Era ótimo como Mamãe se preocupava comigo. Não duraria muito. Ela mudaria logo que eu ficasse curado. Duas longas semanas neste fedorento hospital onde queriam cortar minha perna e queimá-la na fornalha. Sentia-me feliz ao olhar para baixo e ver a perna ainda no mesmo lugar. Puxa! Eu mal podia esperar para voltar à escola e contar a todos que minha perna quase fora "amputada". Ficariam impressionados. Eu era feito de material excelente, que se recusava a apodrecer ou morrer. E não chorara. Era valente, também. Lembrei-me de como Papai ficara perto de mim, parecendo triste e preocupado. Talvez ele realmente me amasse, embora eu não fosse seu filho de verdade. - Papai! - exclamei ao vê-lo. - Posso perceber que tem boas notícias. - É ótimo ver você tão animado e com aparência tão feliz - disse ele, sentando-se na beirada da cama e abraçando-me antes de me beijar. Embaraçoso. - Bart, tenho grandes notícias. Sua temperatura está normal. O joelho vem cicatrizando muito bem. Contudo, ser filho de um médico tem suas vantagens. Vou tirá-lo do hospital ainda hoje. Se não o fizer, temo que você definhe e acabe sumindo. Uma vez em casa, sei que a deliciosa comida de Emma logo cobrirá de músculos esse esqueleto. Olhou-me com ar bondoso, como se eu lhe importasse tanto quanto Jory; tive vontade de chorar. - Onde está Mamãe? - perguntei. - Tive que sair cedo, de modo que ela ficou em casa preparando uma festa especial para comemorar seu retorno - portanto. você não pode reclamar, não é? Claro que podia! Eu a queria aqui comigo! Aposto que ela não veio porque teve que mimar aquela tal Cindy, colocando-lhe lacinhos nos cabelos. Permaneci calado e deixei que Papai me carregasse até o carro. Era gostoso sair ao sol, voltando para casa. No vestíbulo, Papai colocou-me de pé sobre as pernas vacilantes. Olhei para Mamãe, que se dirigiu primeiro a Papai e beijou-lhe o rosto - quando eu estava ali, desejando ser beijado em primeiro lugar. Eu sabia por que ela agia assim: agora, tinha medo de mim. Via meu corpo magro, o rosto ossudo e feio. Esforçava-se por sorrir quando olhava para mim. Encolhi-me quando ela se aproximou para cumprir seu dever para com o filho que não morrera. Quanta felicidade fingida! Eu sabia que ela não me amava, que não me queria mais. E lá estava Jory, também, sorridente e fingindo estar feliz por ver-me de volta ao lar, quando eu sabia que todos eles gostariam de me ver morto. Senti-me como Malcolm quando era menino, indesejável e abandonado, tão malditamente infeliz. - Bart, meu querido! - exclamou Mamãe. - Por que parece tão tristonho? Não se alegra por estar de volta? Tomou-me nos braços e tentou beijar-me, mas libertei-me com um safanão. Vi- lhe o rosto magoado, mas isso não importava. Ela estava apenas fingindo, como eu era obrigado a fingir o tempo todo. - É tão bom ter você de volta em casa, querido - continuou ela com suas mentiras. - Emma e eu passamos a manhã inteira ocupadas em planejar o que poderemos fazer para torná-lo feliz. Desde que reclamou tanto da comida horrível do hospital, preparamos todos os seus pratos preferidos. Ela tornou a sorrir e, mais uma vez, estendeu os braços para me pegar, mas eu não permitira que se insinuasse com as "manhas femininas" de que me falava John Amos. Boa comida, sorrisos e beijos faziam parte das "manhas femininas". - Bart, não seja tão cético. Emma e eu preparamos todos os seus pratos prediletos. Limitei-me a encará-la. Ela ficou vermelha, depois disse com esforço: - Sabe, os que você aprecia mais. Continuou obrigando-se a ser delicada, enquanto Papai veio trazer-me uma bengala. - Apóie a maior parte do peso na bengala até seu joelho ficar mais forte. Era um tanto divertido mancar pela casa como um velho, como Malcolm Foxworth. Gostava de que eles me mimassem, ficando preocupados quando eu não comia. Nenhum dos presentes que me deram poderia comparar-se aos que me daria minha avó, na mansão vizinha. - Bolas, Bart! - sussurrou Jory durante o jantar. - Precisa mostrar-se tão ingrato? Todo mundo se esforçou muito para agradá-lo. - Detesto torta de maçã. - Você disse que torta de maçã era seu doce preferido. - Nunca disse isso! Também detesto galinha... e purê de batatas... e salada de verdura - detesto tudo!
- Acredito - disse um irmão desgostoso, que me deu as costas e ignorou alguém tão exigente quanto eu. Então, ele estendeu a mão para pegar uma coxa de galinha no meu prato. - Bem, já que você não quer comer, não devemos deixar que estrague... Comeu a galinha toda. Agora, eu não poderia entrar sorrateiramente na cozinha durante a noite e empanturrar-me quando eles não estivessem observando. Pois que se preocupassem com o fato de eu definhar até ser apenas pele e ossos, indo terminar numa cova úmida e fria. Descobririam o quanto sentiriam falta de mim. - Bart, por favor, tente comer um pouquinho - implorou Mamãe. - O que há de errado com a torta? Fiz uma carranca e dei um tapa na mão de Jory quando ele tentou pegar uma fatia de torta no meu prato. - Não consigo comer torta sem sorvete por cima. Ela me lançou um sorriso animado e chamou: - Emma, traga o sorvete! Empurrei o prato para longe de mim e me afundei na cadeira. - Não me sinto bem. Quero ficar sozinho. Não gosto de ser mimado. Estraga-me o apetite. Papai olhou-me como se estivesse perdendo a paciência comigo. Também não ralhou com Jory por tentar roubar-me um pedaço de torta. Foi o suficiente: apenas uma hora e já se haviam cansado de mim, desejando que eu estivesse morto. - Cathy, pare de implorar a Bart - disse Papai. - Se ele não quiser comer, pode retirar-se da mesa. Comerá quando tiver fome. Meu estômago já roncava naquele momento. Eu não podia comer o que estava à minha frente, agora que Jory já levara minha comida predileta. Fiquei sentado, morrendo de fome, enquanto todos me esqueceram e começaram a conversar, rir e agir como se eu ainda continuasse no hospital. Levantei-me da mesa e manquei na direção do meu quarto. Papai chamou: - Bart! Não quero você brincando lá fora até que essa perna tenha tempo suficiente para cicatrizar por completo. Tire um cochilo com a perna para cima. Depois, poderá assistir à televisão. Que tipo de comemoração era aquele? Fingindo-me obediente, entrei no quarto e parei perto da porta, a fim de poder gritar para a sala de jantar: - Não perturbem meu repouso! Mantiveram-me duas semanas no hospital e agora, que eu estava em casa, desejavam prender-me por ainda mais tempo. Eu lhes mostraria! Ninguém me prenderia dentro de casa por mais uma maldita semana! Todavia, alguém se manteve de olho em mim dia e noite antes que, afinal, eu conseguisse fugir pela janela, após passar seis dias inteiros preso dentro de casa. Eu já perdera uma parcela grande demais do verão, bem como minha viagem à Disneylândia. Não ia perder mais nada. A grande árvore velha perto do muro não foi amistosa, dificultando-me a subida. Quando chegasse ao terreno vizinho, minha perna doeria. A dor não era tão gostosa quanto eu imaginara. Ser "normal" não era lá essas coisas. Certa vez, Jory torcera o tornozelo e continuara a dançar, ignorando a dor. Eu também era capaz de ignorar a dor. No topo do muro, olhei para trás, a fim de verificar se alguém me seguia. Ninguém. Ninguém se importava com o que eu fizesse para me machucar. Comecei a farejar. Que cheiro de podre era aquele, saindo do oco do carvalho? Ah, consegui lembrar-me vagamente. O que era? Já não conseguia lembrar-me tão bem. Tinha a mente confusa, cheia de névoa que ondulava como o nevoeiro soprado pelo vento do oceano. Maçã. Era melhor pensar em Maçã. Esquecer o joelho rígido e dolorido, fingindo que ele pertencia a algum velho frágil, como se tornara Malcolm no final. Minha perna jovem queria correr, mas a perna velha assumiu o controle de todo o meu corpo, obrigando-me a apoiar o peso na bengala. Ohhh! Que visão dolorosa seria deparar-me com o pobre Maçã morto no celeiro. Um miserável saco de pele, couro e ossos. Eu choraria, gritaria, detestaria aqueles que haviam tentado obrigar-me a voar para o Leste e abandonar o melhor amigo que possuía. Só os animais sabiam amar de verdade, com devoção. Um século se passara desde que eu percorrera aquele caminho pela última vez. E tive a impressão de que mais alguns anos se passaram antes que eu mancasse até a porta do celeiro. Controle-se, pensei. Reforce a espinha com aço, como fez Malcolm. Prepare os olhos para uma visão terrível, pois Maçã o amou demais e agora teve que pagar o preço disso, morrendo. Nunca, nunca mais eu encontraria um amigo tão verdadeiro quanto o pônei-filhote de cão que fora o meu Maçã. Meu equilíbrio, que jamais fora bom, balançou-me de um lado para outro, da frente para trás, fazendo sentirme atordoado e louco. Senti que havia algo atrás de mim. Olhei por cima do ombro e não vi ninguém. Nada exceto aquelas amedrontadoras formas animais que não passavam de arbustos podados. Os estúpidos. jardineiros deveriam encontrar algo mais útil que perderem tempo podando arbustos, enquanto o dinheiro de verdade estava à espera de alguém realmente esperto para ganhá-lo. Agora, eu pensava exatamente como Malcolm; John Amos ficaria satisfeito. Precisava procurar John Amos, a fim de que ele me tornasse ainda mais esperto.Suspeitando do pior, aproximei-me do local preferido por Maçã. Agora, não conseguia enxergar. Ficara cego! A bengala tateava o chão à minha frente. Escuro. Por que tudo estava escuro? Avancei com vagar e cautela, tentando enxergar no escuro. Todas as janelas do sótão estavam fechadas. Pobre Maçã, abandonado para morrer de fome na escuridão. Senti um nó na garganta, chorando por dentro, lamentando um animal de estimação que me amara mais que à própria vida. Precisei obrigar-me a avançar mais um passo. Ver Maçã morto me deixaria uma cicatriz na alma, na minha alma eterna, que John Amos afirmava precisar permanecer limpa e pura se eu desejasse chegar aos portais do céu, os quais Malcolm alcançara.Mais um passo. Estaquei. Lá estava o meu Maçã - e não estava morto! Achava- se numa baia com a janela aberta e corria atrás de uma bola vermelha, pisando-a com as enormes patas semelhantes às de um pônei - e havia bastante comida em sua tigela. E água fresca, também. Fiquei parado, tremendo da cabeça aos pés, enquanto Maçã me ignorava e continuava a brincar como se eu nem estivesse ali. Ora, ele nem sentira falta de mim! - VOCÊ! VOCÊ! - berrei. - Esteve comendo, bebendo e brincando! Durante todo este tempo, eu às portas da morte e você nem se importou! E julguei que me amava. Pensei que fosse sentir muito a minha falta. E agora nem mesmo late para me dizer que está feliz por ver-me de volta! EU O ODEIO, MAÇÃ! EU O ODEIO POR NÃO SE IMPORTAR COMIGO! Então, Maçã me avistou e correu para mim, pulando para colocar-me nos ombros as patas enormes e lamber-me o rosto. Sacudia furiosamente o rabo, mas não conseguiu me enganar. Encontrara alguém que o tratasse melhor que eu - macacos me mordam se eu lhe fazia o pêlo ficar tão bonito. - Por que não morreu de solidão! - gritei. Fitei-o com ódio, desejando que murchasse até sumir. Ele pressentiu minha raiva e retomou à posição normal, enfiando o rabo entre as pernas e baixando a cabeça para me olhar de esguelha. - AFASTE-SE DE MIM! PRECISA SOFRER COMO EU SOFRI; ENTÃO, FICARA FELIZ POR TERME DE VOLTA! Peguei toda a sua comida e água, jogando-as num velho barril. Apanhei a bola vermelha e atirei-a tão longe que nunca mais ele conseguiria encontrá-la. Durante todo o tempo, Maçã permaneceu no mesmo lugar, sem sacudir o rabo. Queria-me de volta, mas agora era tarde demais. - Fique no escuro e morra de fome! Agora, sentirá minha falta - solucei, tropeçando ao afastar-me, trancando-o no celeiro com todas as janelas fechadas. - Fique no escuro e morra de fome! Nunca mais voltarei! Nunca! Tão logo cheguei à luz do sol, lembrei-me de todo o feno macio que ele tinha para deitar-se. Voltei ao celeiro, agarrei um ancinho e puxei para fora todo o feno. Maçã gania, tentando fazer-me festas com o focinho. Não permiti. - Deite-se no chão duro e frio! Terá dor em todos os ossos, mas não me importo, pois agora não o amo mais! Furioso, enxuguei as lágrimas e arranhei o rosto. Durante toda a minha vida, eu fizera apenas três amigos: Maçã, minha avó e John Amos. Maçã matara meu amor e um dos outros dois me traíra, alimentando Maçã e roubando-me seu amor. John Amos não se daria o trabalho - portanto, tinha que ser minha avó. Voltei para casa atordoado. Naquela noite, minha perna doeu tanto que Papai veio a meu quarto e deu-me um comprimido. Sentou-se na beirada da cama e me tomou nos braços, fazendo-me sentir seguro ao ouvi-lo falar baixinho em adormecer e ter sonhos gostosos. Mergulhei na feiúra. Esqueletos por todos os lados. Sangue correndo em grandes rios, carregando pedaços de seres humanos para um oceano de fogo. Morto. Eu estava morto. Flores, coroas de flores no altar. Pessoas que nem me conheciam enviavam- me flores, dizendo-me que estavam satisfeitas por ver-me morto. Escutei o mar de fogo tocar música demoníaca, fazendo-me odiar ainda mais música e dança. O sol entrou pela janela e me incidiu no rosto, roubando-me do abraço do demônio. Quando abri os olhos, aterrorizado com o que poderia ver, avistei apenas Jory em pé junto à cama, fitando-me com piedade. Eu não precisava de piedade. - Bart, você chorou durante a noite. Sinto muito que sua perna ainda doa. - Minha perna não dói nada! - berrei. Levantei-me para mancar até a cozinha, onde Mamãe estava dando comida a Cindy. Maldita Cindy. Emma fritava toucinho para meu café da manhã.
- Quero apenas café e torradas! - gritei. - Só isso! Mamãe fez uma careta dolorida e depois me olhou, muito pálida. Estranho... - Não grite, por favor, Bart. E você não toma café. Por que pediu café? - Já é tempo de agir como uma pessoa da minha idade! - rosnei. Sentei-me cautelosamente na cadeira de braços de Papai. Ele chegou e viu-me sentado em sua cadeira, mas não ordenou que me levantasse. Limitou-se a usar uma cadeira sem braços e encher até a metade uma xícara de café. Completou a xícara com dois centímetros de creme de leite e entregou-a a mim. - Detesto creme no café! - Como pode ter tanta certeza se nunca experimentou? - Eu sei. Recusei-me a tomar o café que ele estragara. (Malcolm gostava de café puro - eu também gostaria, a partir de agora). Só me restava à frente uma torrada pura - e se eu precisava ser como Malcolm e tornar-me esperto, não podia espalhar manteiga e geléia de morangos na torrada. Indigestão. Como Malcolm, devia preocupar-me com indigestão. - Papai, o que é indigestão. - Algo que você não precisa ter. Era realmente difícil tentar ser como Malcolm o tempo todo. Segundos depois, Papai estava ajoelhado, examinando-me a perna doente. - Parece pior hoje que ontem - comentou, erguendo a cabeça para encarar-me com ar desconfiado. - Bart, você não andou engatinhando nesse joelho machucado, andou? - Não! - gritei. - Não sou maluco! As cobertas arranharam um pouco a pele. Lençóis ásperos. Detesto lençóis de algodão. Gosto mais dos lençóis de seda. Malcolm só dormia em roupas de cama de seda. - Como sabe? - indagou Papai. - Você nunca teve lençóis de seda. Continuou a tratar meu joelho, lavando-o e cobrindo-o com um pó branco, antes de aplicar um tampão de gaze e prendê-lo com esparadrapo.- Agora, Bart, estou falando sério. Não quero que se apóie no joelho. Fique em casa, longe do jardim, ou sente-se na varanda dos fundos. Nada de engatinhar na terra. - Não é uma varanda, é um pátio - repliquei carrancudo, para lhe mostrar que ele não sabia tudo. - Muito bem, é um pátio - isto o deixa satisfeito? Não. Eu nunca estava satisfeito. Então, pensei melhor. Sim, eu às vezes me sentia satisfeito - quando fingia ser Malcolm, o todo-poderoso, o mais rico, o mais esperto. Representar o papel de Malcolm era fácil e melhor que qualquer outra coisa ou pessoa. De algum modo, eu tinha certeza de que, se continuasse a representá-lo, acabaria exatamente como Malcolm - rico, poderoso, amado. O tipo mais comprido e chato de dia se arrastou interminavelmente, com todos de olho atento em mim. O crepúsculo chegou e Mamãe ocupou-se em embelezar-se para Papai, que deveria chegar a qualquer momento. Emma preparava o jantar. Jory estava na aula de balé. E eu fugi do pátio às escondidas. Apresseime em atravessar o jardim antes que alguém me detivesse.O cair da tarde estava fantasmagórico, com sombras compridas e ameaçadoras. Todas as pequenas criaturas noturnas que voavam e zumbiam tinham saído das tocas para rodear-me a cabeça, Tentei espantá-las com tapas. Ia procurar John Amos. Ele estava sentado sozinho em seu quarto, lendo uma revista que se apressou em esconder quando entrei sem bater. - Não devia fazer isso - declarou num tom azedo, nem mesmo sorrindo para mostrar-se satisfeito porque eu ainda estava vivo e com as duas pernas. Era fácil assumir a expressão sombria de Malcolm e assustá-lo. - Você deu comida e água a Maçã enquanto estive fora? - Claro que não - replicou ele ansiosamente. - Foi sua avó quem alimentou e deu de beber ao cachorro. E tratou dele. Eu já lhe disse que jamais se deve confiar em que as mulheres cumpram a palavra. Corrine Foxworth não é melhor que qualquer outra mulher, com suas manhas para induzir os homens a se transformarem em escravos delas. - Corrine Foxworth... é esse o nome dela? - Naturalmente. Eu já lhe disse antes. É filha de Malcolm. Ele a batizou com o nome da mãe dele, a fim de lembrar-se sempre do quanto as mulheres são falsas, de que até mesmo uma filha seria capaz de traí-lo - embora ele a amasse muito. Demais, na minha opinião. Eu já começava a me cansar de estórias sobre as mulheres e suas "manhas". - Por que não manda ajeitar a dentadura? - perguntei. Não gostava da maneira como ele sibilava e assoviava por entre os dentes postiços soltos demais. - Ótimo! Falou exatamente como Malcolm. Está aprendendo. A doença lhe fez bem à alma - como aconteceu com ele. Agora, escute com atenção, Bart: Corrine é sua verdadeira avó e foi casada com seu verdadeiro pai. Era a filha mais amada por Malcolm e traiu-o ao fazer algo tão pecaminoso que precisa ser castigada. - Precisa ser castigada? - Sim, severamente castigada; mas você não deve permitir que ela perceba que seus sentimentos mudaram. Finja que ainda a ama, que ainda a admira. E, dessa maneira, ela se tornará vulnerável. Eu sabia o que significava vulnerável. Mais uma daquelas palavras que fora obrigado a aprender. Fraco; é ruim ser fraco. John Amos foi buscar sua Bíblia e colocou minha mão sobre a surrada capa preta, toda rachada e descascando. - A Bíblia do próprio Malcolm - disse ele. - Legou-a a mim em seu testamento... embora pudesse ter legado mais alguma coisa... Compreendi que John Amos era a única pessoa no mundo que ainda não me desapontara. Ali estava o verdadeiro amigo de que eu necessitava. Velho, mas eu também era capaz de ser velho, quando desejava. Embora não pudesse retirar os dentes da boca e colocá-los numa xícara cor de marfim. Olhei para a Bíblia, desejando retirar a mão, mas sentindo medo do que poderia acontecer se o fizesse. - Jure sobre esta Bíblia que agirá como Malcolm desejaria que seu bisneto agisse: exercendo vingança sobre aqueles que mais fizeram mal a ele. Como podia eu jurar o que ele exigia, quando uma pequena parte de mim continuava a amá-la? Talvez John Amos estivesse mentindo. Talvez Jory tivesse alimentado e cuidado de Maçã. - Por que hesita, Bart? É um fraco? Não tem tutano? Olhe novamente para sua mãe, veja como usa o corpo, o rosto bonito, os beijos e abraços, para induzir seu pai a fazer tudo que ela quer. Repare como ele trabalha até tarde, como está cansado ao voltar para casa. Pergunte a si mesmo o motivo. Ele faz isso por si próprio - ou para ela comprar roupas novas, casacos de pele, jóias, e morar numa casa grande e bonita? É assim que as mulheres usam os homens, fazendo-os trabalhar enquanto elas se divertem. Engoli em seco. Mamãe trabalhava. Ensinava balé. Contudo, isso era mais diversão que trabalho, não é mesmo? Ela alguma vez comprava alguma coisa com seu próprio dinheiro? Eu não me lembrava. - Agora, entre para visitar sua avó e comporte-se como antes. Logo descobrirá quem o traiu. Não fui eu. Entre e seja como Malcolm. Chame-a de Corrine, observe os olhos dela mostrarem medo - e saberá quem de nós dois é leal e digno de confiança. Eu jurara castigar os que haviam traído Malcolm, mas não estava satisfeito comigo mesmo ao entrar, mancando, na sala que ela preferia usar. Parei na porta e a encarei, o coração batendo com força, tamanho era meu desejo de correr para seus braços e sentar-me em seu colo. Era certo comportar-me como Malcolm, sem lhe dar uma oportunidade de explicar-se? - Corrine - chamei com voz ríspida. Oh, a brincadeira era tão boa que eu simplesmente não conseguia ser Bart e sentir-me seguro. Quando era Malcolm, sentia-me tão forte e cheio de razão. - Bart! - exclamou ela, feliz, levantando-se para estender os braços. - Finalmente veio visitar-me! Estou tão contente por vê-lo bem e forte outra vez. Então, hesitou e indagou: - Quem lhe disse meu nome? - John Amos - repliquei, carrancudo. - Ele me contou que você alimentou Maçã e lhe deu água enquanto estive fora. É verdade? - Sim, querido, é claro que fiz tudo por Maçã. Ele sentiu tanto a sua falta que fiquei com pena. Naturalmente, você não está zangado. - Você o roubou de mim - declarei, chorando como um bebê. - Ele era o único amigo que tive na vida, o único que realmente me amava; e você o roubou. Agora, ele gosta mais de você que de mim. - Não, não gosta, Bart. Ele pode gostar de mim, mas ama você. Agora, ela já não sorria nem parecia satisfeita. Exatamente como dissera John Amos, percebi que estava aplicando suas manhas. Ia dizer-me mais mentiras. - Não fale tão asperamente comigo - pediu. - Não é adequado a um menino de dez anos. Querido, esteve longe tanto tempo e senti tanto a sua falta! Não pode demonstrar nem um pouco de afeição? De repente, a despeito de meu juramento, corri para os braços dela e me pendurei em seu pescoço. - Vovó! Machuquei o joelho para valer! Suei tanto que a cama ficou molhada. Enrolaram-me num cobertor frio; Papai e Mamãe me esfregaram com gelo. Havia um médico malvado que desejava cortar minha perna, mas Papai não permitiu. Aquele médico disse estar satisfeito por eu não ser filho dele.
Parei para tomar fôlego, esquecendo-me totalmente de Malcolm. - Vovó, descobri que Papai me ama, apesar de tudo - senão, gostaria que aquele médico cortasse minha perna. Ela pareceu chocada. - Bart, pelo amor de Deus! Como pode ter a menor dúvida que seu pai o ame? Naturalmente que ama. Teria que amá-lo. Christopher sempre foi um menino bondoso, carinhoso... Como sabia ela que meu pai se chamava Christopher? Apertei as pálpebras. Ela levara as mãos aos lábios, como se acabasse de revelar involuntariamente algum segredo. Depois, começou a chorar. Lágrimas. Um dos truques que as mulheres aplicavam nos homens. Virei-me para outro lado. Detestava lágrimas. Detestava pessoas fracas. Pousei a mão no peito da camisa e senti a capa dura do diário de Malcolm contra a pele. Aquele livro me dava a força de Malcolm, transferindo-a das páginas para meu sangue. O que importava se eu tinha o corpo imperfeito e fraco de uma criança? Que diferença fazia isso, quando ela logo aprenderia quem mandava ali? Minha casa. Precisava voltar para casa antes que dessem por minha falta. - Boa-noite, Corrine. Deixei-a a chorar, ainda matutando a respeito de como ela podia saber o nome de Papai. Em meu jardim, tornei a verificar o caroço de pêssego. Nada de raízes, ainda. Tornei a cavar as ervilhas-decheiro. Ainda não brotavam. Eu não tinha sorte com flores, com caroços de pêssego, com nada. Com nada a não ser fazer o papel de Malcolm, o poderoso. E nisso, eu estava ficando cada vez melhor. Sorridente e satisfeito, fui para a cama. OS CHIFRES DO DILEMA Bart nunca estava em nosso jardim, onde deveria estar. Subi na árvore e me sentei no muro. Então, avistei Bart no quintal da velha, de joelhos, engatinhando. Farejando o solo como um cão. - Bart! - berrei. - Trevo se foi e você não pode substituí-lo! Eu sabia o que ele estava fazendo: enterrando um osso e, depois, farejando ao redor até encontrá-lo. Ele ergueu a cabeça, os olhos vidrados e desorientados... e então começou a latir. Gritei com ele, para chamá-lo à realidade, mas Bart continuou representando o cãozinho travesso antes de transformar-se, repentinamente, num velho que arrastava a perna. E nem mesmo era a sua perna machucada. Que garoto maluco! - Ande direito, Bart! Você tem apenas dez anos, não cem. Se continuar andando torto, crescerá assim. - Dias tortos levam a caminhos tortos. - Isso não faz sentido. - E o Senhor disse: "Faça aos outros o que lhe fizeram". - Errado. O certo é: "Faça aos outros o que gostaria que lhe fizessem". Estendi a mão para ajudar o que parecia ser um velho. Bart. carrancudo, levou a mão ao peito, ofegou e gritou que sofria do coração, que não agüentaria subir numa árvore. - Estou farto de você, Bart. Só faz criar casos. Tenha um pouco de consideração para com Mamãe e Papai... e comigo, também. Será embaraçoso tê-lo como irmão ao voltarmos à escola. Ele mancou atrás de mim a caminho de casa, ainda ofegante, murmurando entre gemidos que já era um mestre das finanças. - Jamais existiu um cérebro mais esperto que o meu - resmungou. Será que desta vez ele ficou biruta de verdade? Foi a única coisa que consegui pensar ao escutá-lo. Prendi a respiração, espantado, quando ele esfregou as mãos com uma escova, como se desejasse realmente limpálas. Aquilo não era mesmo coisa de Bart. Ele continuava fingindo ser outra pessoa. Logo escovou os dentes e foi deitar-se. Apressei-me a procurar um local de onde poderia escutar o que diziam meus pais, que estavam na sala de estar, dançando ao ritmo de uma música lenta. Como sempre, algo terno, suave e romântico invadiu-me ao vê-los assim. O modo carinhoso como ela o fitava; a maneira delicada como ele a tocava. Pigarreei antes que fizessem algo íntimo demais. Sem mudarem de posição, ambos me lançaram olhares indagadores. - Sim, Jory? - disse Mamãe, com uma expressão sonhadora nos olhos. - Quero conversar com vocês a respeito de Bart - declarei. - Acho que devem tomar conhecimento de certas coisas. Papai pareceu aliviado. Mamãe deu a impressão de murchar ao sentar-se, calada, ao lado dele no sofá.
- Esperávamos que você nos procurasse com um segredo de Bart. Nada daquilo foi fácil de dizer. - Bem - comecei devagar, esperando encontrar as palavras adequadas. - Em primeiro lugar, creio que devem saber que Bart tem muitos pesadelos, dos quais acorda chorando. Finge demais, tal como caçar animais ferozes e outros passatempos normais numa criança. Todavia, julgo que ultrapassa os limites quando o surpreendo engatinhando e farejando o solo, depois desenterrando um osso velho e sujo para carregá-lo nos dentes e enterrá-lo noutro lugar. Fiz uma pausa e aguardei que dissessem alguma coisa. Mamãe mantinha a cabeça virada, como se procurasse escutar o vento. Papai inclinara-se para a frente, fitando-me com grande atenção. - Prossiga, Jory - incitou. - Não se interrompa agora. Não somos cegos. Vemos como Bart está mudando. Temendo contar mais, baixei a cabeça e falei em voz muito baixa: - Tentei falar-lhes antes, várias vezes. Mas tive medo, então. Vocês pareciam, ambos, tão preocupados com Bart que não tive coragem de falar. - Por favor, não omita nada - disse Papai. Olhei para ele, sentindo-me incapaz de enfrentar o olhar temeroso de Mamãe. - A velha da casa vizinha dá a Bart todos os tipos de presentes caros. Deu- lhe um filhote de São Bernardo que ele batizou de Maçã, dois trens elétricos em miniatura, completos com uma aldeia, montanhas, pontes... enfim, todos os acessórios. Transformou um enorme salão da mansão numa sala de brinquedos exclusivamente para Bart. E daria presentes a mim, também, mas Bart não permite. entreolharam. Afinal, Papai perguntou: - O que mais? Atordoados, eles se Engoli em seco e escutei minha voz, rouca e esquisita. Esta era a pior parte, a que realmente magoava: - Ontem, estive no quintal dos fundos, perto do muro... vocês sabem, onde existe aquela árvore oca. Levei a tesoura de podar e estava trabalhando como você me ensinou, Papai, quando senti o cheiro de alguma coisa apodrecida. Quando fui examinar... encontrei... - tive que engolir em seco mais uma vez, antes de conseguir continuar: - Encontrei Trevo. Estava morto e apodrecendo. Cavei uma sepultura para ele. Virei as costas para enxugar as lágrimas e depois contei-lhes o resto: - Achei um arame farpado torcido no pescoço dele. Alguém matou deliberadamente o meu cachorro! Eles continuaram sentados no sofá, parecendo chocados e amedrontados. Mamãe piscou para conter as lágrimas; ela também gostava de Trevo. Suas mãos tremiam ao pegar um lenço. Em seguida, ela cruzou nervosamente os dedos, mantendo-os sobre o colo. Nem ela nem Papai perguntaram quem matara Trevo. Creio que pensavam o mesmo que eu.Antes de deitar-se, Papai veio ao meu quarto e conversou comigo durante uma hora, fazendo todo tipo de perguntas a respeito de Bart, o que fizera ele esta vez, aonde fora; e, também, sobre a mulher da mansão vizinha, bem como o mordomo. Sentia-me melhor, agora que os prevenira. Podiam planejar o que fazerem com Bart. E, naquela noite, chorei pela última vez por Trevo, que fora meu primeiro e único animal de estimação. Eu ia completar quinze anos, quase a idade de um homem, e lágrimas eram apenas para garotinhos - não para um rapaz com um metro e oitenta de altura. - Deixe-me em paz! - berrou Bart quando lhe pedi que não fosse mais à mansão da velha. - Pare de me delatar ou há de arrepender-se! Cada dia nos aproximava mais de setembro e do reinício das aulas. Até onde me era possível perceber, Bart não reagia aos carinhosos cuidados que lhe dispensavam meus pais. Na minha opinião, mostravam-se compreensivos demais para com ele. - Ouça-me bem, Bart, e pare de fingir que é Malcolm Neal Foxworth, seja ele quem for! Não obstante, Bart não deixava de lado o fingimento, a manqueira, o coração fraco que o fazia arquejar e gemer. - Ninguém está à espera de sua morte para lhe herdar a fortuna. Meu caro irmãozinho, você não tem fortuna nenhuma! - Tenho vinte bilhões, dez milhões, cinqüenta e cinco mil, seiscentos e quarenta e dois dólares e trinta centavos! - replicou ele, enumerando nos dedos. - Mas não consigo lembrar-me do quanto possuo em debêntures e ações, de modo que acho que você pode triplicar esse montante. Um homem que consegue dizer o quanto possui não é rico de verdade. Eu nem sabia que ele era capaz de dizer um número como aquele. No exato momento em que eu ia responder algo sarcástico, Bart soltou um grito e dobrou-se em dois. Caiu ao chão, respirando com dificuldade.
- Depressa... minhas pílulas... Estou morrendo! Meu braço esquerdo está dormente! Salve-me! Chame os médicos! Foi quando saí de casa para o jardim. Sentei-me numa cadeira no gramado e comecei a ler um romance de bolso. Bart estava realmente enchendo-me as medidas. Era como viver com o Dr. Jekyll e Mr. Hyde, o médico e o monstro. Se ele precisava representar, por que diabo não escolhia algum papel melhor que o de um velho manco e cardíaco? - Jory, não se importa se eu morrer? - Bart saiu de casa para me perguntar. - Não. - Você nunca gostou de mim! - Gostava mais de você quando se comportava como alguém da sua idade. - Acreditaria se eu lhe dissesse que Malcolm Neal Foxworth é o pai de nossa vizinha e ela é realmente minha avó, de verdade? - Ela lhe disse isso? - Não. John Amos contou-me parte, ela conta o resto. John Amos conta-me muita coisa. Disse-me que Papai Chris e Papai Paul não eram irmãos; que minha mãe só diz isso para não descobrirmos seu pecado. Amos diz que meu verdadeiro pai era um homem chamado Bart Winslow, que morreu num incêndio. Nossa mãe o seduziu. Seduziu? Lancei-lhe um prolongado olhar indagador. - Sabe o que significa essa palavra? - Não... mas sei que é ruim, muito ruim! - Ama nossa mãe? A preocupação atormentou-lhe os olhos escuros. Sentou-se pesadamente no chão e contemplou os sapatos de tênis. Deveria ter Respondido depressa, espontaneamente. - Bart, faça-me um grande favor - e a você mesmo, também: entre em casa e conte a Mamãe e Papai o que o preocupa. Eles compreenderão tudo. Sei que você julga que Mamãe gosta mais de mim, mas não é verdade. Ela tem lugar no coração para dez filhos. - Dez? - gritou ele. - Quer dizer que Mamãe vai adotar outros? Levantou-se de um pulo e correu, mancando, como se o fingimento de velho lhe tivesse roubado a pouca agilidade que possuía. Na minha opinião, aquela estadia no hospital lhe roubara muitas coisas. Foi bisbilhotice de minha parte, e, também, não muito honroso, mas tive que escutar o que Bart disse a Mamãe quando ficaram a sós. Ela estava na varanda dos fundos, com Cindy no colo, lendo um livro enquanto a menina cochilava. Quando Bart se aproximou correndo, Mamãe largou o livro e passou Cindy para uma cadeira próxima. Bart ficou de pé a encará-la com uma súplica muda nos olhos. Então, dentre todas as coisas possíveis, ele perguntou: - Qual é o seu nome? - Você sabe o meu nome - respondeu ela. - Começa com C? - Sim, claro que começa com C. Agora, ela parecia perturbada. - Mas... mas... - titubeou ele. - Conheço alguém que chora quando você vai embora. Alguém pequeno como eu, que é trancado em armários e outros lugares horríveis pelo pai, que não gosta mais dele. Uma vez, o pai o colocou de castigo no sótão. Um sótão grande, escuro, amedrontador, com camundongos, aranhas e sombras fantásticas por toda parte. Mamãe deu a impressão de congelar-se. - Quem lhe contou tudo isso? - A madrasta dele tinha cabelos ruivos, até que ele descobriu que ela não passava de amante do seu pai. Mesmo de onde estava escondido, escutei Mamãe respirar forte e depressa, como se aquele garotinho que ela costumava pegar no colo se tornasse repentinamente perigoso e ameaçador. - Querido, você não sabe o que é uma amante, sabe? Bart fitou o espaço. - Havia uma dama esbelta e alva, com tons vermelhos nos cabelos escuros. E nem mesmo era casada com o pai dele, que não se importava com o que ele fazia, se chorava ou até mesmo se morria. Os lábios de Mamãe tremeram, mas ela forçou um sorriso. - Bart, creio que você tem alma de poeta. Tudo isso tem cadência, ritmo. Ele fez uma carranca, voltando para ela os olhos escuros e ardentes.
- Desprezo poetas, artistas, músicos e bailarinos! Ela estremeceu e não posso dizer que a censurei. Ele também me causou medo. - Bart, preciso fazer-lhe uma pergunta e você deve responder com franqueza. Lembre-se: não importa o que responder, não sofrerá castigo. Você machucou Trevo? - Trevo foi embora. Nunca mais voltará, agora, para morar na minha casa de cachorro. Mamãe o afastou de si com um safanão e se ergueu depressa para deixar a varanda. Então, lembrou-se de Cindy e voltou correndo para pegá-la no colo. Nada do que ela fez me tranqüilizou quando observei o olhar de Bart. Como sempre, logo após um de seus "ataques" de maldade, Bart ficou cansado e sonolento, indo deitar-se sem jantar. Minha mãe sorriu, depois riu, e vestiu-se para comparecer a uma festa formal em homenagem a meu pai, que fora eleito chefe da equipe médica do hospital onde trabalhava. Postei-me à janela e observei Papai conduzi-la orgulhosamente ao carro. Tarde, muito depois das duas, ouvi-os chegarem. Eu ainda não adormecera e pude escutá-los conversando na sala de estar. - Chris, não consigo entender Bart, o modo como fala, a forma como se movimenta, nem mesmo sua aparência. Tenho medo de meu próprio filho e isso é doentio. - Ora, querida - disse Papai, passando o braço pelos ombros dela. - Creio que está exagerando. Se continuar assim, Bart crescerá para ser um grande ator. - Chris, sei que às vezes febre muito alta pode causar danos ao cérebro de uma criança. A febre afetou parte do cérebro de Bart? - Ouça, Cathy: os exames de Bart deram ótimos resultados. Não meta idéias na cabeça só porque o submetemos aos testes. Todos os pacientes que têm febre alta são obrigados a fazer exames desse tipo. - Mas encontraram algo anormal? - insistiu ela. - Não - disse Papai em tom firme. - Ele é apenas um garotinho comum, com muitos problemas emocionais. E se alguém pode compreender o que ele está passando, somos nós. O que significaria aquilo? - Mas Bart tem de tudo! Não está crescendo como nós crescemos. Devia sentir- se feliz. Não fazemos todo o possível para isso? - Sim, mas às vezes nem isso é o bastante. Cada criança é diferente, tem necessidades diferentes. Obviamente, não estamos dando a Bart o que ele necessita. Mamãe era dada a respostas rápidas e acaloradas. Não obstante, permaneceu sentada, calada e imóvel, enquanto eu esperava obter maiores informações. Papai queria que ela fosse imediatamente para a cama, o que era fácil perceber pelo modo como ele lhe beijou o pescoço. Contudo, ela estava imersa em reflexões profundas. Manteve o olhar fixo nas sandálias prateadas ao falar de como Trevo morrera. - Não poderia ter sido Bart - declarou devagar, como se tentasse convencer- se, e a Papai também. - Tinha que ser algum sádico que tortura animais - você se lembra de como lemos que os animais do zôo estavam sendo mutilados? Um desses homens deve ter avistado Trevo... E não completou a frase, pois raramente víamos algum desconhecido na estrada de nossa casa. - Chris - acrescentou, enquanto aquela horrível expressão de medo permanecia em seu rosto. - Hoje Bart me pegou inteiramente de surpresa. Falou-me a respeito de um garotinho que era trancado pelo pai em armários e no sótão. Mais tarde, disse-me que o menino se chamava Malcolm. Como poderia ter conhecimento dele? Quem poderia ter-lhe contado esse nome? Chris, julga que Bart descobriu algo a respeito de nós? Tive um sobressalto. O que havia a respeito deles que eu ainda não sabia? Compreendi que tinham algum terrível segredo. Afastei-me furtivamente e corri de volta a meu quarto, jogando-me na cama. Algo horrível estava errado em nossas vidas. Eu o sentia nos ossos - e Bart devia senti-lo nos dele, também. A SERPENTE O sol e o nevoeiro brincavam, fazendo-se mutuamente companhia. Eu era obrigado a ficar sentado sozinho em nosso jardim. Para divertir-me, olhava as grossas cascas que se haviam formado sobre as feridas em meu joelho. Fora prevenido por Papai para não arrancá-las, a fim de não ficar com cicatrizes - mas quem se importava com cicatrizes? Comecei a levantar cuidadosamente as beiradas da camada de casca, só para ver o que havia por baixo delas. Não vi coisa alguma a não ser pele tenra e avermelhada, pronta para sangrar novamente.O sol ganhou o brinquedo no céu e brilhou, quente, sobre minha cabeça. Quase consegui escutar meus miolos fritando. Não me agradava a idéia de miolos fritos, de modo que procurei uma sombra.Agora, a cabeça me doía. Mordi o lábio inferior com força suficiente para arrancar sangue. Não doeu, mas incharia tanto posteriormente que Mamãe teria que ficar preocupada. Isso era ótimo. Ela devia preocupar-se com o que se passava comigo.Eu costumava ser o menininho da Mamãe, que recebia montes de afeição, até que surgiu aquela maldita garotinha para tomar-me o lugar. Em breve, Mamãe e Jory voltariam da aula de balé. Era tudo com que se importavam: a dança e Cindy. Eu conhecia as coisas mais importantes da vida, o que mais contava: dinheiro. Quando se possuía muito dinheiro, não era preciso pensar em ter necessidade dele ou num meio de consegui-lo. John Amos e o diário de Malcolm me haviam ensinado isso. - Bart - disse Emma, que se aproximara silenciosamente por trás de mim. - Sinto muitíssimo que você tenha perdido a viagem à Disneylândia. Para compensar, preparei um pequeno bolo de aniversário exclusivamente para você. Trazia nas mãos um pequeno bolo, com uma única vela enfiada na cobertura de chocolate. Eu não tinha apenas um ano de idade! Dei um tapa no bolo, que escapou das mãos de Emma e caiu ao chão. Ela soltou um grito, parecendo magoada o bastante para chorar, e recuou. - Não foi uma atitude muito grata ou bondosa - declarou, engasgada. - Bart, por que precisa comportar-se tão mal? Todos nós tentamos o melhor possível para agradá-lo. Mostrei-lhe a língua. Ela suspirou e me deixou em paz. Mais tarde, Emma tornou a sair, desta vez com aquela garotinha nojenta no colo. Não era minha irmã. Eu não queria irmãs. Escondi-me atrás de uma árvore e olhei em volta. Emma colocou Cindy na piscina de plástico. A garota bateu os pés e as mãos na água rasa. Idiota, idiota, idiota... nem mesmo sabia nadar. Veja só como Emma ri e gosta daquelas palhaçadas de bebê, quando eu sou capaz até de plantar bananeira. Se eu me sentasse na piscina e batesse os pés e as mãos, ela não me acharia tão engraçadinho... Esperei que Emma fosse embora, mas ela puxou uma cadeira, sentou-se e começou a descascar ervilha. Plop, plop, plop... as ervilhas verdes caíam na tigela azul. - Isso mesmo, queridinha - disse Emma, encorajando Cindy. - Bata na água, mexa as pernas bonitas, sacuda os braços lindos, fortaleça os membros e dentro em breve estará nadando. Observei e esperei, cada ervilha que caía na tigela indicando que logo Emma seria obrigada a levantar-se e voltar à cozinha. Cindy ficaria sozinha. Totalmente sozinha. E não sabia nadar. Os gatos se abaixavam como eu, quando queriam pegar um passarinho. Gostaria de ter um rabo para abanar. A última ervilha verde caiu na tigela. Emma se levantou para sair. Retesei os músculos. Naquele instante, Mamãe chegou em seu brilhante carro vermelho e parou perto da garagem. Emma foi cumprimentá-la. O primeiro a sair do carro foi Jory, saltando pelo gramado. - Olá, Emma! - disse ele. - O que temos para o jantar? - Você gostará do meu jantar, não interessa o que seja - respondeu Emma, derretendo-se em sorrisos para ele, o seu querido bonitão. Não era assim que ela tratava a mim - o moleque! - Quanto a Bart -prosseguiu ela -, sei que detestará as ervilhas, o ensopado de legumes, as costeletas de carneiro e a sobremesa. Só Deus sabe como é difícil agradar aquele menino. Mamãe parou para conversar com Emma como se esta não fosse uma empregada, depois correu para brincar com Cindy, abraçando-a e beijando-a como se não visse a molequinha há dez anos. - Mamãe! - chamou Jory. - Por que não nos trocamos e entramos na piscina com Cindy? - Aposto uma corrida com você até em casa, Jory! - concordou Mamãe. Os dois saíram correndo como crianças. - Agora, seja boazinha e continue a brincar com o patinho de borracha e o barquinho - disse Emma a Cindy. - Emma voltará logo. Levantei a cabeça antes de começar a esfregar a barriga no chão. A molequinha na piscina se levantou e tirou o maiô. Totalmente nua e atrevida, jogou o maiô contra mim e depois tentou-me, riu e atormentou-me com sua carne nua. Então, como se chateada com minha reação, tornou a sentar-se na água rasa e mirou o próprio corpo com um leve sorriso secreto. Pecaminosa! Desavergonhada! Imaginem!Mostrando-me suas partes privadas!As mães deviam ensinar suas filhas a se comportarem com decência, recato e modéstia. Minha mãe era exatamente como Corrine, que John Amos afirmava ser fraca e nunca punira devidamente os filhos: "Sim, Bart, sua avó estragou os filhos e agora eles vivem em pecado, zombando de Deus e das normas da moral!”Acho que cabia a mim ensinar à Cindy uma lição de vergonha e recato. Rastejei para diante. Agora, ela me dava atenção. Seus olhos azuis se arregalaram, os lábios rosados e cheios se entreabriram. A princípio, pareceu contente porque eu, afinal, ia brincar com ela. Então, algum instinto de sabedoria lhe trouxe medo ao olhar. Ficou imóvel e lembrou-me um tímido coelho com medo de uma cobra malvada. Serpente. Muito melhor ser uma serpente que um gato. Uma serpente no Jardim do Éden, fazendo a Eva o que deveria ter sido feito no início do mundo. Fora, disse o Senhor ao ver Eva em sua nudez, saiam do Éden e deixem que o mundo lhes atire pedras! Sibilando e movimentando rapidamente a língua, aproximei-me devagar. Era o Senhor quem mandava e eu quem obedecia. Mãe pecadora que deixava de castigar-me e me transformara no que eu era, uma serpente malvada querendo cumprir as ordens do Senhor, mesmo que não me agradassem.Tentei empregar toda a minha força de vontade para achatar a cabeça e torná-la pequena, chata, semelhante à de uma cobra.Lágrimas brotaram nos grandes olhos medrosos de Cindy e ela começou a chorar alto, procurando passar por cima da beirada arredondada da piscina rasa. A água não era suficientemente profunda para afogar uma garotinha, ou Emma não a teria deixado sozinha. Mas... se uma boa constrictor, uma jibóia do Brasil estivesse por ali - que possibilidades teria uma menina de dois anos?Ultrapassei a borda da piscina e rastejei na água. Cindy gritou: - Barr-tie! Vá embora, Barr-tie! - Sssss... ssss... - prosseguiu eu, com sibilos mais prolongados que os de John Amos. Enrolei o corpo no pequeno corpo despido de Cindy, prendendo minhas pernas sob seu pescoço, arrastandoa para a água. Não podia realmente afogá-la, mas o Senhor, lá em cima, tinha que advertir todos aqueles que pecavam. Eu vira serpentes das selvas desarticular os maxilares, na TV. Tentei desarticular os meus. Então, poderia engolir Cindy inteira. De repente, outra cobra me pegou! Gritei, larguei Cindy para não me afogar... nem ser devorado vivo! Senhor, por que me esqueceste? - Que diabo você pensa que está fazendo? - berrou Jory, rubro de raiva, sacudindo-me até fazer-me a cabeça rolar. - Observei-o rastejar até aqui, só para ver o que tinha em mente. Bart... você tentou afogar Cindy? - Não! - repliquei, sufocado. - Apenas castiguei-a um pouquinho, não muito. - Sim - rosnou ele. - Como castigou um pouquinho Trevo. - Nunca fiz nada a Trevo. Cuido bem de Maçã. Não sou um menino mau... não sou, não, não... - Se é tão inocente, por que está chorando? Você matou Trevo! Estou lendo em seus olhos! Olhei duro para Jory, sentindo-me invadir por uma onda de fúria. - Você me odeia! Sei que me odeia! Joguei-me para diante, tentando esmurrá-lo. Não consegui. Baixei a cabeça, recuei e depois corri para a frente, a fim de acertar-lhe uma cabeçada no estômago. Ele caiu, dobrado em dois, gritando de dor. Antes que ele me matasse, dei-lhe um pontapé, mas não imaginava acertar onde o atingi. Minha pontaria nunca foi boa. Puxa... deve ter doído um bocado! - É sujeira bater na virilha - gemeu ele, tão pálido que parecia à beira de um desmaio. - Isso é sujeira, Bart. Covardia, também. Nesse ínterim, Cindy se recobrara o bastante para sair da piscina. Correu para casa a passos vacilantes, gritando a plenos pulmões. - Garotinha má e pecaminosa! - berrei. - Tudo isto é culpa dela! Culpa dela! Emma saiu correndo pela porta dos fundos, o avental branco esvoaçando, as mãos cobertas de farinha de trigo. Foi seguida de perto por Mamãe, que usava um sumário biquíni azul. - Bart, o que você fez? - gritou Mamãe. Pegou Cindy no colo e depois abaixou-se para pegar uma toalha largada por Emma. - Mamãe... -soluçava Cindy. - Cobra grande veio... cobra grande! Ora, imaginem só! Ela sabia o que eu era. Afinal, Cindy não era tão idiota. Mamãe a enrolou na toalha e a colocou em pé no gramado. Olhou furiosamente para mim no momento em que tornei a erguer o pé para dar outro pontapé em Jory, que arquejava de dor. - Bart, se ousar dar outro pontapé em Jory, vai arrepender-se! Emma me fitava com ódio. Olhei de uma para outra. Todo mundo me odiava, gostaria de ver-me numa cova.Zangado e cheio de dor, Jory tentou levantarse. Já não era tão gracioso, agora. Tão desajeitado quanto eu. E já não era tão bonito, também. Não obstante, conseguiu gritar: - Você está louco, Bart! Completamente louco! - Bart, não se atreva a jogar essa pedra em seu irmão! - gritou Mamãe, quando me abaixei para pegar uma. - Menino medonho! - berrou Emma. - Não jogue isso! Girei nos calcanhares e corri para esmurrar Emma. - Pare de me insultar! - berrei. - Não sou medonho! Não sou ruim! Mamãe correu para mim, agarrou-me e jogou-me ao chão. - Nunca mais jogue uma pedra em sua vida, nem use os punhos contra uma mulher! - berrou ela, prendendome os ombros de encontro ao chão. Uma raiva rubra dominou-me o cérebro, fazendo-me vê-la como todas as mulheres cheias de manhas e Curvas "sedutoras". Malcolm sabia tudo a respeito delas, escrevera tudo sobre seu desejo de esmagar-lhes os seios até ficarem chatos. Enchi os olhos Com o ódio malicioso de Malcolm e isso deu resultado. Mamãe começou a tremer enquanto me segurava. - O que há de errado com você, Bart? Não sabe o que está dizendo ou fazendo. Nem mesmo parece a mesma pessoa. Exibi os dentes como se quisesse mordê-la - e, depois, tentei. Ela me esbofeteou, com força, repetidamente, até que comecei a chorar. - Suba para o sótão e fique lá, Bart Sheffield, até eu subir para verificar o que precisa ser feito para endireitá-lo! O sótão causava medo. Sentei-me na beirada de uma das pequenas camas e esperei que ela viesse. Nunca me espancara antes; todo o castigo que eu sofrera foram alguns tapas, além dos que levara hoje... e agora ela me fazia exatamente o que fora feito a Malcolm. Eu era exatamente como ele. A porta do sótão se abriu e escutei os passos dela nos degraus estreitos e íngremes. Seus lábios estavam apertados numa linha severa quando ela se postou diante de mim, como uma torre, olhando para baixo, dando a impressão de que era um esforço fitar-me. Nunca antes eu a vira com a aparência tão severa. - Baixe as calças, Bart. - Não! - Faça o que estou mandando ou o castigo será muito pior. - Não! Não pode me bater. Encoste a mão em mim e esperarei até você estar na aula de balé - pegarei Cindy e Emma, não conseguirá me impedir! Posso estar em mil lugares antes que ela chegue ao primeiro - e a Policia não me porá na cadeia Porque sou menor! - Bart, estou perdendo a paciência com você. - Não perderá só a paciência, se me bater! - berrei. Ela parou a um metro de onde eu estava sentado na cama. Suas mãos pequenas e alvas se ergueram até a garganta e ela disse baixinho: - Oh, Deus... - foi apenas um sussurro rouco. - Eu deveria saber que Um filho concebido em tais circunstâncias resultaria nisto. Bart, sinto muitíssimo que seu filho seja um monstro. Um monstro? Eu era um monstro? Não... o monstro era ela! Estava me fazendo exatamente o que a mãe de Malcolm fizera: a causa dele ser trancado no sótão e castigado. Odiei-a, então, tanto quanto a amara antes... E gritei: - Eu a odeio, Mamãe! Quero que caia morta! Foi então que ela recuou, com lágrimas nos olhos. Depois, virou-se e correu. Todavia, antes de descer a escada, trancou a porta a fim de manter-me preso naquele miserável sótão abafado que eu tanto detestava e temia. Ela me transformaria num homem forte como Malcolm - e malvado, também. Algum dia, haveria de pagar-me. Eu a obrigaria a pagar por me fazer aquilo, quando eu queria ser bom e desejava apenas que ela gostasse de mim um pouquinho mais que de Jory ou Cindy. Nunca nada acontecia como eu queria que acontecesse. Foi Papai quem surrou minhas nádegas nuas, depois que chegou em casa e escutou tudo o que tinham a lhe contar a meu respeito. Admirei-o pelo modo como ignorou minhas súplicas e explicações. - Sentiu alguma coisa? - perguntou ele quando terminou e eu levantei as calças. Sorri. - Não. Para me machucar, você teria que me quebrar os ossos. Então, a polícia o prenderia por abusar de uma criança. Ele me estudou com severos olhos azuis. - Acha que nos derrotou, não é mesmo? - perguntou ele do modo calmo e racional que lhe era peculiar. - Julga que por ser menor não existe lei que possa tocá-lo; mas está enganado, Bart. Vivemos numa sociedade civilizada, na qual se espera que as pessoas ajam de acordo com as regras. Ninguém está fora do controle da lei, nem mesmo o Presidente. E o pior dos castigos para uma criança é permanecer trancada, impedida de movimentar-se para onde quiser. Parecendo tristonho, acrescentou: - Isso pode constituir uma experiência deveras traumática. Permaneci calado. Ele retomou a palavra: - Sua mãe e eu decidimos que não é mais possível tolerarmos seu comportamento. Tão logo eu conseguir acertar os detalhes, você passará a ir diariamente a um psiquiatra. Se formos obrigados, caso você insista em desafiar-nos, nós o entregaremos aos cuidados de médicos que podem ajudá-lo a aprender como comportarse normalmente.
- Não podem obrigar-me! - protestei, engasgado, temendo que um médico de loucos me trancasse atrás de grades pelo resto da vida. - Se tentarem, eu me matarei! Papai me encarou severamente. - Não se matará, Bart. Portanto, não fique aí sentado, julgando-se capaz de ser mais esperto que sua mãe e eu. Nós já enfrentamos gente maior e mais sagaz que um menino de dez anos. Não se esqueça disso. Mais tarde, naquela mesma noite, quando eu estava deitado, escutei Mamãe e Papai realmente berrando um com o outro, discutindo como eu nunca ouvira antes. - Por que mandou Bart para o sótão, Catherine? Precisava fazer isso? Não podia apenas mandá-lo ficar no quarto e esperar até que eu voltasse para casa? - Não! Ele gosta de ficar no quarto. Lá, dispõe de tudo para tornar o local agradável. Fiz o que era necessário. - O que era necessário fazer, Cathy? Será que não percebe quem você está parecendo? - Bem - replicou ela num tom gelado -, não é o que sempre venho dizendo que sou: uma megera que só se importa consigo mesma? Levaram-me a um médico de loucos no dia seguinte, empurraram-me para uma cadeira e mandaram-me ficar quieto. Ficaram sentados perto de mim até que uma porta se abriu e fomos chamados a entrar. Uma médica estava sentada numa grande mesa de trabalho. Poderiam, ao menos, ter escolhido um homem. Detestei a médica porque tinha os cabelos lisos e pretos como os de Madame Marisha quando era jovem e posava para fotografias. Sua blusa branca era estufada na frente, de modo que precisei desviar os olhos. - Dr. Sheffield, o senhor e sua esposa podem aguardar lá fora. Conversaremos mais tarde. Vi meus pais se retirarem da sala. Nunca me sentira tão sozinho como quando aquela mulher se voltou para mim e me fitou com olhos bondosos, que ocultavam pensamentos malvados. - Não lhe agrada estar aqui, não é mesmo? - perguntou ela. Não lhe dei a satisfação de saber que eu a escutara. - Sou a Dra. Mary Oberman. E daí? - Há brinquedos sobre a mesa. Fique à vontade. Brinquedos... Eu não era um bebê. Encarei-a raivosamente. Ela virou a cabeça e percebi que se sentia pouco à vontade, embora tentasse não demonstrar. - Seus pais me contaram que você gosta de brincar de "faz-de-conta". É por isso que não tem muitos companheiros de brincadeiras? Eu não tinha nenhum, mas não confessaria o fato àquela mulher idiota. Seria tolice contar a ela que John Amos era meu melhor amigo. Antes fora a minha avó, mas esta me traíra. - Bart, pode ficar aí sentado e permanecer calado, mas só consegue magoar aqueles que mais o amam e você é quem sai mais magoado, no final. Seus pais desejam ajudá-lo. Foi por isso que o trouxeram aqui. Você precisa cooperar e tentar. Diga-me se é feliz. Diga-me se está frustrado e se gosta do modo que sua vida está transcorrendo. Eu não diria que sim, nem que não. Não diria nada e ela não poderia obrigar- me a falar. Então, ela começou a falar sobre pessoas que se mantinham fechadas e como isso era capaz de arruiná-las emocionalmente. Todas as suas palavras foram como pingos de chuva na vidraça por detrás da qual eu me abrigara. - Você odeia sua mãe e seu pai? Não respondi. - E seu irmão Jory - você gosta dele? Jory era legal. Seria melhor se fosse mais desajeitado e mais feio que eu. - E sua irmã adotiva, Cindy... o que acha dela? anotações no bloco de papel. Talvez meu olhar tenha revelado alguma coisa, pois ela fez - Bart - começou ela ao deixar a caneta de lado, o rosto procurando parecer maternal e bondoso -, caso se recuse a colaborar, não teremos outra escolha senão interná-lo num hospital, onde muitos médicos poderão tentar ajudá-lo a recuperar o controle sobre suas emoções. Não será maltratado, mas não será tão gostoso quanto estar em casa. Não terá seu próprio quarto, seus objetos pessoais, seus pais - a não ser uma vez por semana, durante apenas uma hora. Portanto, não acha que seria muito melhor tentar ajudar-se a si mesmo, antes que esta situação progrida? O que o transformou tanto em relação ao menino que você era no verão passado?Não desejava ser trancado numa casa de doidos, com malucos que talvez fossem maiores e mais malvados que eu, sem poder visitar John Amos e Maçã.
O que poderia fazer? Lembrei-me de trechos do diário de Malcolm, do modo como ele deixava as pessoas pensarem que estava cedendo, quando, na verdade, prosseguia em seu próprio caminho. Choraria, pediria desculpas - e quando o fazia, até mesmo eu julgava estar sendo sincero. Assim sendo, respondi: - É Mamãe... ela gosta mais de Jory que de mim. E gosta mais de Cindy, também. Não tenho ninguém. Detesto não ter ninguém. E continuei, interminavelmente. Mesmo depois que tagarelei de verdade, ela disse a meus pais que eu precisava continuar as sessões durante um ano, ou mais. - Ele é um menino muito confuso - disse, sorrindo e tocando o ombro de minha mãe. - Não se considere culpada. Bart parece estar programado para detestar-se e, muito embora possa aparentar que a odeia por não amá-lo o suficiente, ele não gosta de si mesmo. Portanto, acredita que todas as pessoas que o amam são tolas. É realmente uma doença. Tão real como qualquer doença física e, sob certos aspectos, ainda pior, pois Bart não consegue encontrar-se. Eu estava escondido, escutando o que diziam, surpreso por ouvi-la dizer aquilo. - Ele a ama, Sra. Sheffield, com um amor quase religioso. Conseqüentemente, espera que a senhora seja perfeita e, ao mesmo tempo, sabe que não é digno de sua atenção; ainda assim, paradoxalmente, quer que a senhora o veja e o considere o melhor filho que possui. - Mas eu não entendo - disse Mamãe, recostando a cabeça no ombro de Papai. - Como pode ele me amar e, ao mesmo tempo, desejar tanto magoar-me? - A natureza humana é deveras complexa. Seu filho é muito complexo. O bem e o mal lutam para dominarlhe a personalidade. Inconscientemente, ele tem conhecimento dessa batalha e encontrou uma solução realmente intrigante. Identifica seu lado mau com um velho que ele chama de Malcolm. Apenas um dentre os muitos personagens que lhe permitem gostar mais de si mesmo. Meus pais ficaram totalmente imóveis, de olhos arregalados, parecendo um tanto indefesos. Horas depois, antes de fazer minhas preces noturnas, esgueirei-me pelo comprido corredor e fiquei escutando à porta do quarto deles.Mamãe estava dizendo: - ... como se estivéssemos sempre trancados naquele sótão e nunca, nunca mais sejamos libertados. Que relação tinha o sótão com Malcolm e eu? Seria apenas porque ambos fôramos mandados para lá, de castigo? De gatinhas, afastei-me silenciosamente pelo corredor, voltei à cama e fiquei deitado em silêncio, com medo de mim mesmo e do meu "subconsciente". Embaixo do travesseiro estava o diário de Malcolm, que eu ia absorvendo dia a dia, noite após noite. Tornando-me mais forte, mais esperto.
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OS ESPINHOS DO MAU ( Concluído)
RomanceDas cinzas do mal, Crhis e Cathy construíram um lindo lar para seus esplêndidos filhos... Jory, de quatorze anos, era tão bonito, tão delicado. E Bart possuía uma imaginação tão brilhante para um menino de nove anos. Entao, acenderam-se luzes na cas...