TERCEIRA PARTE- A FÚRIA DE MALCOLM

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O  sol  incidiu  em  meu  rosto  e  me  acordou.  Quando  me  vesti,  deixei    repentinamente  de  sentir-me  tão  velho quanto  Malcolm  e,  de  certo  modo,  alegrei-me  com  isso.  Por  outro  lado,  fiquei  triste,  pois  Malcolm  era    tão confiável.Por  que  eu  não  tinha  amigos  da  minha  idade,  como  os  outros  meninos?  Por  que    só  gente  velha gostava  de  mim?  Agora,  não  importava  que  minha  avó  afirmasse  que  me  amava,  agora  que  ela  me  roubara Maçã.    Eu era obrigado a  encarar  o  fato de que apenas  John  Amos  era meu verdadeiro amigo.Saí  e engatinhei pelo  jardim  antes  do café da manhã, farejando o solo,    sentindo o  cheiro  dos bichos selvagens  que me temiam à luz  do dia. Um  coelhinho    fugiu    como louco  e eu  seria incapaz  de  lhe  fazer  mal;  incapaz? À  mesa  do  café,  vigiaram-me  como  se  esperassem  que  eu  fizesse  algo  horrível.    Notei  que  Papai  não perguntou  a  Jory  como  estava  passando  hoje;  perguntou  apenas    a  mim.  Amarrei  a  cara  para  o  prato  de cereais;  estava frio. Eu detestava passas!    Pareciam  pequenos  insetos mortos. -  Bart, eu  lhe  fiz  uma pergunta. Eu  já sabia. -  Estou  bem  -  respondi,  sem  olhar  para  Papai,  que  sempre  acordava  bem    disposto  e  nunca  parecia  malhumorado  como  eu  -  e  Mamãe.  -  Eu  só  gostaria  que    vocês  contratassem    uma  boa  cozinheira.  Boa  de verdade.  Ou,  melhor  ainda,  que  Mamãe  ficasse  em  casa    e  preparasse  nossas refeições,  como  fazem  as  outras mães. A comida de  Emma  não    serve    para homens  nem  animais. Jory  olhou  feio para mim  e chutou-me por  baixo  da mesa, prevenindo-me para    manter  a boca  fechada. -  Não  foi  Emma  quem  preparou  seus  cereais,  Bart  -  disse  Papai.  -  Já  vem    assim  numa  caixa.  E  até  hoje  você sempre  gostou  muito  de  passas.  Costumava  desejar  também  as  de  Jory.  Todavia,  se  esta  manhã  as    passas  o ofendem  de alguma  maneira, não  as  coma. E por  que  seu lábio  inferior    está    sangrando? Estava?  Os médicos andavam  sempre vendo sangue, porque  sempre estavam    cortando as  pessoas. Jory  assumiu o encargo de  responder: 
-  Ele  estava  brincando  de  lobo  esta  manhã,  Papai.  Só  isso.  Creio  que  se    mordeu  ao  pular  sobre  o  coelho  e tentar  arrancar-lhe a  cabeça  com  uma dentada. Sorriu para mim, parecendo  satisfeito com  minha estupidez. Havia  algo  no  ar.  Tive  certeza,  pois  ninguém  perguntou  por  que  eu  brincava    de  lobo.  Apenas  me  olhavam como se  esperassem  que eu  agisse como um  maluco. Escutei  Mamãe  e  Papai  sussurrando  fora  da  copa  -  falando  a  meu  respeito.    Ouvi-os  mencionar  médicos, novos psiquiatras. Eu  não  iria!  Não podiam  obrigar-me! Então,  Mamãe  voltou  à  cozinha,  conversando  com  Jory  enquanto  Papai  foi  à    garagem  ligar  o  motor  do  seu carro. -  Mamãe, vamos  mesmo apresentar  o  espetáculo  esta noite? Ela  me lançou um  olhar  perturbado e  depois  forçou um  sorriso, respondendo: -  Naturalmente.  Não  posso  decepcionar  meus  alunos,  seus  pais  e  os  outros    convidados  que  já  compraram ingressos. Os tolos são logo separados  de seu  dinheiro. Jory  disse: -  Creio que vou telefonar  para  Melodie. Ontem, disse-lhe que  talvez  o    espetáculo  fosse cancelado. -  Jory, por  que  lhe  disse  tal  coisa? Ele  olhou  para  mim,  como  se  eu  fosse  o  culpado  de  tudo,  até  mesmo  de    espetáculos  que  não  eram cancelados  -  e  eu  não  compareceria.  Nem  que  se  lembrassem  de  convidar-me.  Não  queria  assistir  a  um    balé bobo  e  fresco,  onde todo  mundo  dançava  e  não  dizia  nada.  Nem  mesmo    dançariam  O    Lago  dos  Cisnes,  mas o mais idiota  e mais chato  de todos os  balés:  Copélia. Então, Papai  tornou  a entrar  em  casa,  tendo  esquecido  alguma coisa  -  como    sempre. -  Creio que você  será o  príncipe  -  disse ele a  Jory, que  se voltou para    fitá-lo desdenhosamente. -  Ora,  Papai,  será  que  você  nunca  aprende?  Não  há  um  príncipe  em  Copélia!  Na    maior  parte  do  tempo, ficarei  apenas  no  corpo  de  baile,  mas  Mamãe  estará    magnífica    no  seu  papel.  Foi  ela  quem  coreografou  a peça. -  O  que  estão  dizendo?  -  rugiu  Papai,  virando-se  para  encarar  severamente    Mamãe.  -  Cathy,  sabe  que  não deve  dançar  com  esse  joelho  problemático!  Você  me    prometeu    que  nunca  mais  voltaria  a  dançar profissionalmente.  A  qualquer  momento  o  joelho    pode  ceder  e  você  levará  um  tombo.  Mais  uma  queda  e acabará  aleijada  para o    resto    da vida. -  Só  mais  uma  vez  -  implorou  ela,  como  se  sua  vida  inteira  dependesse  de    dançar  mais  uma  vez.  -  Serei apenas a  boneca  mecânica,  sentada  numa cadeira. Não    faça    tempestade  num  copo d'água. -  Não!  -  esbravejou  outra  vez  Papai.  -  Se  você  dançar  esta  noite  e  não  cair,    pensará  que  o  joelho  está  bom. Desejará  repetir  o sucesso  e  bastará  mais um    tombo    para deixar  o joelho  permanentemente  danificado.  Mais uma queda grave e  você  poderá  fraturar  a perna, a bacia, a    espinha...  Já  aconteceu  antes e  você  bem  sabe! -  Pode  enumerar  todos  os  ossos  de  meu  corpo!  -  gritou  ela  em  tom  agudo,    enquanto  eu  pensava,  pensava, pensava:  se  ela  quebrasse  os  ossos  e  não  pudesse    voltar    a  dançar,  teria  que  ficar  em  casa  comigo,  o  tempo todo. -  Francamente,  Chris,  às  vezes  age  como  se  eu  fosse  sua  escrava.  Olhe  para    mim:  tenho  trinta  e  sete  anos  e em  breve  estarei  velha  demais  para dançar.  Deixe    que    eu  me  sinta útil, como  você  se  sente.  Preciso  dançar  - apenas mais uma vez! -  Não  -  repetiu ele, mas  com  menos firmeza.  -  Se eu ceder,  não será a  última    vez.  Você dançará de  novo... -  Chris,  eu  não  vou  suplicar.  Não  tenho  uma  só  aluna  capaz  de  fazer  o  papel    -e  dançarei,  quer  você  goste  ou não! Olhou-me  de  esguelha,  como  se  estivesse  mais  preocupada  com  o  que  eu  pensava    do  que  com  a  opinião dele. E eu me sentia feliz, muito feliz... porque ela ia cair! Bem no fundo, eu tinha certeza de que poderia fazê-la  cair,  com  a  força  do  meu  desejo.  Sentar-me-ia  na  platéia  e  lhe  lançaria    um  mau-olhado;  então,  ela passaria  a  ser  minha  companheira  de  brincadeiras.  Eu  a    ensinaria  a  rastejar  pelo jardim  e  farejar  o solo  como um cão ou um  índio;  e ela    se  espantaria  com  o que era  possível  descobrir  farejando a terra. -  Não  me  refiro  a  uma  contusão  de  menor  importância,  Catherine  -  insistiu    aquele  detestável  marido.  - Durante  toda  a  sua  vida,  submeteu  suas  juntas  a  um  enorme  esforço  e  não  deu  atenção  à  dor.  Já  é    tempo  de começar  a entender  que o  bem-estar  de sua  família  depende  de sua  boa  saúde. Fechei  a  cara  para  Papai,  aborrecido  por  ele  ter  esquecido  alguma  coisa  e    voltado  a  tempo  de  ouvir  demais. Mamãe  nem  mesmo parecia  surpresa  com  o  fato  dele  haver  esquecido  mais  uma  vez  sua  carteira,    embora
fosse  médico  e  devesse  ter  boa  memória.  Entregou-lhe  a  carteira,  que    ficara  sobre    a  mesa,  ao  lado  do  prato, e enviou-lhe um  sorriso retorcido. -  Você  faz  isso  todo  dia.  Vai  para  a  garagem,  liga  o  motor  do  carro  e,    então,  lembra-se  de  que  não  levou  a carteira. O  sorriso  de  Papai  foi  tão  retorcido  quanto  o  dela.-  Sim,  claro  que  faço.  Dá-me  a  oportunidade  de  voltar  e escutar todas as  coisas que vocês não me contam - disse ele, enfiando a carteira no bolso  traseiro das calças. -  Chris,  não  me  agrada  contrariar  sua  vontade,  mas  não  posso  permitir  um    espetáculo  de  segunda  categoria. E é a grande  oportunidade  de  Jory  aparecer  num    solo... -  Pelo  menos  uma  vez  na  vida,  Catherine,  ouça  o  que  digo.  Seu  joelho  foi    radiografado,  você  sabe  que  a cartilagem  está  rompida  e  ainda  se  queixa  de  dores    crônicas.    Não  se  apresenta  no  palco  há  anos.  Dor crônica  é uma coisa  -  dor  aguda é  outra, muito diferente. É isso que    você  deseja? -  Oh,  vocês,  médicos!  -  zombou ela.  -  Todos vocês têm  uma noção tão    desalentadora da  fragilidade do corpo humano.  Meu  joelho  dói  -  e  daí?  Quando  eu    estava  na    Carolina  do  Sul,  os  bailarinos  se  queixavam;  em Nova  Iorque também  se  queixavam;    em  Londres... ora, o  que é  dor,  para um  bailarino? Nada, doutor, absolutamente nada que  não    consiga suportar! -  Cathy! -  Meu joelho  não dói  de verdade, há mais de  dois  anos.  Já  me escutou    reclamar  de  dor? Não, não  escutou! Com isso, Papai  saiu da cozinha, atravessou a área de  serviço  e entrou na    garagem. Numa  fração  de  segundo,  ela  correu  atrás  dele  e  eu  atrás  dela,  esperando    escutar  o  resto  da  discussão  e desejando  que  ela vencesse.  Então,  eu a  teria só    para    mim. -  Chris!  -  gritou  ela,  abrindo  a  porta  do  lado  direito  e  entrando  no  carro,    onde  o  abraçou  pelo  pescoço.  -  Não vá  embora  zangado.  Eu  o  amo,  eu  o  respeito,  e    dou-lhe  minha  palavra  de  honra  que  esta  será  minha  última apresentação  num    palco.  Juro  que  jamais,  nunca  mais,  voltarei  a  dançar  em  público.  Sei  que  devia    ficar    em casa... eu sei... Beijaram-se.  Nunca  vi  duas  pessoas  que  gostassem  tanto  de  se  beijarem.    Então,  ela  se  afastou  um  pouco, fitando-o docemente nos  olhos, acariciando-lhe o  rosto  ao murmurar: -  Querido,  esta  é  minha  primeira  oportunidade  de  dançar  profissionalmente    com  o  filho  de  Julian.  Olhe  para Jory,  repare  o  quanto  ele  se  parece  com  Julian.  Coreografei  um  pas  de  deux  especial,  no  qual    sou  a  boneca mecânica  e  Jory  um  soldado mecânico. É  a  melhor  coisa  que  já  realizei.  Quero  você  na  platéia,  assistindo,  sentindo-se    orgulhoso  de  sua  esposa  e filho. Não  quero que  se  preocupe  com  meu joelho.    Sinceramente,    já  ensaiei  e  não  doeu! Acariciou-o  e  beijou-o  ainda  mais.  Pude  perceber  que  ele  a  amava  acima  de    tudo,  mais  do  que  a  nós,  mais do que a  si  próprio.  Tolo!  Maldito tolo por  amar    tanto    uma  mulher! -  Está  certo  -  disse  ele,  afinal.  -  Mas  terá  que  ser  a  última  vez.  Seu    joelho  não  pode  suportar  anos  e  anos  de treinamento.  Até  mesmo  ao  ensinar  você  o    utiliza    demais,  tanto  que  as  outras  juntas  podem  ficar prejudicadas. -  Vi  Mamãe  afastar-se  dele  e saltar  do  carro, dizendo com  voz  tristonha: -  Há  muitos  anos,  Madame  Marisha  disse  que,  para  mim,  não  existiria  vida  sem    a  dança;  e  eu  neguei  que assim  fosse. Agora,  terei  oportunidade de verificar. Ótimo! Eram  exatamente  as  palavras  que  ele  precisava  escutar  para  apresentar  uma    nova  idéia.  Debruçou-se  no banco  e chamou: -  Cathy!  E  a  respeito  daquele  livro  que  você  disse  tencionar  escrever?  Eis    uma  boa  oportunidade  para começar... Em seguida, fitou-me demoradamente  e me senti  como uma  vidraça limpa e    transparente. -  Bart,  lembre-se  de  que  é  muito  amado.  Caso  se  ressinta  contra  alguém,  ou    alguma  coisa,  basta  me  contar, ou à sua mãe. Estamos dispostos a  escutar  e fazer    o    possível  para torná-lo feliz. Feliz?  Eu  só  me  sentiria  feliz  quando  ele  sumisse  da  vida  dela.  Só  seria    feliz  quando  a  tivesse exclusivamente para mim.  Então, lembrei-me daquele    velho...  daqueles    dois velhos. Nenhum  deles  desejava que  ela  permanecesse  viva...  nenhum  dos  dois.    Eu  desejava  ser  como  eles,  especialmente  como  Malcolm,  de modo que fingi que ele  estava na garagem, esperando que Papai fosse embora, para ficar sozinho. Ele gostava  quando  eu  ficava  sozinho,  quando  me  sentia triste,  solitário,  malvado,    furioso...    e, no  momento,  ele sorria.
Tão  logo  Mamãe  e  Jory  saíram,  pouco  depois  de  Papai,  Emma  caiu  novamente    sobre  mim,  implicando comigo, detestando-me. -  Bart,  será  que  não  pode  limpar  esse  sangue  do  lábio?  Precisa  continuar  a    mordê-lo?  As  pessoas  geralmente evitam  machucar-se  deliberadamente. O  que  sabia  ela  a  respeito  de  ser  como  eu?  Eu  não  sentia  dor  quando  mordia  o    lábio.  Gostava  do  sabor  de sangue. -  Vou-lhe  dizer  uma  coisa,  Bartholomew  Scott  Winslow  Sheffield:  se  você    fosse  meu  filho,  sentiria  no traseiro  o  peso  da  minha  mão!  Creio  que  gosta  de    atormentar    as  pessoas  e  faz  todas  as  maldades  possíveis só para atrair  a atenção delas. Não    é preciso  ser  psiquiatra com  dez  diplomas  para  perceber  isso! -  CALE A  BOCA!  -  berrei. -  Não  se  atreva  a  gritar  e  me  mandar  calar  a  boca.  Já  aturei  o  bastante  de    você!  É  o  responsável  por  todas  as coisas  ruins  que  estão  acontecendo  nesta    casa.    Quebrou  aquela  estatueta  caríssima  de  que  sua  mãe  tanto gostava. Encontrei-a na  lata do lixo, embrulhada em jornal. Pode ficar aí sentado, de cara amarrada, mirando-me    com  esses feios olhos pretos, pois não tenho medo. Foi  você  quem  enrolou o arame    farpado no pescoço  de  Trevo  e  matou  o  cão  de  estimação  de  seu  irmão.  Devia  envergonhar-se!  É  um    garotinho mesquinho,  malvado  e  detestável,  Bart  Sheffield,  e  não  é  de  espantar    que  não    tenha  amigos! Absolutamente,  não  é  de  espantar!  E  vou  economizar  milhares  de  dólares    para  seus  pais  quando  o  virar  de bunda para  cima e  lhe der  uma sova de  deixar-  lhe    o traseiro  roxo!  Ficará quinze dias  sem  poder  sentar! Parecia  uma  torre  ameaçadora  diante  de  mim,  fazendo-me  sentir  pequeno  e    indefeso.  Desejei  ser  qualquer pessoa, menos  eu  -  qualquer  pessoa  forte. -  Se tocar  em  mim, eu a  mato!  -  declarei  com  voz  fria. Ergui-me  rigidamente,  afastei  bem  os  pés  e  apoiei  as  palmas  das  mãos  sobre  a    mesa,  para  manter  o equilíbrio.  Por  dentro,  fervia  de  raiva.  Agora,  sabia  como    transformar-me    em  Malcolm  e  ser  bastante impiedoso para  conseguir  o  que queria, quando queria. Olhem  para  ela,  agora  -  está  com  medo.  Agora,  é  ela  quem  tem  os  olhos    esbugalhados  e  cheios  de  medo. Franzi  o  lábio superior  e  exibi  os dentes. Depois,  arreganhei  ambos os  lábios numa careta de  fúria: -  Mulher, suma-se  da minha frente antes  que eu me descontrole! Emma recuou, calada. Depois, correu para  a sala  de  jantar, dirigindo-se  ao    corredor  a  fim  de proteger  Cindy. Esperei  o  dia  inteiro.  Emma  julgou  que  eu  estivesse  escondido  em  minha  toca    na  sebe,  de  modo  que  deixou Cindy  sozinha  na  caixa  de  areia,  à  sombra  de  um    enorme    carvalho.  Tinha  um  toldo  bonito,  também.  Nada era bom  demais para Cindy  -  e ela    era  apenas  filha  adotiva. A nojentinha  riu  quando  me  viu  mancando,  como  se  eu  parecesse  engraçado  e    estivesse  apenas  fingindo-me de  velho. Vejam  como  sorri  e  tenta  encantar-me.  Sentada  ali,  seminua,  usando  apenas  pequenos  shorts    verde e  branco.  Cresceria,  ficaria  mais  bonita  e  seria  como  todas  as  mulheres,    pecaminosa    e  seduzindo  os  homens a  se  comportarem  da  pior  maneira  possível.  Trairia  o  homem  que  a  amasse  e  seus    filhos,  também.  Mas... mas... e se fosse feia? Que homem a desejaria? Se fosse feia, não teria filhos. Não conseguiria seduzir os homens.  Eu  salvaria  todos  os  seus  filhos  do  que  ela  lhes  faria  mais  tarde.    Salvar    os  filhos  -  isso  era importante. -  Barr-tie  -  disse  ela,  sorrindo  para  mim,  sentada  de  pernas  cruzadas  para    que  eu  pudesse  ver  as  calcinhas rendadas  que usava  por  baixo dos shorts.  -  Brinca, Barr-tie?  Brinca  com  Cindy...? As  mãozinhas  gorduchas  se  estenderam  para  mim.  Ela  tentava  "seduzir-me"!    Apenas  dois  anos  e  alguns meses  de idade  e  já  conhecia todas  as manhas    pecaminosas das    mulheres! -  Cindy!  -  chamou Emma da cozinha. Mas  eu estava abaixado e  ela não me podia ver  atrás  dos arbustos. -  Você  está bem? -  Cindy  brinca  de castelo de areia!  -  respondeu a  nojentinha, como se    pretendesse  proteger-me. Então, pegou seu balde vermelho predileto  e o ofereceu a mim  junto  com  a pá    vermelha e  amarela. Segurei  com  mais  força  o  cabo  do  canivete.  -  Linda  Cindy...  -  cantei  baixinho,  rastejando  para  perto  dela. colocando  no    rosto  um  sorriso  que  lhe  provocou  risadinhas.  -  A  linda  Cindy  quer  brincar  de    salão    de beleza... Ela  bateu  palmas. -  Ohhh!  -  exclamou,encantada.  -  Bom... O  cabelo  louro  em  minha  mão  era  sedoso  e  limpo.  Cindy  riu  quando  lhe  repuxei  o    cabelo  e  soltei  a  fita  do rabo-de-cavalo.
-  Não  vou  machucá-la  -  disse  eu,  mostrando-lhe  meu  canivete  com  cabo  de    madrepérola.  -  Portanto,  não grite...  fique sentadinha no  salão de beleza até  eu    terminar. No  meu  quarto,  encontrei  a  lista  de  palavras  novas.  Tinha  que  aprender  a    pronunciá-las,  treinar  soletrá-las  e usá-las  pelo menos  cinco vezes  no primeiro    dia  -  e dali  por  diante. Precisava conhecer  palavras complicadas, a fim  de    impressionar  as  pessoas e  fazê-las  saberem  que eu era mais  esperto. Intimidar.  Já  aprendi:  significava fazer  as  pessoas  terem  medo da  gente. Finalmente.  Também  já aprendi:  significava que, mais  cedo ou mais  tarde,    minha  vez  chegaria. Sensual. Palavra má. Significava prazer  que a  gente sente ao  tocar  nas    garotas. Era preciso eliminar  as coisas sensuais.Logo  me  cansei  das  palavras  complicadas  que  tinha  de  aprender  para  me  fazer    respeitar.  Cansei-me de fingir ser Malcolm.Todavia, o problema era que eu estava perdendo minha personalidade verdadeira. Agora,  eu  já  não  era  totalmente  Bart.  E  agora  que  me  escapava,  Bart,  de  uma  hora    para    outra,  não  me parecia  tão  estúpido  e  digno  de  piedade  como  eu  julgava  antes.Reli  uma  determinada  página  do  diário  de Malcolm,  quando  ele  tinha    exatamente  a  mesma  idade  que  eu.  Ele  detestava  cabelos  louros  como  os  de  sua mãe  e  sua  filha  -  mas  nem  sonhava  com  sua  pequena  "Corrine"    quando  escreveu:  "Chamava-se  Violet  Blue e  seus  cabelos  me  lembravam  os  de  minha  mãe.    Detestei  seus  cabelos.  Freqüentávamos  a  mesma  escola dominical  e  eu  me  sentava  atrás  dela,  olhando  para  aquele  cabelo    que,  algum  dia,  seduziria  um  homem  e  o induziria  a desejá-la, como  aquele       amante desejara  minha mãe.” "Um  dia,  ela  sorriu  para  mim,  esperando  um  elogio.  Mas  eu  a  enganei,    dizendo  que  seu  cabelo  era  feio. Para  minha surpresa, ela  riu, respondendo:  "Mas  é  da  mesma cor  que o  seu.” "Naquele dia,  raspei  todo o  meu cabelo  -  e, no dia seguinte, agarrei  Violet    Blue  e  a  joguei  ao chão. Quando ela voltou para  casa, chorando,  estava tão careca  quanto  eu". Todo  aquele  lindo  cabelo  louro  de  Cindy  voava  ao  vento.  Ela  chorava  na    cozinha.  Não  porque  eu  a  tivesse machucado  ou  amedrontado.  Foi  o  berro  de  Emma    que  lhe    revelou  que  algo  estava  errado.  Agora,  o  cabelo de Cindy  parecia com  o meu:    curto, arrepiado feio.

OS ESPINHOS DO MAU ( Concluído) Onde histórias criam vida. Descubra agora