Ferimentos de Guerra

25 0 0
                                    

A  hora  do  jantar  chegou  e  passou.  A  hora  de  dormir  se  aproximava  e  Bart    ainda  não  aparecera.  Tínhamos todos  procurado por  ele, mas  fui  eu  quem  mais persistiu na busca. Era eu quem  o conhecia melhor. -  Jory  -  disse  Mamãe  -, se  você  não o encontrar  dentro  de dez  minutos,    chamarei  a  polícia. -  Eu o encontrarei  -  afirmei,  soando muito mais confiante do que  realmente    me sentia. Não  gostava  do  que  Bart  estava  fazendo  a  nossos  pais.  Estes  faziam  o  melhor    possível  por  nós.  Não  se divertiriam muito visitando a Disneylândia pela quarta vez. Era um presente para Bart e este era por demais idiota  para entender  isso. Além  disso,  era  mau.  Mamãe  e  Papai  deviam  castigá-lo  severamente  e  não    fazer-lhe  a  vontade,  como costumavam. Ele aprenderia, afinal, que eles se importavam o bastante para castigá-lo pelas maldades cometidas.Não  obstante,  quando  eu  lhes  mencionara o  assunto  uma  ou  duas  vezes,  ambos    haviam  explicado que  tinham  aprendido  da  pior  maneira  possível  a  respeito  de  pais  rigorosos  e  cruéis.  Na  ocasião, achei  estranho  que  ambos  tivessem  o  mesmo  tipo  de  pais  desalmados,  mas  minha    professora  costumava dizer que era mais comum os pólos iguais se atraírem, em vez dos opostos. E bastava-me olhar para eles para perceber  que  isso  era  verdade.  Ambos  tinham  o  mesmo  tom  de  cabelos  louros,  a  mesma  cor  nos  olhos  azuis, as  mesmas  sobrancelhas  escuras  e    cílios  compridos,  negros  e  curvos  -  embora  Mamãe  usasse  maquilagem  e Papai    brincasse    com  ela,  pois  achava  que  isso  não  era  necessário.Não,  eles  não  castigariam  Bart severamente,  nem  mesmo  quando  ele  era    malvado,  pois  tinham  aprendido  por  experiência  própria  o  mal  que isso  poderia    causar.Puxa,  como  Bart  gostava  de  falar  em  maldade  e  pecado!  Um  novo  tipo  de    conversa, como  se  ele  andasse  lendo a  Bíblia  e tirando  dela  a  mesma  espécie de  idéias  que alguns  pregadores  berravam dos púlpitos. Era  até mesmo capaz de citar trechos da Bíblia - algo do Cântico dos Cânticos de  Salomão, sobre  o  amor  de  um  irmão  pela irmã  cujos  seios  eram...Ora,  eu  nem  gostava  de  pensar  naquele tipo  de  coisa. Deixava-me nervoso - ainda mais nervoso que quando Bart dizia o quanto odiava túmulos, velhas, cemitérios    e quase  tudo o  mais. Ódio era uma emoção que ele  tinha com  freqüência, pobre    menino. Procurei-o  em  sua  cova  nos  arbustos  e  vi  um  pedaço  rasgado  de  sua  camisa.    Mas  ele  não  estava  ali  agora. Peguei uma tábua destinada à casa de cachorro que Bart estava  construindo e olhei para a  ponta do prego, enferrujada  e  suja  de  sangue.Teria  ele  se  ferido  no  prego  e  se  arrastado  para  morrer  em  algum  lugar?    Morte era  o  único  assunto  no  qual  ele  falava  ultimamente,  excluindo  menção  aos    que  já    estavam  mortos.  Bart estava  sempre  rastejando  e engatinhando, farejando o  solo    como  um  cão,  até  mesmo  urinando como  um  cão. Puxa, era mesmo um  garotinho confuso! -  Bart,  aqui  é  Jory.  Se  quer  passar  a  noite  aqui  fora,  eu  permitirei  e  não    contarei  a  nossos  pais...  mas  faça  ao menos  algum  ruído para eu  saber  que  está    vivo. Nada. Nosso  quintal  era  grande,  cheio  de  arbustos,  árvores  e  sebes  floridas  que    Mamãe  e  Papai  tinham  plantado. Circundei  um  arbusto de  camélia. Oh, Deus...    seria aquilo    o pé  descalço de  Bart? Lá  estava  ele,  meio  escondido  debaixo  da  sebe,  com  apenas  as  pernas    estendidas  para  fora.  Eu  não  o  vira antes porque aquele não era o local onde costumava esconder-se. Agora estava escuro de verdade e o nevoeiro  dificultava ainda  mais a  visão. Puxei-o  delicadamente  de  baixo  da  sebe,  imaginando  por  que  motivo  ele  não    reclamava.  Olhei  para  o  rosto corado e  febril, os olhos  toldados  fitando-me inexpressivamente. -  Não  me  toque  -  gemeu  ele.  -  Estou  quase  morto...  quase.        que a  perna doía... -  Jory, não quero morrer. No  duro. Peguei-o  no  colo  e  corri.  Ele  chorava,  dizendo Quando Papai  o  pegou no colo e  colocou no carro,  Bart  estava inconsciente. -  Não  posso  acreditar  -  disse  Papai.  -  A  perna  está  inchada,  o  triplo  do    tamanho  normal.  Só  rezo  para  que não tenha  gangrena.
Eu  sabia  a  respeito  da  gangrena  -  era  capaz  de  matar  as  pessoas!  No  hospital,  Bart  foi  levado  imediatamente para a cama e outros médicos  vieram examinar-lhe a perna. Tentaram obrigar Papai a sair do quarto, pois era contra    a ética médicos  tratarem  de pessoas  da família.  Demasiado envolvimento    emocional,  presumi. -  Não!  -  protestou violentamente Papai.  -  Ele  é meu filho e vou ficar  para    ver  o que fazem  por  ele! Mamãe  chorava  o  tempo  todo,  ajoelhada  e  segurando  a  mão  inerte  de  Bart.  Eu    me  sentia  doente  por  dentro, também, pensando que  não  fizera  o suficiente  para    ajudar    meu irmão. -  Maçã, Maçã  -  choramingava Bart  sempre que entreabria  os olhos.  -  Preciso    de  Maçã. -  Chris  -  perguntou Mamãe  -, ele não pode  comer  uma maçã? -  Não. Não pode  comer  nessas condições. Em que terrível  estado se  encontrava Bart. O  suor  lhe  banhava a  testa, o    corpo pequeno e  magro ensopava os lençóis.  Mamãe  começou a  soluçar  de verdade. -  Tire sua mãe  deste quarto  -  ordenou-me Papai.  -  Não  quero  que ela  assista    a  tudo isto. Enquanto  Mamãe  chorava  na  sala  de  espera  na  extremidade  do  corredor,  voltei    furtivamente  ao  quarto particular  onde Bart  estava  e vi  Papai  injetar-lhe    penicilina    no braço. Prendi  a  respiração. -  Ele  é alérgico à penicilina?  -  indagou um  médico. -  Não  sei  -  respondeu  Papai  com  seu  jeito  calmo.  -  Nunca  teve  antes  uma    infecção  grave.  A  esta  altura,  não há muito que  possamos fazer  exceto correr  o  risco. Aprontem  tudo para o caso de  haver  alguma    reação. Virou-se  e viu-me encolhido no canto,  tentando manter-me fora do  caminho dos    outros. -  Filho, fique perto  de sua  mãe. Nada  pode fazer  aqui  para  ajudar. Não  consegui  mover  um  músculo.  Por  algum  motivo  -  talvez  remorso  por    negligenciar  meu  irmão  -  tinha que  ficar  e  vê-lo  vencer  a  doença.  Logo  Bart    piorou  ainda    mais.  Papai  franziu  a  testa,  fez  sinal  para  uma enfermeira  e  dois  outros  médicos    entraram  no  quarto.  Um  deles  inseriu  um  tubo  na  narina  de  Bart.  Em seguida,    ocorreu    algo  tão  horrível  que  nem  consegui  acreditar:  vergões  vermelhos  e  salientes    brotaram  por todo  o  corpo  de  Bart.  Vermelhos  como  fogo.  E  coçavam,  pois  os  dedos    dele    se  moviam  de  um  vergão  para outro.  Então,  Papai  ergueu  Bart  e  o  colocou  numa    maca,  para  que  dois  serventes  pudessem  levá-lo  do quarto. -  Papai!  -  exclamei.  -  Para onde  vai  essa maca?  Eles não vão cortar  a perna    de Bart, vão? -  Não,  filho  -  respondeu  ele  calmamente.  -  Seu  irmão  está  sofrendo  uma    violenta  reação alérgica.  Temos  que agir  depressa  e  fazer  uma  traqueotomia  antes  que  os  tecidos  da  garganta  se  inflamem  e  cortem  a    passagem do ar. -  Chris  -  chamou  o  médico  que  empurrava  um  dos  lados  da  maca.  -  Tudo  bem.    Tom  abriu  uma  passagem  de ar. Não há necessidade  de traqueotomia. Passou-se  um  dia  e  Bart  não  melhorou.  Parecia  provável  que  se  coçaria  até    ficar  com  o  corpo  todo  ferido  e morreria  de  um  outro  tipo  de  infecção.  Com  um    horror    fascinado,  permaneci  lá  até  muito  tarde,  observando os  dedos  curtos  e  inchados    de  meu  irmão  se  mexerem  convulsivamente  no  esforço  inútil  de  aliviar  o tormento    da    coceira.  O  corpo  inteiro  estava  cor  de  escarlate.  Pude  perceber  que  o  estado  de    Bart  era  muito grave  pela  expressão  no  rosto  de  Papai  e  pelas  atitudes  dos  outros  médicos  que  rodeavam  a  cama.  Então,  as mãos de Bart  foram amarradas com ataduras, a fim de não poderem coçar. Em seguida, seus olhos  se inflamaram  tanto  que  pareciam  dois  enormes  ovos  de  gansos,  só  que  vermelhos.  Os    lábios  incharam, projetando-se  sete centímetros além  da posição  normal. Não consegui  acreditar  que  tudo aquilo pudesse ocorrer  devido apenas  a uma    reação alérgica. -  Oh!  -  exclamou Mamãe, agarrando-se  com  força  a Papai, os olhos grudados em    Bart. Tive  a  impressão  de  que  ele  estava  doente  há  uma  eternidade.  Passou-se  o    segundo  dia  e  Bart  ainda  não melhorou.  Passou  seu  décimo  aniversário  num  leito    de  hospital,    delirante  e  desvairado,  sua  quarta  viagem  à Disneylândia  cancelada, nossa viagem  de volta à  Carolina do  Sul    adiada  por  mais  um  ano. -  Vejam  -  disse  Papai,  apontando,  uma  expressão  de  esperança  surgindo  no    rosto  fatigado.  -  Os  vergões estão diminuindo. O  segundo  obstáculo  fora  ultrapassado.  Julguei  que,  agora,  Bart  melhoraria    depressa.  Não  foi  assim.  Sua perna  inchou  ainda  mais  -  e  logo  se  constatou  que    ele    era  alérgico  a  todos  os  antibióticos  disponíveis  no hospital. -  O que vamos fazer?  -  chorava Mamãe, com  tamanha  ansiedade que  comecei  a    temer  pela saúde  dela. -  Estamos fazendo tudo o que é  possível  -  foi  tudo  que  papai  disse. -  Oh, Senhor, por  que me abandonaste?  -  murmurou Bart  em  seu delírio. As lágrimas  me escorriam  pelo  rosto, pingando como gotas  de chuva na  camisa. -  O Senhor  não  o abandonou  -  disse Papai.
Ajoelhou-se  ao  lado  da  cama  de  Bart  e  rezou,  segurando  com  força  a  mãozinha    de  meu  irmão,  enquanto Mamãe  dormia  numa  cama  colocada  no  quarto,  para  seu  uso.    Ela    não  sabia  que  os  comprimidos  que  Papai lhe  dera  eram  tranqüilizantes,  e  não    aspirina  para  sua  dor  de  cabeça.  Estava  por  demais  perturbada  para sequer  reparar  na cor  do    remédio.Papai  pousou  a mão em  minha cabeça. -  Vá para casa  dormir,  filho. Já  fez  tudo o  que era possível  aqui. Levantei-me  devagar,  rígido  por  ter  permanecido  tanto  tempo  na  mesma    posição,  e  me  encaminhei  para  a porta. Quanto  lancei  a  Bart  um  último e prolongado olhar, Papai  se  acomodava na  cama, atrás e  minha    mãe. No  dia  seguinte,  Mamãe  teve  que  correr  da  aula  de  balé  para  o  hospital,    deixando-me  sozinho  para  aquecer os músculos  à música  de piano. -  A vida continua,  Jory. Esqueça  um  pouco os  problemas  de seu irmão, se    puder. Junte-se  a nós  mais tarde. Mal  ela  saiu,  algo  me  veio  à  cabeça.  Maçã!  Claro!  Bart  não  queria  uma  maçã...    queria  o  seu  cão  -  o  seu pônei-filhote de  cão! Em menos  de dez  minutos,  tirei  a malha de  dança e  fui  a uma cabine  telefônica    ligar  para Papai. -  Como está Bart?  -  indaguei. -  Não  muito  bem,  Jory.  Não  sei  como  contar  à  sua  mãe,  mas  o  especialista  que    está  cuidando  de  Bart  deseja amputar-lhe  a  perna  antes  que  a  infecção  possa    enfraquecê-lo    ainda  mais.  Não  posso  permitir  isso...  mas, ainda  assim, não queremos perder    Bart. -  Não  deixe  que  amputem!  -  quase  berrei.  -  Diga  a  Bart...  obrigue-o  a    escutar...  que  vou  para  casa  cuidar  de Maçã. Por  favor,  não cortem  a perna de  Bart! Só Deus  sabia o quanto Bart  se  sentiria  ainda mais  inferior  se  perdesse  a    perna. -  Jory,  seu  irmão  jaz  na  cama  e  se  recusa  a  cooperar.  Não  procura  melhorar.    Parece  que  deseja  morrer.  Não podemos  aplicar-lhe  qualquer  antibiótico  e  a  febre    está  aumentando.  Mas  concordo  com  você.  Deve  existir algo que possamos fazer    para baixar  a febre. Pela  primeira  vez  na  vida,  peguei  uma  carona  para  casa.  Uma  delicada  senhora    deixou-me  no  sopé  da  colina e  corri  o  resto  do  caminho.  Quando  Bart  soubesse  que    Maçã  estava  bem,  ficaria  bom.  Procurava  castigar-se, da mesma forma que  esmurrava um tronco de árvore quando quebrava alguma coisa. Solucei, compreendendo que meu  irmão menor era mais importante para mim do que eu julgava. O garotinho biruta que  não  gostava  muito  de  si  mesmo...  Escondendo-se  em  suas  brincadeiras  de  "faz-de-conta",    contando estórias  inventadas  para  impressionar  todo  mundo.  Havia  muito  tempo,    Papai  me  dissera:  "...  finja  acreditar nas  estórias  dele,  Jory."  Talvez  tivéssemos    fingido demais. Prendi  a  respiração  ao  ver  Maçã  no  celeiro  da  mansão.  Estava  acorrentado  a    uma  estaca  cravada  no  solo, com  uma tigela de  ração para cães  fora de  seu    alcance. O pêlo  espesso  e  embaraçado  contava  a  estória  de  sua  fome.  O  pobre  cão    estava  arquejante  e  sujo,  olhandome  com  ar  de  súplica.  Quem  fizera  aquilo?  Maçã    arranhara    o  chão  com  as  patas  em  seus  esforços  para chegar  à  comida  e  agora,  ainda  não    passando  de  um  filhote  crescido  demais,  ofegava,  deitado  no  chão  do celeiro,    cuja porta    fora  trancada  cruelmente. -  Tudo bem, rapaz  -  disse eu, tranqüilizando-o, ao pegar  água fresca  para    ele. Maçã  bebeu  com  tanta  avidez  que  fui  obrigado  a  fazê-lo  parar.  Eu  conhecia  um    pouco  de  primeiros socorros.  Os  animais,  como  as  pessoas,  deviam  beber  aos    poucos    após  um  prolongado  período  de  sede.  Em seguida,  soltei  Maçã  e  fui  à  prateleira    de  suprimentos,  pegando  o  que  me  pareceu  melhor  em  meio  a  uma comprida  fila  de    latas.    Maçã  morria  de  fome  cercado  por  abundância.  Quando  passei  a  mão  pelo  flanco coberto    de  pêlos  emaranhados  e  sem  lustro,  pude  sentir  as  costelas.  O  cão,  antes  tão    bonito,    estava  magro  e sujo. Depois  que  ele  comeu  e  bebeu  bastante,  escovei-lhe  o  espesso  manto  de    pêlos.  Então,  sentei-me  no  chão  de terra e  segurei-lhe a  grande  cabeça no  colo. -  Bart  voltará  para  você,  Maçã.  E  prometo-lhe  que  virá  com  duas  pernas.  Não    sei  quem  lhe  fez  isto,  mas pode apostar  que vou descobrira. O que  mais  me  preocupava  era  a  terrível  suspeita  de  que  a  própria  pessoa  que    mais  amava  Maçã  fosse  quem o castigara e deixara faminto. Bart tinha um modo deveras estranho de raciocinar. A seu ver, se Maçã realmente sofresse  durante  sua  ausência,  ficaria  dez  vezes  mais satisfeito e grato ao vê-lo de volta. Seria  Bart  capaz  de  tamanha  crueldade?Lá  fora,  o  dia  de  julho  estava  moderadamente  quente.  Ao  me aproximar  da    mansão,  escutei  as  vozes  baixas  de  duas  pessoas.  A  velha  vestida  de  negro  e  o    sinistro    velho mordomo,  ambos  sentados  num  pátio  verdejante  de  belas  palmeiras  plantadas    em  vasos  e  samambaias  em grandes urnas  de pedra.
-  John,  creio  que  devemos  ir  mais  uma  vez  verificar  o  cachorro  de  Bart.    Ficou  tão  satisfeito  por  ver-me  hoje de manhã que não consegui entender por que estava tão faminto. Precisa mesmo mantê-lo acorrentado daquela maneira? Parece-me uma crueldade, num  dia tão bonito como hoje. -  Madame,  não  é  um  dia  bonito  -  replicou  o  mordomo  de  aparência  malvada,    bebericando  uma  cerveja escarrapachado  numa  espreguiçadeira.  -  Como  a  senhora    insiste    em  usar  roupas  pretas,  é  natural  que  sinta mais calor  que  as  outras  pessoas. -  Não pedi  sua opinião sobre minhas  roupas. Quero  saber  por  que motivo    mantém  Maçã  acorrentado. -  Por  que  ele  poderia  fugir  à  procura  do jovem  dono  -  replicou  o  mordomo,    sarcástico.  -  Creio  que  a  senhora não pensou  nisso. -  Você  podia trancar  a porta do celeiro. Vou ver  Maçã  novamente. Pareceu-me    tão magro, tão desesperado. -  Madame,  se  quer  preocupar-se,  faça-o  com  algo  mais  importante.  Preocupe-se    com  seu  neto,  que  está prestes  a perder  a perna. Ela  começara a  levantar-se  da cadeira, mas, ao ouvir  aquilo, afundou-se    outra vez  nas  almofadas. -  Oh... Ele  piorou? Emma e  Martha  tornaram  a conversar  hoje de manhã? Suspirei,  sabendo que  Emma  gostava  de  trocar  mexericos  e  não  devia fazê-lo.    Todavia,  não  acreditei  que  ela realmente  dissesse  coisas  importantes.  Nunca  me    revelara    segredos.  E  Mamãe  nunca  tinha  tempo  para escutá-la. -  Claro  que  conversaram  -  resmungou  o  velho  mordomo.  -  Já  ouviu  falar  em    alguma  mulher  que  não  goste de  conversar?  Aquelas  duas  usam  escadas  todos  os  dias,  para  trocarem  mexericos.  Não  obstante,  quem    ouve Emma falar  julga que  o médico  e a  mulher  são  perfeitos. -  John, o que  descobriu  Martha  a respeito de Bart? Diga-me! -  Bem,  Madame,  parece  que  o  garoto  conseguiu  espetar  um  prego  enferrujado  no    joelho  e  agora  está  com gangrena  -  o tipo  que exige  a amputação  do membro, ou o paciente morre. Do  meu  esconderijo,  olhei  para  os  dois  que  conversavam  sentados,  uma  muito    perturbada  e  o  outro totalmente  despreocupado,  quase  divertido  com  a reação da    patroa. -  É  mentira!  -  gritou  a  mulher,  erguendo-se  de  um  pulo.  -  John,  você  mente    para  me  torturar  ainda  mais.  Sei que Bart  ficará  bom. O  pai  dele  saberá  o que    fazer    para curá-lo. Sei  que saberá.  Tem  que saber... Então,  começou  a  chorar. Tirou  o  véu  e  enxugou as  lágrimas. Vi-lhe  o rosto    de relance, não notando tanto as cicatrizes,  desta  vez,  mas  apenas  a  expressão    de    sofrimento.  Gostaria  realmente  tanto  de  Bart?  Por  que haveria  de  gostar?  Seria  realmente  avó  de  Bart?...  Não,  não  podia    ser.  A  avó  dele  estava  internada  num manicômio da Virgínia. Avancei,  a  fim  de  que  minha  presença  fosse  notada.  A  mulher  pareceu  surpresa    por  ver-me.  Então, lembrouse  do  rosto descoberto e  recolocou  depressa  o véu. -  Bom  dia  -  disse  eu,  dirigindo-me  unicamente  à  mulher  e  ignorando  o    mordomo,  ao  qual  não  conseguia deixar de detestar. - Escutei o que disse seu mordomo, Madame, e ele só tem razão até certo ponto. Meu irmão está muito doente, mas  não  tem  gangrena. E não perderá a  perna.  Meu  pai  é  muito bom  médico para permitir  que  isso    aconteça. -  Jory,  tem  certeza  de  que  Bart  ficará  bom?  -  indagou  ela,  muito  preocupada.    -  Ele  me  é  muito  querido... nem  consigo explicar  o quanto... Engasgou-se  e baixou a cabeça,  torcendo  convulsivamente as mãos  magras    cheias  de anéis. -  Sim,  Madame  -  respondi.  -  Se  Bart  não  fosse  alérgico  à  maioria  dos    remédios  que  os  médicos  lhe ministraram,  a  infecção  já  estaria  debelada  -  mas,  a    longo  prazo,    isso  não  fará  diferença,  pois  meu  pai saberá o que fazer  para  curá-lo. Meu pai    sempre  sabe  o que fazer. Virei-me para o mordomo e tentei  assumir  uma atitude  de autoridade adulta: -  E  quanto  a  Maçã,  não  precisa  ficar  acorrentado  num  celeiro  quente,  com    todas  as  janelas  fechadas.  E  não precisa  que  a  água  e  a  comida  sejam  colocadas  fora  de  seu    alcance.  Não  sei  o  que  se  passa  aqui,  nem    por que  motivo  você  gosta  de  fazer  um  cachorro  bom  como  aquele  sofrer  -  mas  acho    melhor  tratar  bem  dele  se não quer  que eu o  denuncie  à Sociedade Protetora dos    Animais! Girei  nos  calcanhares  e  comecei  a  me  afastar.  -  Jory!  -  chamou  a  mulher  de  negro.  -  Fique!  Não  saia  agora. Quero saber    mais a  respeito de Bart. Virei-me para encará-la. -  Se  deseja  ajudar  meu  irmão,  só  há  uma  coisa  que  pode  fazer:  deixe-o  em    paz!  Quando  ele  voltar,  invente alguma  boa  desculpa  e  diga-lhe  que  não  pode  ser  incomodada  -  mas  não  o  magoe.        Ela  tornou  a  falar, pedindo-me  para  ficar  e  falar,  mas  segui  meu  caminho,    pensando  que  fizera  algo  para  proteger  Bart  - embora não soubesse  contra o que.
Naquela  mesma  noite,  a  febre  de  Bart  subiu  muito.  Os  médicos  mandaram  que    ele  fosse  enrolado  numa coberta  térmica  que  funcionava  como  refrigerador.    Observei    meu  pai  e  minha  mãe,  vendo-os  trocando olhares,  tocando-se,  fortalecendo-se    mutuamente.  Por  estranho  que  pareça,  ambos  se  voltaram  para  pegar cubos de gelo  e esfregá-los  nos membros e no peito de Bart. Agiam como se fossem uma só pessoa, sem necessidade  de  palavras.  Engasguei-me  e  baixei  a  cabeça,  comovido  por  aquele    tipo  de  amor    e compreensão. Tive  ímpetos  de  tomar  a  palavra  e contar-lhes  a  respeito  da    mulher  da  mansão,  mas  prometera a  Bart  guardar  segredo.  Meu  irmão  encontrara  a    primeira    pessoa  amiga  em  sua  vida,  bem  como  o  primeiro animal  capaz  de  tolerá-lo;  não    obstante,  quanto  mais  tempo  eu  ocultasse  o  que  sabia,  mais  meus  pais poderiam  magoar-se,  a  longo  prazo.  Por  que  eu  tinha    que  pensar  isso?  Como  podia  saber  que  a  velha magoaria  meus  pais?Não  sei  como,  tinha  certeza  de  que  ela  o  faria.  Sabia  que  algum  dia  ela  os    feriria. Desejei  ser  adulto,  capaz  de tomar  as  decisões  adequadas. À  medida  que  ficava  mais  sonolento,  lembrei-me  da  expressão  que  Papai    costumava  usar:  "Deus  age  de maneiras  estranhas  para  realizar  suas maravilhas". A próxima coisa  de que  me dei  conta foi  que Papai  me sacudia para  me    acordar. -  Bart  está melhor!  -  exclamou ele.  -  Bart  ficará bom  e não perderá  a perna! Devagar,  dia  a  dia,  aquela  hedionda  perna  inchada  diminuía  de  tamanho.    Gradativamente,  retornou  à coloração normal, embora  Bart  parecesse  abatido  e    indiferente,    fitando o vácuo,  sem  falar  com  ninguém. Certa  manhã,  estávamos  à  mesa  do  café,  quando  Papai  esfregou  os  olhos    fatigados  e  nos  informou  algo incrível: -  Cathy,  você  não  vai  acreditar,  mas  os  técnicos  do  laboratório  encontraram    uma  coisa  estranha  na  cultura que  retiraram  da  perna  de  Bart.  Desconfiávamos  de    ferrugem;    eles  encontraram  ferrugem,  que  causou  o tétano,  mas  descobriram  também  a  exata    espécie  de  estafilococos  geralmente  associada  a  fezes  frescas  de animais.  É  um  verdadeiro  milagre  que  Bart  não  tenha  perdido  a  perna.  Mamãe,  parecendo  pálida  e  cansada  o bastante para estar  doente,  meneou    levemente a  cabeça antes  de recostá-la no ombro dele. -  Se Trevo ainda estivesse  aqui, eu  compreenderia  facilmente de  que modo    Bart  poderia... -  Você  sabe  como  é  o  nosso  Bart.  Se  houver  algo  imundo  num  raio  de  dois    quilômetros,  será  ele  quem pisará,  se  arrastará  na  coisa,  ou  a  pegará  para    examiná-la.    Sabe  de  uma  coisa?  Ontem  à  noite,  quando  ele não  parava  de  falar  em  maçãs,  dei-  lhe  a  que  levei  comigo  e  ele  a  deixou  cair  no  chão,  não  demonstrando  o menor    interesse. Mamãe  fechou  os  olhos,  enquanto  ele  prosseguiu:    -  Quando  anunciei  que  não  iríamos  ao  Leste,  percebi  que ele  ficou    satisfeito. Então, olhou para mim: -  Jory,  espero  que  não  esteja  muito  desapontado.  Teremos  que  esperar  até  o    próximo  verão  para  visitarmos sua  avó. Ou talvez  possamos ir  no Natal,  se  eu    conseguir    folga para viajar. Eu  alimentava  pensamentos  malvados.  Bart  sempre conseguia  o  que desejava.    Imaginara um  meio  seguro  de evitar  visitar  "velhas  sepulturas  e  velhas  avós".  Até  mesmo  abrira  mão  da  Disneylândia.  E  não  era  do    feitio de Bart  abrir  mão de  coisa  alguma. Naquela  noite,  fiquei  sozinho  com  Bart,  enquanto  Papai  e  mamãe  conversavam    com  amigos  no  corredor. Contei  a Bart  a conversa  que eu escutara entre a  velha  e o mordomo. -  Lá estavam  eles, Bart, ambos sentados no  terraço. Ela estava muito    preocupada  com  você. -  Ela  me  ama  -  declarou  ele,  orgulhoso,  a  voz  muito  sumida.  -  Ela  me  ama    mais  que  qualquer  outra  pessoa... -  fez  uma leve pausa, parecendo em  dúvida, e    logo    acrescentou:  com  exceção, talvez, de Maçã. Bart,  disse  eu  com  meus  botões,  não  pense  assim.  Contudo,  não  tive  coragem    de  falar  e  estragar  seu  orgulho por  ter  encontrado  amor  fora  de  nossa  família.    Com    emoções  confusas,  observei-lhe  o  rosto  expressivo, meus  sentimentos  embaralhados  de  incerteza.  Que  tipo  de  irmão  mais    moço  possuía  eu?  Certamente,  ele tinha que  saber  que seus  pais o amavam  mais que  qualquer  outra pessoa. -  Vovó  tem  medo  daquele  velho  mordomo,  mas  eu  sei  lidar  com  ele  -  afirmou    Bart.  -  Possuo  poderes ocultos,  realmente  fortes. -  Bart, por  que  continua indo àquela casa?        -  Não sei. Apenas  tenho vontade. Ele sacudiu os  ombros, fitando a parede. -  Bem  sabe  que  Papai  lhe  daria  um  cachorro,  de  qualquer  raça  que  você    desejasse.  Só  precisa  pedir  e  ele  lhe dará  um  filhote de São Bernardo  igualzinho    a Maçã. Seu feroz  olhar  de raiva me trespassou. -  Não existe outro cachorro  igual  ao meu pônei-filhote  de cão!  Maçã  é    especial. Mudei  de  assunto.
Como sabe que  aquela velha tem  medo do mordomo?  Ela  lhe contou? -  Não precisa  contar.  Posso  perceber. Ele a  olha  com  maldade. Ela o olha  com    medo. Com medo  -  exatamente da  maneira como eu estava começando a  olhar  para    tudo.

OS ESPINHOS DO MAU ( Concluído) Onde histórias criam vida. Descubra agora