Minhas lembranças do sótão.

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Na  enorme  cozinha  da  mansão,  John  Amos  tinha  tudo  sob  controle.  As  criadas  e    o  cozinheiro movimentavam-se  afanosamente. -  Madame  teve  que  partir  mais  cedo  -  disse  ele.  -  Agora,  vocês  devem  arrumar    as  roupas  que  ela  precisará para a  viagem  ao  Havaí. E  depressa. Lottie, quero que  você  leve as  malas  dela ao aeroporto e as    despache no avião.  Não  fique  aí  parada,  olhando  para  mim  com  essa  cara  tão    estúpida.  Não  entende  inglês?  Faça  o  que mando! Rapaz,  ele  sabia  agir  como  malvado,  quando  queria!  Os  criados  correram  como    pássaros  assustados,  cada um  para  seu  lado.  Então,  ficamos  sozinhos  e  ele  olhou    para    mim  com  um  sorriso  que  exibia  a  dentadura quebrada. -  Como foi  o seu lado? Exatamente  como no cinema, ele e  eu. Engoli  através  do nó que me ficara na    garganta  e não  desaparecia. -  Eles não sabem  onde está  Mamãe. Estão preocupados  e não param  de perguntar    onde está  ela. -  Não  lhes  dê  importância  -  replicou  ele  com  sua  esquisita  voz  de  velho,    deixando-me  espantado  por  ter  sido escolhido  por  Deus  para  uma  missão  tão  especial.  -  Cuidarei  de  tudo  até  que  Deus  envie  o  aviso  de    que  sua mãe  e sua avó foram  redimidas  e  salvas  do fogo do  inferno.  Vá para  casa    e    fique calado. O fogo em  minha mente aumentava, tornando-se  mais quente. -  Você  me  disse  que  minha  mãe  seria  minha  lembrança  no  sótão.  E  agora,  nem    mesmo  me  conta  onde  a colocou.  Procurei  no  sótão  e  elas  não  estão  lá.  Diga-me    onde    estão,  ou  voltarei  para  casa  e  contarei  a  meu pai  o que você  fez. -  O  que  eu  fiz?  -  rosnou  ele,  franzindo  desdenhosamente  os  lábios.  -  E  o  que    você  fez,  Bart  Winslow Sheffield.  Imagina,  por  acaso,  que  tendo  uma  estória  psiquiátrica  de  tanta  violência,  acreditarão  em    você  e não o culparão? A lei  o  prenderá, você  será  julgado  culpado  e trancafiado    numa    instituição. Quando ele viu a  ira vermelha de  Malcolm  em  seus olhos, tentou sorrir. -  Vamos,  Bart,  queria  apenas  experimentá-lo,  para  verificar  se  cederia  e    perderia  a  coragem.  Mas  você  é forte e  cheio do  poder  dos  justos, como seu    bisavô Malcolm.    Tem  todo o poder  que ele possuía. E  agora,  chegou  sua  oportunidade  de  usar  esse  poder.  Deste  momento  em  diante,    ficará  encarregado  dos adultos:  sua mãe  e sua  avó. Controlará  a  vida  delas,  dar-lhes-á  de  comer  -  se  quiser  -  ou  as  deixará  morrer    de  fome  -  se  assim  preferir. Contudo,  precisa  ter  cuidado.  Deve  mantê-las  em    segredo    até...  bem,  lembre-se  sempre  de  que  seu  pai  e  seu irmão ficarão desconfiados  e    talvez  o traiam  se  você  lhes  der  a menor  indicação do que pretende  fazer. As  pessoas  sempre  desconfiavam  de  mim.  Se  algo  aparecia  quebrado,  a  culpa    era  sempre  minha.  Se  o  vaso sanitário  se  entupia  e transbordava,  era  porque  eu    usara    papel  higiênico  demais.  Se  Mamãe  perdia  uma  jóia, a culpa também  era minha.    Agora, eu mostraria a  todos o quanto  estavam  errados  por  não gostarem  de mim. -  Pão  e  água  -  declarei.  -  Pão  e  água  serão  o  bastante  para  duas  mulheres    que  foram  infiéis  a  maridos  e filhos. -  Ótimo, ótimo  -  murmurou John Amos. Carregando  uma  pequena  lanterna  elétrica,  John  Amos  conduziu-me  à  estreita    escada  que  levava  ao  porão. Sombras  estranhas  projetavam-se  nas  paredes, o    ambiente    era  frio e  úmido.  Há muito  tempo,  quando aquela casa pertencia a mim e a Jory,  tínhamos descoberto cada nicho lá existente. No porão, entretanto, viviam os fantasmas;    eu  jamais  me  sentira  à  vontade  naquele  local.  Portanto,  mantive-me  colado  aos    calcanhares  de John Amos, aterrorizando-me  quando ele  avançava mais de um  metro à minha  frente. -  Eles procurarão aqui  -  sussurrei,  temendo despertar  coisas que  pudessem    estar  adormecidas. -  Não,  não  procurarão  onde  as  escondi  -  replicou  John  Amos,  com  uma  risada    semelhante  a  um  cacarejo.  - Seu pai  terá  certeza de  que  estão no sótão. E por    que    não?  Seria a  vingança  perfeita. Entretanto,  eles  nunca  encontrarão  a  pequena  jaula  que  os  operários  fizeram    quando  levantaram  uma  nova parede de  tijolos para  reforçar  a  adega. Adega.  Aquilo  não  me  soava  tão  bem  quanto  o  sótão.  Não  me  metia  tanto  medo;    mas,  de  todo  modo,  era muito frio e  escuro  lá embaixo. John  Amos  começou  a  afastar  as  teias  de  aranha,  depois  empurrou  para  os    lados  alguns  móveis  velhos  e, finalmente, chegou a uma porta  de  tábuas, muito    difícil    de  abrir. -  Agora,  vá  espiar  por  aquela  portinhola  na  parte  de  baixo  daquela  porta,    ali  -disse  ele.  -  Tínhamos  uma gatinha  perdida,  que  sua  avó  adotou,  mas    desapareceu    logo  depois  que  você  começou  a  visitar  esta  casa. Sua avó me mandou cortar essa  portinhola na porta maior, de modo que a gatinha pudesse entrar e sair à vontade. Com  a  lanterna  segura  abaixo  do  queixo,  ele  parecia  um  cadáver  exumado.  Eu    não  duvidava  que  ele fechasse a  porta atrás de  mim  e eu jamais conseguiria    passar    pela minúscula portinhola. -  Não. Você entra  na adega primeiro  -  ordenei,  como faria  Malcolm. Ele  ficou  imóvel  por  um  instante.  Então,  olhou-me  demoradamente  antes  de    entrar  vagarosamente  na  adega. Talvez  temesse  que  eu  fechasse  a  porta  às  suas  costas.  Ele  colocou  a  lanterna  numa  das  prateleiras    e começou a puxar  a prateleira dos  fundos, cheia  de velhas  e empoeiradas    garrafas    de vinho. Afinal,  ela  se  abriu  com  um  rangido.  Fedia  lá  dentro.  Tapei  o  nariz  e    olhei.  Depois,  tornei  a  olhar.  John Amos ergueu a  lanterna, a  fim  de que  eu    pudesse  ver    melhor  as  duas  prisioneiras. Oh,  oh!  Mamãe,  Vovó...  como  Mamãe  parecia  digna  de  piedade,  deitada  no    concreto  úmido,  com  a  cabeça apoiada  no  colo  de  Vovó.  Ambas  ergueram  as  mãos,    para  protegerem    os  olhos  contra  a  luz  brilhante  que penetrava  tão  subitamente  em  sua  escura  e  miserável  masmorra.  Estava  tão  escuro  que  eu  mal  conseguia enxergar. -  Quem é?  -  indagou  minha mãe  com  voz  enfraquecida.  -  É  você, Chris? Você    nos encontrou? Minha mãe  estava cega, agora?  Como podia pensar  que John Amos fosse Papai?    Se minha  mãe  ficasse cega, e louca  também, Deus  consideraria  isso castigo suficiente? Minha avó falou: -  John, sei  que  é você. Liberte-nos imediatamente. Está  ouvindo? Solte-nos    imediatamente! John Amos riu. Eu não sabia o que fazer, mas  Malcolm  se  apossou de  meu cérebro  e ordenou: -  Dê-me  a  chave,  John  Amos  -  disse  minha  voz  num  tom  ríspido.  -  Volte  para    cima  e  deixe  que  eu  dê  pão  e água às prisioneiras. Por  que  ele  obedeceu?  Pensava,  realmente,  que  eu  era tão  poderoso  quanto    Malcolm?  Observei-o  até  que ele sumiu  de  vista.  Então,  corri  para  passar  a    tranca  em    outra  porta,  a  fim  de  que  ele  não  pudesse  esgueirar-se às  minhas  costas. Sentindo-me  mais  Malcolm  que  Bart,  avancei  de  gatinhas,  empurrando  à  minha    frente  a  bandeja  de  prata com  meio  pão  grande  e  uma jarra  de  prata  contendo    água.    Não  me  pareceu  estranho  servir  comida  de  prisão numa bandeja  de  prata, pois era    assim  que minha avó sempre fazia  as  coisas:  com  elegância. Agora,  a  porta  grande  estava  fechada.  Parecia  apenas  uma  outra  prateleira    cheia  de  garrafas  de  vinho empoeiradas.  Deitado  de  bruços,  enfiei  os  braços  sob    a    prateleira  inferior  e  abri  a  portinhola,  que  girava para  dentro. Por  que a    gatinha gostava do  fundo,  na parte mais escura? -  Pão e água  -  declarei  num  tom  duro e  lacônico, empurrando depressa  a    bandeja  pela  portinhola. Tornei  a  fechar  a  pequena  porta  e  peguei  um  tijolo  para  calçá-la,  a  fim  de    que  elas  não  me  pudessem  avistar se  a empurrassem. Fiquei  para espioná-las. Escutei  minha mãe  gemer, chamando por  Chris. Então,    ela me surpreendeu: -  Mamãe...  Aonde  foi  Mamãe,  Chris?  Faz  tanto  tempo  que  ela  não  nos  visita...    Meses  e  meses...  Os  gêmeos não crescem... -  Cathy,  Cathy,  minha  pobre  querida,  pare  de  pensar  no  passado  -  disse  minha    avó.  -  Por  favor,  agüente firme.  Coma  e  beba,  para  conservar  as  forças.  Chris  virá  salvar-nos.  -  Cory,  pare  de  tocar  sempre  a  mesma música.  Já  estou  farta  dessa  letra.  Por    que  escreve  músicas  tão  tristes?  A  noite  acabará;  tem  que  acabar. Chris,  por    favor,    diga a  Cory  que o dia logo raiará. Então, ouvi  soluços.  De minha avó? -  Oh,  meu  Deus!  -  exclamou  ela.  -  É  assim  que  acabará?  Será  que  não  consigo    fazer  nada  certo?  Desta  vez, eu  tinha  tanta  certeza  de  que  tudo  acabaria  bem!  Por  favor,  meu  Deus,  não  permita  que  eu  falhe    com  todos eles! Escutei-a  rezar  em  voz  alta.  Rezar  para  que  minha  mãe  melhorasse,  para  que    seu  filho  as  encontrasse  antes que  fosse  tarde  demais.  Repetia  interminavelmente    as    mesmas    palavras,  enquanto  minha  mãe  continuava  a fazer  perguntas tolas. Fiquei  sentado,  escutando,  durante  longo  tempo.  Senti  cãibras  nas  pernas.    Tornei-me  velho  e  cansado  por dentro, como se  estivesse   trancado  lá dentro, com    elas,    maluco, faminto, sofrendo, morrendo. -  Vou-me embora  -  murmurei.  -  Não gosto deste  lugar. Estava  escuro.  Ninguém  em  casa.  Agora,  eu  podia  correr  à  geladeira  e  roubar    comida.  Estava  enfiando  na boca  outra fatia de  presunto, quando  Madame Marisha  abriu a porta da  garagem  e  entrou na  cozinha. -  Boa-noite, Bart  -  disse ela.  -  Onde estão seu pai  e  Jory?   Sacudi  os ombros. Ninguém  me  contava nada. Não sabia por que Papai e Jory  sairiam, deixando Cindy sozinha comigo. Então, Emma gritou de outro lugar da casa. -  Olá,  Madame  Marisha.  O  Dr.  Sheffield  avisou-me  de  que  a  senhora  chegaria  a    qualquer  momento.  Sinto muito  que  a  senhora  tenha  tamanho  incômodo.  Logo  que  fui    informada  do  desaparecimento  de  Cathy,  não consegui  ficar  fora  de  casa.  Tenho    que  saber  o  que  aconteceu  com  ela.  Estava  tão  doente,  tão  febril,  que  eu não deveria sair    e deixá-la sozinha. Então, Emma  me avistou. -  Bart!  Seu  garotinho  malvado!  Como  se  atreve  a aumentar  as  preocupações  de    seu  pai,  sumindo  também?  É um menino mau e  sou capaz  de apostar  que sabe  alguma    coisa    sobre  o paradeiro de sua mãe! As  duas  velhas  me  olhavam  raivosamente.  Odiavam-me  com  seus  olhos  malvados.    Fugi,  sabendo  que  logo iria chorar e que não podia permitir que me vissem chorando - agora que precisava agir exatamente como Malcolm:  o desalmado. A BUSCA A noite não era propícia a  homens  ou animais. Chovia  -  como quando Noé    construíra a  arca. O  vento gritava e uivava, tentando dizer-nos alguma coisa, como música selvagem que nos destruiria o cérebro. Acompanhei  o  passo  de  Papai,  o  que  não  era  fácil,  pois  eu  ainda  não  tinha  pernas  tão  compridas  quanto  as dele.  As  mãos  de  Papai    comprimiam-se  em  punhos  cerrados.  Cerrei  também  os  meus,  pronto  a  lutar  ao  lado dele se houvesse necessidade.- Jory - disse Papai, sem diminuir o passo. - Com que freqüência Bart vem aqui? A  essa  altura,  chegamos  aos  portões  de  ferro  e  ele  se  curvou  para  falar  na    caixinha  que  levaria  sua  voz  ao interior  da casa. -  Não  sei  -  repliquei,  infeliz.  -  Bart  costumava  confiar  em  mim,  mas  agora    não confia  em  ninguém.  Portanto, não  me  conta  mais  o  que  faz.         Devagar,  muito  devagar,  os  portões  se  abriram.  Pareciam  esqueletos  de mãos    negras,  acolhendo-nos  em  nossas  sepulturas.  Estremeci,  refletindo  que  me  estava    tornando    tão mórbido quanto Bart.  Tive que  correr  para  acompanhar  Papai. -  Preciso  dizer  uma  coisa  -  gritei,  a  fim  de  fazer-me  ouvir  acima  do  barulho    do  vento.  -  Logo  que  descobri que  você  era  irmão  de  Mamãe  e  nosso  tio,  pensei  que  o  odiava  -  e  a  ela,  também.  Pensei  que    jamais conseguiria  perdoar  qualquer  um  dos  dois  por  me  envergonharem  e  desapontarem  tanto.  Pensei  que  secaria por  dentro  e  nunca    mais  amaria  ou  confiaria  em  ninguém.  Mas  agora,  que  Mamãe  desapareceu,  compreendo que sempre amarei  vocês dois.  Mesmo que    deseje, não consigo detestá-los. No  escuro,  sob a  chuva  fustigante,  ele se  virou  para  estreitar-me  contra  o    peito,  e a  mão  comprimindo  minha cabeça sobre o  coração. Creio que o escutei    soluçar. -  Jory,  você  não  imagina  o  quanto  desejei  ouvi-lo  dizer  que  não  me  odeia,    nem  a  sua  mãe.  Sempre  esperei que  você  entendesse,  quando  lhe  contássemos.  E    íamos    realmente  contar-lhe,  quando  você  fosse  mais velho.  Julgamos,  talvez  tolamente,    que  deveríamos  aguardar  mais  alguns  anos.  Agora,  porém,  que  você descobriu    sozinho,    e  ainda  é capaz  de amar-nos, talvez  consiga entender  mais tarde. Aproximei-me  mais de  Papai  e seguimos em  direção à  sombria mansão. Eu sentia    que se criara entre nós  um laço  mais  forte  que  antes.  Sob  certo  aspecto,  ele    passara    a  ser  mais  meu  pai,  pois  tinha  muito  do  sangue  que me  corria  nas  veias.  Sangue    do  meu  sangue,  pensei,  meu  tio  e  tio  de  Bart,  embora  eu  sempre  pensasse  que ele  era  tio  de  Bart    e  isso  me  causasse  um  pouco  de  ciúme.  Agora,  eu  sabia  que  ele  era  meu  tio    também.
Contudo,  por  que  não  haviam  percebido  que  eu  era  maduro  para  minha  idade  e  teria    compreendido  quando me contassem  que Mamãe  tivera um  caso com  o pai  de  Bart...    Teria...    creio. Chegamos  aos  degraus.  Antes  que  Papai  pudesse  bater  com  a  aldrava,  a  parte    esquerda  da  porta  dupla  se abriu e  lá estava o mordomo,  John Amos  Jackson. -  Estou  arrumando  as  malas  -  disse  ele  à  guisa  de  recepção,  com  uma  feia    carranca.  -  Minha  mulher  partiu para  o  Havaí.  Tenho  um  milhão  de  coisas  para    fazer,    sem  ter  que  entreter  visitantes.  Pretendo  juntar-me  a ela  tão  logo terminar  o    que  preciso  fazer  aqui. -  Sua  mulher!  -  berrou Papai, com  um  espanto tão óbvio que também  me chocou. Um brilho de  satisfação passou pelos olhos do mordomo. -  Sim, Dr. Christopher  Sheffield, a  Sra.  Winslow  está atualmente casada    comigo. Pensei  que Papai  fosse  cair  com  o choque. -  Quero falar  com  ela. E  não acredito em  você. Ela  teria que  ficar  louca    para  se  casar  com  você. -  Eu  não  minto  -  replicou  o  feio  e  sinistro  mordomo.  -  E  ela  está  louca.    Algumas  mulheres  não  podem  viver sem  homem  que cuide de  seus  negócios. E  é    exatamente    isso que  eu sou:  um  apoio para  ela. -  Não acredito!  -  esbravejou Papai.  -  Onde está  ela?  E  onde está minha    esposa?  Você  a viu? O mordomo sorriu. -  Sua  esposa,  Doutor?  Já  tenho  bastante  trabalho  para  cuidar  da  minha,  sem    me  preocupar  com  a  sua. Ontem,  minha  esposa  ficou  irritada  com  este  clima    horrível    e  partiu  com  uma  das  criadas.  Disse  que  eu deveria  juntar-me  a  ela    posteriormente,  depois  que  providenciasse  o  fechamento  desta  casa.  Depois  de    todo o trabalho e    despesa  que  teve para mandar  reformar  e  redecorar  a mansão, quer  mudar-se  daqui. Papai  permaneceu  imóvel,  encarando  John  Amos  Jackson.  Julguei  que  fôssemos    embora,  então,  mas  Papai parecia  pregado  ao chão. -  Sabe  quem  eu  sou,  não  sabe,  John?  Não  negue.  Estou  vendo  em  seus  olhos.    Você  é  o  mordomo  que  fez amor  com  a copeira Livvie, enquanto eu  estava deitado    no chão,    atrás  do sofá, e  escutei  você  falar  com  ela  a respeito do  arsênico nas    rosquinhas  destinadas  a matar  os camundongos do sótão. -  Não sei  do  que  está falando  -  negou o mordomo, enquanto  eu olhava dele    para Papai  e vice-versa. Oh, eu deveria ter  lido  cada  página dos  originais  do livro de  Mamãe. As    coisas  eram  ainda mais complicadas do que eu imaginara. -  John,  talvez  você  se  tenha  casado  com  minha  mãe,  mas  talvez  esteja    mentindo.  Não  obstante,  creio  que sabe o  que  aconteceu  à  minha  mulher  e, agora,    estou  preocupado    também  com  minha  mãe.  Portanto,  saia  de meu caminho. Vou revistar  essa  casa do    telhado  aos  alicerces. o mordomo empalideceu. -  Não pode  entrar  aqui  e me dizer  o que devo fazer  -  murmurou    indistintamente.  -  Posso chamar  a polícia... -  Mas  não  chamará.  E,  se  quiser  chamar,  vá  em  frente  e  chame.  Vou  revistar  a    casa  agora,  John.  Você  nada pode fazer  para me  impedir. O velho mordomo se  afastou arrastando  os pés  e  sacudindo os ombros num  gesto    de impotência. Juntos,  Papai  e  eu  demos  a  busca  na  casa.  Eu  conhecia  a  mansão  muito  melhor    que  ele,  todos  os  armários embutidos,  todos  os  nichos,  todos  os  lugares    secretos.    Papai  insistia  em  afirmar  que  elas  estariam  no  sótão. Mas quando  subimos até  lá  e procuramos, só  encontramos coisas velhas  e    empoeiradas. Retornamos  à  sala  onde  a  mulher  que  ele  chamava  de  mãe  tinha  a  dura  cadeira    de  balanço.  Sentei-me  nela  e verifiquei  que  era  bastante  confortável.  Papai  andava  nervosamente  pela  sala.  Então,  parou  no  arco  que  dava para  a sala vizinha, na qual  estava pendurado o  enorme retrato    a  óleo. -  Se Cathy  veio aqui, deve ter  visto esse  quadro. E poderia ter  vindo,  se    Bart  lhe  dissesse  alguma coisa. Balançando-me  na  cadeira,  fi-la..  "andar"  para  um  pouco  mais  perto  do  fogo    que  morria  na  lareira.  Algo estalou  sob  um  dos  pés  da  cadeira  de  balanço.  Papai    escutou    o  ruído  e  se  abaixou  para  apanhar  um  objeto. Era uma pérola.Ele atestou  com  os dentes e  sorriu  amargamente. -  Minha  mãe  possuía  um  colar  de  pérolas  com  o  fecho  de  brilhantes,  em  forma    de  borboleta.  Usava-o sempre, assim como nossa avó sempre usava o broche de brilhantes. Não acredito que minha mãe fosse a algum  lugar  sem  aquelas  pérolas. Mais  uma  hora  de  busca  pela  casa  e  de  interrogar  a  copeira  e  o  cozinheiro    mexicanos,  que  não  entendiam direito inglês, e  tanto eu como Papai  ficamos    frustrados. -  Eu  voltarei,  John  Amos  Jackson  -  disse  Papai,  ao  abrir  a  porta  da  frente.    -  E,  da  próxima  vez,  trarei  a polícia. -  Como quiser, Doutor-  replicou o mordomo, com  um  sorriso  tenso e  malicioso. -  Papai, não podemos notificar  a  polícia...  podemos?
-  Notificaremos,  se  for  necessário.  Mas  vamos  esperar  ao  menos  até  amanhã.    Ele  não  ousaria  fazer  mal  a Cathy  ou à minha mãe,  pois  acabaria atrás  das grades. -  Papai, aposto que  Bart  sabe o que  está acontecendo. Ele e  John Amos são    muito  amigos. Então,  expliquei  como  Bart  sempre  falava  consigo  mesmo  quando  julgava  estar    sozinho.  Falava  dormindo, também, e quando brincava de  faz-de-conta. Eu tinha a    impressão    de que  a parte  mais importante da  vida de Bart  era  passada  em  solidão, falando  consigo    mesmo. -  Muito  bem,  Jory,  entendo  o  que  você  está  querendo dizer. Tenho  uma  idéia  e    espero  que  dê  resultado.  Este talvez  seja  o  papel  mais  importante  que  você  já    representou;    portanto,  preste  atenção.  Amanhã  de  manhã, você  apenas  fingirá  que  vai  à  escola.    Deixa-lo-ei  saltar  do  carro  logo  que  fizermos  a  curva  na  estrada.  Corra de  volta  para  casa,  certificando-se  de  que  Bart  não  veja.  Tentarei  descobrir  se    minha  mãe  realmente  partiu para  o Havaí  e está mesmo  casada com  aquele velho  horrível.

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