esperei,  cada  ervilha  que  caía  na  tigela  indicando  que  logo  Emma    seria  obrigada  a  levantar-se  e voltar  à  cozinha.  Cindy  ficaria  sozinha.    Totalmente    sozinha.  E  não  sabia  nadar.  Os  gatos  se  abaixavam como eu, quando queriam  pegar    um  passarinho. Gostaria  de ter  um  rabo para abanar. A  última  ervilha  verde  caiu  na  tigela.  Emma  se  levantou  para  sair.  Retesei    os  músculos.  Naquele  instante, Mamãe  chegou  em  seu  brilhante  carro  vermelho  e    parou    perto  da  garagem.  Emma  foi  cumprimentá-la.  O primeiro  a sair  do carro foi  Jory,    saltando pelo gramado. -  Olá,  Emma!  -  disse  ele.  -  O  que  temos  para  o  jantar?          -  Você  gostará  do  meu  jantar,  não  interessa  o  que seja - respondeu Emma,  derretendo-se em sorrisos para ele, o seu querido bonitão. Não era assim que ela tratava    a  mim  -  o  moleque!  -  Quanto  a  Bart  -prosseguiu  ela  -,  sei  que  detestará  as    ervilhas,  o  ensopado  de legumes, as  costeletas  de carneiro  e a  sobremesa. Só    Deus  sabe    como é difícil  agradar  aquele menino. Mamãe  parou  para  conversar  com  Emma  como  se  esta  não  fosse  uma  empregada,    depois  correu  para  brincar com  Cindy, abraçando-a  e beijando-a como se  não visse  a molequinha  há dez  anos. -  Mamãe!  -  chamou Jory.  -  Por que  não nos trocamos e  entramos na  piscina com    Cindy? -  Aposto uma corrida  com  você  até  em  casa,  Jory!  -  concordou Mamãe. Os dois  saíram  correndo  como crianças. -  Agora,  seja  boazinha  e  continue  a  brincar  com  o  patinho  de  borracha  e  o    barquinho  -  disse  Emma  a  Cindy. -  Emma  voltará logo. Levantei  a  cabeça  antes  de  começar  a  esfregar  a  barriga  no  chão.  A    molequinha  na  piscina  se  levantou  e tirou  o  maiô.  Totalmente  nua  e  atrevida,    jogou  o  maiô    contra  mim  e  depois  tentou-me,  riu  e  atormentou-me com  sua  carne  nua.  Então,  como  se  chateada  com  minha  reação,    tornou  a  sentar-se  na  água  rasa  e  mirou  o próprio  corpo  com  um  leve  sorriso    secreto.  Pecaminosa!    Desavergonhada!  Imaginem!Mostrando-me  suas partes  privadas!As  mães  deviam  ensinar  suas  filhas  a  se  comportarem  com  decência,  recato  e    modéstia. Minha  mãe  era  exatamente  como  Corrine,  que  John  Amos  afirmava  ser    fraca    e  nunca  punira  devidamente os  filhos:  "Sim,  Bart,  sua  avó  estragou  os  filhos  e    agora  eles  vivem  em  pecado,  zombando  de  Deus  e  das normas  da  moral!”Acho  que  cabia  a  mim  ensinar  à  Cindy  uma  lição  de  vergonha  e  recato.    Rastejei  para diante.  Agora,  ela  me  dava  atenção.  Seus  olhos  azuis  se    arregalaram,  os  lábios  rosados  e  cheios  se entreabriram.  A  princípio,  pareceu  contente  porque  eu,  afinal,  ia  brincar  com  ela.  Então,  algum    instinto  de sabedoria  lhe  trouxe  medo ao  olhar.  Ficou imóvel  e  lembrou-me  um    tímido    coelho  com  medo  de  uma  cobra malvada.  Serpente.  Muito  melhor  ser  uma  serpente    que  um  gato.  Uma  serpente  no  Jardim  do  Éden,  fazendo a  Eva  o  que  deveria  ter    sido  feito    no  início  do  mundo.  Fora,  disse  o  Senhor  ao  ver  Eva  em  sua  nudez,  saiam do  Éden    e  deixem  que  o  mundo  lhes  atire  pedras!  Sibilando  e  movimentando  rapidamente  a  língua, aproximei-me  devagar.  Era  o    Senhor  quem  mandava  e  eu  quem  obedecia.  Mãe  pecadora  que  deixava  de castigar-me    e    me  transformara  no  que  eu  era,  uma  serpente  malvada  querendo  cumprir  as  ordens    do Senhor,  mesmo  que  não  me  agradassem.Tentei  empregar  toda  a  minha  força  de  vontade  para  achatar  a cabeça  e torná-la  pequena, chata,  semelhante  à  de  uma  cobra.Lágrimas  brotaram  nos  grandes  olhos  medrosos de  Cindy  e  ela  começou  a  chorar    alto, procurando  passar  por  cima  da  beirada  arredondada  da piscina  rasa. A água    não    era suficientemente profunda para  afogar  uma  garotinha, ou Emma não a teria    deixado sozinha. Mas...  se  uma  boa  constrictor,  uma  jibóia  do  Brasil  estivesse  por  ali  -  que    possibilidades  teria  uma  menina de dois anos?Ultrapassei  a  borda  da piscina  e rastejei  na água. Cindy  gritou: -  Barr-tie!  Vá  embora, Barr-tie! -  Sssss... ssss...  -  prosseguiu eu, com  sibilos mais prolongados  que os de    John Amos. Enrolei  o  corpo  no  pequeno  corpo  despido  de  Cindy,  prendendo  minhas  pernas    sob  seu  pescoço,  arrastandoa  para  a  água.  Não  podia  realmente  afogá-la,  mas  o  Senhor, lá  em  cima,  tinha  que  advertir  todos  aqueles    que pecavam.  Eu  vira  serpentes  das  selvas  desarticular  os  maxilares,  na  TV.    Tentei    desarticular  os  meus.  Então, poderia  engolir  Cindy  inteira. De  repente,  outra  cobra  me  pegou!  Gritei,  larguei  Cindy  para  não  me    afogar...  nem  ser  devorado  vivo! Senhor,  por  que me  esqueceste? -  Que  diabo  você  pensa  que  está  fazendo?  -  berrou  Jory,  rubro  de  raiva,    sacudindo-me  até  fazer-me  a  cabeça rolar.  -  Observei-o rastejar  até  aqui,  só    para  ver    o que  tinha em  mente. Bart... você  tentou  afogar  Cindy? -  Não!  -  repliquei,  sufocado.  -  Apenas castiguei-a um  pouquinho, não  muito. -  Sim  -  rosnou  ele.  -  Como  castigou  um  pouquinho  Trevo.  -  Nunca  fiz  nada  a  Trevo.  Cuido  bem  de  Maçã. Não sou um  menino mau... não    sou, não,  não... -  Se é tão inocente, por  que  está  chorando?  Você  matou Trevo!  Estou  lendo  em    seus olhos! Olhei  duro  para  Jory, sentindo-me invadir  por  uma onda de  fúria. -  Você  me odeia!  Sei  que me odeia! Joguei-me  para  diante,  tentando  esmurrá-lo.  Não  consegui.  Baixei  a  cabeça,    recuei  e  depois  corri  para  a frente,  a  fim  de  acertar-lhe  uma  cabeçada  no    estômago.    Ele  caiu,  dobrado  em  dois,  gritando  de  dor.  Antes que  ele  me  matasse,  dei-lhe  um    pontapé,  mas  não  imaginava  acertar  onde  o  atingi.  Minha  pontaria  nunca  foi boa.    Puxa... deve ter  doído  um  bocado! -  É  sujeira  bater  na  virilha  -  gemeu  ele,  tão  pálido  que  parecia  à  beira  de    um  desmaio.  -  Isso  é  sujeira,  Bart. Covardia,  também. Nesse  ínterim,  Cindy  se  recobrara  o  bastante  para  sair  da  piscina.  Correu    para  casa  a  passos  vacilantes, gritando  a plenos pulmões. -  Garotinha má e  pecaminosa!  -  berrei.  -  Tudo  isto é  culpa dela!  Culpa dela! Emma  saiu  correndo  pela  porta  dos  fundos,  o  avental  branco  esvoaçando,  as    mãos  cobertas  de  farinha  de trigo. Foi seguida de  perto  por  Mamãe, que usava um  sumário  biquíni  azul. -  Bart, o que você  fez?  -  gritou Mamãe. Pegou Cindy  no colo  e depois abaixou-se  para  pegar  uma toalha  largada  por    Emma. -  Mamãe...  -soluçava Cindy.  -  Cobra grande  veio... cobra grande! Ora,  imaginem  só!  Ela  sabia  o  que  eu  era.  Afinal,  Cindy  não  era  tão  idiota.    Mamãe  a  enrolou  na  toalha  e  a colocou  em  pé  no  gramado.  Olhou  furiosamente  para    mim    no  momento  em  que  tornei  a  erguer  o  pé  para dar  outro pontapé  em  Jory, que    arquejava de  dor. -  Bart,  se  ousar  dar  outro  pontapé  em  Jory,  vai  arrepender-se!    Emma  me  fitava  com  ódio.  Olhei  de  uma  para outra.  Todo  mundo  me  odiava,    gostaria  de  ver-me  numa  cova.Zangado  e  cheio  de  dor,  Jory  tentou  levantarse. Já  não era  tão  gracioso,    agora. Tão  desajeitado  quanto  eu.  E já  não era  tão  bonito, também.  Não  obstante, conseguiu gritar: -  Você  está  louco,  Bart!  Completamente  louco!          -  Bart,  não  se  atreva  a  jogar  essa  pedra  em  seu  irmão!  - gritou  Mamãe,    quando me abaixei  para pegar  uma. -  Menino medonho!  -  berrou Emma.  -  Não  jogue isso! Girei  nos  calcanhares  e  corri  para esmurrar  Emma. -  Pare de  me insultar!  -  berrei.  -  Não sou medonho!  Não sou ruim! Mamãe  correu para  mim, agarrou-me e  jogou-me ao chão. -  Nunca  mais jogue  uma  pedra em  sua  vida,  nem  use  os  punhos  contra  uma    mulher!  -  berrou ela,  prendendome os  ombros  de encontro  ao chão. Uma  raiva  rubra  dominou-me  o  cérebro,  fazendo-me  vê-la  como  todas  as    mulheres  cheias  de  manhas  e Curvas  "sedutoras".  Malcolm  sabia  tudo  a  respeito    delas,  escrevera    tudo  sobre  seu  desejo  de  esmagar-lhes os  seios  até  ficarem  chatos.  Enchi  os  olhos  Com  o  ódio  malicioso  de    Malcolm  e  isso  deu  resultado.  Mamãe começou a tremer  enquanto  me segurava. -  O que há  de errado com  você, Bart? Não sabe o que  está dizendo ou fazendo.    Nem  mesmo  parece a  mesma pessoa. Exibi  os  dentes  como  se  quisesse  mordê-la  -  e,  depois,  tentei.  Ela  me    esbofeteou,  com  força,  repetidamente, até que comecei  a chorar. -  Suba  para  o  sótão  e  fique  lá,  Bart  Sheffield,  até  eu  subir  para  verificar    o  que  precisa  ser  feito  para endireitá-lo! O sótão causava medo. Sentei-me na  beirada  de uma das pequenas  camas  e    esperei  que  ela viesse. Nunca  me espancara  antes;  todo  o  castigo  que  eu  sofrera    foram    alguns  tapas,  além  dos  que  levara  hoje...  e  agora  ela me fazia exatamente o que    fora  feito a Malcolm. Eu era exatamente como  ele. A  porta  do  sótão  se  abriu  e  escutei  os  passos  dela  nos  degraus  estreitos  e    íngremes.  Seus  lábios  estavam apertados  numa  linha  severa  quando  ela  se  postou    diante    de  mim,  como  uma  torre,  olhando  para  baixo, dando a  impressão de  que era um    esforço  fitar-me. Nunca  antes eu a  vira com  a aparência tão severa. -  Baixe as  calças, Bart. -  Não! -  Faça  o que estou mandando ou o castigo será muito  pior. -  Não!  Não  pode  me  bater.  Encoste  a  mão  em  mim  e  esperarei  até  você  estar  na    aula  de  balé  -  pegarei  Cindy e Emma, não conseguirá me impedir! Posso estar em mil lugares antes que ela chegue ao primeiro - e a Policia  não me porá  na cadeia Porque sou menor!  -  Bart, estou perdendo a paciência  com  você. -  Não perderá  só a  paciência, se me bater!  -  berrei. Ela  parou  a  um  metro  de  onde  eu  estava  sentado  na  cama.  Suas  mãos  pequenas  e    alvas  se  ergueram  até  a garganta e  ela disse baixinho: -  Oh,  Deus...  -  foi  apenas  um  sussurro  rouco.  -  Eu  deveria  saber  que  Um    filho  concebido  em  tais circunstâncias resultaria  nisto. Bart,  sinto muitíssimo que seu  filho  seja um  monstro. Um monstro? Eu era um  monstro? Não...  o  monstro  era  ela!  Estava  me  fazendo  exatamente  o  que  a  mãe  de  Malcolm    fizera:  a  causa  dele  ser trancado  no sótão  e  castigado. Odiei-a, então,  tanto quanto  a amara antes... E gritei: -  Eu a odeio, Mamãe!  Quero que caia  morta! Foi  então  que  ela  recuou,  com  lágrimas  nos  olhos.  Depois,  virou-se  e  correu.    Todavia,  antes  de  descer  a escada,  trancou  a  porta  a  fim  de  manter-me  preso    naquele  miserável  sótão  abafado  que  eu  tanto  detestava  e temia.  Ela  me  transformaria  num    homem  forte  como  Malcolm  -  e  malvado,  também.  Algum  dia,  haveria  de pagar-me.  Eu    a  obrigaria  a  pagar  por  me  fazer  aquilo,  quando  eu  queria  ser  bom  e  desejava    apenas  que  ela gostasse  de  mim  um  pouquinho  mais  que  de  Jory  ou  Cindy.  Nunca    nada  acontecia    como  eu  queria  que acontecesse. Foi  Papai  quem  surrou  minhas  nádegas  nuas,  depois  que  chegou  em  casa  e    escutou  tudo  o  que  tinham  a  lhe contar  a meu respeito. Admirei-o pelo modo como    ignorou    minhas  súplicas e  explicações. -  Sentiu alguma coisa?  -  perguntou ele quando  terminou e eu  levantei  as    calças. Sorri. -  Não.  Para  me  machucar,  você  teria  que  me  quebrar  os  ossos.  Então,  a    polícia  o  prenderia  por  abusar  de uma criança. Ele  me estudou com  severos olhos  azuis. -  Acha  que  nos  derrotou,  não  é  mesmo?  -  perguntou  ele  do  modo  calmo  e    racional  que  lhe  era  peculiar.  - Julga  que  por  ser  menor  não  existe  lei  que    possa  tocá-lo;    mas  está  enganado,  Bart.  Vivemos  numa sociedade  civilizada,  na  qual  se  espera    que  as  pessoas  ajam  de  acordo  com  as  regras.  Ninguém  está  fora  do controle da lei, nem mesmo o  Presidente. E o pior dos castigos para uma criança é permanecer trancada, impedida    de movimentar-se  para onde quiser. Parecendo  tristonho,  acrescentou: -  Isso pode  constituir  uma experiência  deveras  traumática. Permaneci  calado. Ele  retomou a palavra: -  Sua  mãe  e  eu  decidimos  que  não  é  mais  possível  tolerarmos  seu    comportamento.  Tão  logo  eu  conseguir acertar  os  detalhes,  você  passará  a ir  diariamente a  um  psiquiatra.  Se  formos  obrigados,  caso  você  insista    em desafiar-nos,  nós  o  entregaremos  aos  cuidados  de  médicos  que  podem  ajudá-lo  a    aprender  como  comportarse  normalmente.
-  Não  podem  obrigar-me!  -  protestei,  engasgado,  temendo  que  um  médico  de    loucos  me  trancasse  atrás  de grades pelo  resto da  vida.  -  Se tentarem, eu me  matarei! Papai  me encarou  severamente. -  Não  se  matará,  Bart.  Portanto,  não  fique  aí  sentado,  julgando-se  capaz  de    ser  mais  esperto  que  sua  mãe  e eu. Nós  já  enfrentamos gente maior  e  mais sagaz  que um  menino de dez  anos. Não  se  esqueça    disso. Mais  tarde,  naquela  mesma  noite,  quando  eu  estava  deitado,  escutei  Mamãe  e    Papai  realmente  berrando  um com  o outro,  discutindo  como eu nunca ouvira  antes. -  Por  que  mandou  Bart  para  o  sótão,  Catherine?  Precisava  fazer  isso?  Não    podia  apenas  mandá-lo  ficar  no quarto e  esperar  até que eu  voltasse para casa? -  Não!  Ele  gosta  de  ficar  no  quarto.  Lá,  dispõe  de  tudo  para  tornar  o  local    agradável.  Fiz  o  que  era necessário. -  O que era necessário fazer, Cathy? Será que  não percebe quem  você  está    parecendo? -  Bem  -  replicou  ela  num  tom  gelado  -,  não  é  o  que  sempre  venho  dizendo  que    sou:  uma  megera  que  só  se importa consigo mesma? Levaram-me  a  um  médico  de  loucos  no  dia  seguinte,  empurraram-me  para  uma    cadeira  e  mandaram-me ficar  quieto.  Ficaram  sentados  perto  de  mim  até  que  uma    porta    se  abriu  e  fomos  chamados  a  entrar.  Uma médica  estava  sentada  numa  grande  mesa    de  trabalho.  Poderiam,  ao  menos,  ter  escolhido  um  homem. Detestei  a  médica    porque    tinha  os  cabelos  lisos  e  pretos  como  os  de  Madame  Marisha  quando  era  jovem  e posava para fotografias. Sua blusa  branca era estufada  na    frente, de modo que precisei  desviar  os olhos. -  Dr. Sheffield, o  senhor  e  sua esposa  podem  aguardar  lá fora. Conversaremos    mais tarde. Vi  meus  pais  se  retirarem  da  sala.  Nunca  me  sentira  tão  sozinho  como  quando    aquela  mulher  se  voltou  para mim e  me fitou  com  olhos  bondosos, que  ocultavam  pensamentos malvados. -  Não lhe agrada estar  aqui,  não é  mesmo?  -  perguntou  ela. Não lhe  dei  a satisfação de  saber  que  eu a  escutara. -  Sou a Dra. Mary  Oberman. E daí? -  Há brinquedos  sobre a  mesa. Fique à  vontade. Brinquedos...  Eu  não  era  um  bebê.  Encarei-a  raivosamente.  Ela  virou  a  cabeça    e  percebi  que  se  sentia  pouco à vontade,  embora tentasse  não demonstrar. -  Seus  pais  me  contaram  que  você  gosta  de  brincar  de  "faz-de-conta".  É  por    isso  que  não  tem  muitos companheiros de  brincadeiras? Eu  não  tinha  nenhum,  mas  não  confessaria  o  fato  àquela  mulher  idiota.  Seria    tolice  contar  a  ela  que  John Amos era meu melhor  amigo. Antes  fora a  minha  avó,    mas    esta me traíra. -  Bart,  pode ficar  aí  sentado  e  permanecer  calado,  mas  só  consegue  magoar    aqueles  que  mais  o amam  e  você é  quem  sai  mais  magoado,  no  final.  Seus  pais    desejam    ajudá-lo.  Foi  por  isso  que  o  trouxeram  aqui.  Você precisa cooperar e tentar.  Diga-me se é feliz. Diga-me se está frustrado e se gosta do modo que sua vida está transcorrendo. Eu  não  diria  que  sim,  nem  que  não.  Não  diria  nada  e  ela  não  poderia  obrigar-  me  a  falar.  Então,  ela  começou a  falar  sobre  pessoas  que  se  mantinham  fechadas  e    como  isso  era  capaz  de  arruiná-las  emocionalmente. Todas  as suas  palavras foram    como pingos de  chuva na vidraça por  detrás da  qual  eu me abrigara. -  Você  odeia sua mãe  e seu  pai? Não respondi. -  E seu irmão Jory  -  você  gosta  dele? Jory  era  legal. Seria melhor  se  fosse mais  desajeitado e  mais feio  que  eu. -  E sua irmã adotiva, Cindy... o que acha  dela?        anotações no    bloco  de papel. Talvez  meu olhar  tenha revelado alguma coisa, pois ela  fez -  Bart  -  começou  ela  ao  deixar  a  caneta  de  lado,  o  rosto  procurando  parecer    maternal  e  bondoso  -,  caso  se recuse  a  colaborar,  não  teremos  outra  escolha    senão    interná-lo  num  hospital,  onde  muitos  médicos  poderão tentar  ajudá-lo  a  recuperar    o  controle  sobre  suas  emoções.  Não  será  maltratado,  mas  não  será  tão  gostoso quanto estar em casa. Não  terá seu próprio quarto, seus objetos pessoais, seus pais - a não ser uma vez  por semana,  durante  apenas  uma  hora.  Portanto,  não  acha  que  seria  muito  melhor    tentar  ajudar-se  a  si  mesmo, antes  que  esta  situação  progrida?  O  que  o    transformou  tanto    em  relação  ao  menino  que  você  era  no  verão passado?Não  desejava  ser  trancado  numa  casa  de  doidos,  com  malucos  que  talvez  fossem    maiores  e  mais malvados  que eu, sem  poder  visitar  John Amos e  Maçã.
O  que  poderia  fazer?  Lembrei-me  de  trechos  do  diário  de  Malcolm,  do  modo    como  ele  deixava  as  pessoas pensarem  que estava  cedendo, quando, na verdade,  prosseguia  em  seu próprio  caminho. Choraria,  pediria  desculpas  -  e  quando  o  fazia,  até  mesmo  eu  julgava  estar    sendo  sincero.  Assim  sendo, respondi: -  É  Mamãe...  ela  gosta  mais  de  Jory  que  de  mim.  E  gosta  mais  de  Cindy,    também.  Não  tenho  ninguém. Detesto não ter  ninguém. E  continuei,  interminavelmente.  Mesmo  depois  que  tagarelei  de  verdade,  ela    disse  a  meus  pais  que  eu precisava continuar  as  sessões  durante um  ano, ou mais. -  Ele  é  um  menino  muito  confuso  -  disse,  sorrindo  e  tocando  o  ombro  de  minha    mãe.  -  Não  se  considere culpada.  Bart  parece  estar  programado  para  detestar-se    e,    muito  embora  possa  aparentar  que  a  odeia por  não amá-lo  o  suficiente,  ele  não    gosta  de  si  mesmo.  Portanto,  acredita  que  todas  as  pessoas  que  o  amam  são tolas.    É    realmente  uma  doença.  Tão  real  como  qualquer  doença  física  e,  sob  certos    aspectos,  ainda  pior, pois Bart  não  consegue encontrar-se. Eu estava escondido, escutando o que  diziam, surpreso  por  ouvi-la dizer    aquilo. -  Ele  a  ama,  Sra.  Sheffield,  com  um  amor  quase  religioso.  Conseqüentemente,    espera  que  a  senhora  seja perfeita  e,  ao  mesmo  tempo,  sabe  que  não  é  digno  de    sua    atenção;  ainda  assim,  paradoxalmente,  quer  que  a senhora o veja e  o  considere o    melhor  filho que possui. -  Mas  eu  não  entendo  -  disse  Mamãe,  recostando  a  cabeça  no  ombro  de  Papai.  -    Como  pode  ele  me  amar  e, ao mesmo tempo,  desejar  tanto magoar-me? -  A  natureza  humana  é  deveras  complexa.  Seu  filho  é  muito  complexo.  O  bem  e    o  mal  lutam  para  dominarlhe a  personalidade. Inconscientemente,  ele  tem  conhecimento  dessa  batalha  e  encontrou  uma  solução    realmente  intrigante. Identifica  seu  lado  mau  com  um  velho  que  ele  chama  de    Malcolm.    Apenas  um  dentre  os  muitos personagens  que lhe permitem  gostar  mais de si  mesmo. Meus  pais ficaram  totalmente imóveis, de  olhos arregalados, parecendo  um    tanto  indefesos. Horas  depois,  antes  de  fazer  minhas  preces  noturnas,  esgueirei-me  pelo    comprido  corredor  e  fiquei escutando  à porta do quarto  deles.Mamãe  estava dizendo: -  ... como se  estivéssemos sempre trancados naquele sótão e  nunca, nunca  mais    sejamos libertados. Que  relação  tinha  o  sótão  com  Malcolm  e  eu?  Seria  apenas  porque  ambos  fôramos    mandados  para  lá,  de castigo? De gatinhas, afastei-me silenciosamente pelo corredor, voltei  à cama e  fiquei    deitado em  silêncio, com  medo de mim  mesmo e do  meu "subconsciente". Embaixo  do  travesseiro  estava  o  diário  de  Malcolm,  que  eu  ia  absorvendo  dia  a    dia,  noite  após  noite. Tornando-me  mais forte, mais  esperto.

OS ESPINHOS DO MAU ( Concluído) Onde histórias criam vida. Descubra agora