- Jory - chamou Mamãe, aliviada quando me viu entrar. - Graças a Deus você voltou. Gostou do almoço? Claro, respondi, ótimo almoço; e ela não deu muita atenção quando não entrei em detalhes, pois estava por demais ocupada com os preparativos de última hora. Era assim que acontecia nos dias de espetáculo: aula de manhã, ensaio à tarde e espetáculo à noite. Correria, correria, correria, fazendo de conta o tempo todo que o mundo cessaria de girar se a gente não se apresentasse no palco com o máximo de nossa capacidade. Quando, na verdade, o mundo não parava de girar... - Sabe, Jory - tagarelou Mamãe, muito feliz, no camarim que compartilhávamos - ela falava de trás de um biombo e não nos víamos -, o balé sempre me emocionou, durante toda a minha vida. Mas esta noite será a mais grandiosa de todas, porque dançarei com meu próprio filho! Sei que você e eu já dançamos juntos muitas vezes, mas esta noite é especial. Agora, você é suficientemente bom para apresentar-se num solo. Por favor, por favor, esforce- se ao máximo para que Julian, lá no céu, possa orgulhar-se de seu único filho. Claro que me esforçaria ao máximo; sempre me esforçava. As gambiarras se acenderam, a overture terminou, o pano subiu. Houve um momento de silêncio antes do início da música do primeiro ato. Era o nosso tipo de música - de Mamãe e meu -, levando-nos ao mundo encantado onde tudo podia acontecer, até mesmo finais felizes. - Mamãe, você está maravilhosa... mais linda que qualquer das outras bailarinas! E era verdade. Ela riu, alegre, replicando que eu certamente sabia como agradar as mulheres e, se continuasse assim, acabaria sendo o Don Juan do século vinte. - Agora, Jory, ouça a música com atenção. Não se absorva na contagem a ponto de esquecer a música. É a melhor maneira de captar a magia: sentir a música! Eu estava tão tenso que me sentia prestes a estourar. - Mamãe, espero que o pai que eu mais amo esteja sentado no centro da primeira fila. Foi então que ela correu para um ponto de onde podia ver a platéia. Em determinados lugares, as gambiarras não me feriam os olhos. - Eles não estão lá - disse ela, desalentada. - Nem Bart... Não houve tempo para responder. Ouvi minha deixa musical e entrei dançando no palco com o resto do corpo de baile. Tudo corria perfeitamente, com Mamãe na sacada, fazendo o papel da linda boneca Copélia, parecendo bastante real para inspirar amor à distância. Todavia, quando o primeiro ato terminou, ela ofegava, sem fôlego. Não contara a Papai que dançaria também o papel da moça da aldeia, Swanhilda, que amava Franze apesar dele se apaixonar bobamente por uma boneca mecânica. Dois papéis para Mamãe - papéis difíceis, pois ela os coreografara. Papai certamente a proibiria de dançar se conhecesse toda a verdade sobre a última dança de mamãe. Teria eu cometido um erro ao contribuir para enganá-lo? - Mamãe, como está seu joelho? - perguntei quando a vi fazer uma ou duas caretas de dor durante o intervalo entre os atos. - Jory, meu joelho está ótimo! - replicou ela com aspereza, tentando mais uma vez avistar Papai e Bart em suas poltronas. - Por que não vieram? Se Chris não aparecer para me assistir dançar pela última vez, jamais o perdoarei! Vi Papai e Bart logo antes do início do segundo ato. Estavam na segunda fila e percebi que Bart fora trazido à força. Seu lábio inferior projetava-se numa careta de amuo e ele fitava raivosamente a cortina que subiria para revelar beleza e graça. Então, ele ficaria ainda mais carrancudo. Beleza e graça não iluminavam a vida de Bart como iluminavam a minha. Hora do terceiro ato. Mamãe e eu dançamos juntos, bonecos movidos a corda, acionados por enormes chaves que nos saíam às costas.Começamos rigidamente, movimentando as juntas emperradas. O enorme salão onde o Dr. Copélius guardava suas invenções era misteriosamente obscuro, tornado ainda mais dramático por lâmpadas azuis. Notei que Mamãe estava em dificuldades, mas, mesmo assim, não perdeu um único passo enquanto acompanhamos o ritmo da música e ligamos todos os outros bonecos mecânicos, que se movimentaram e começaram a dançar conosco. - Você está bem, Mamãe? - indaguei num sussurro, quando ficamos bastante próximos um do outro. - Claro - disse ela, ainda sorrindo. Não parava de sorrir, pois, supostamente, o sorriso era pintado na cara da boneca. Temi por ela, mesmo enquanto lhe admirava a coragem. Sabia que, na platéia, Bart nos observava, julgandonos estúpidos e idiotas, sentindo ciúmes de nossa graça e agilidade. De repente, percebi, pelo sorriso tenso de Mamãe, que ela sentia uma dor terrível. Tentei dançar mais perto dela, mas um dos bonecos vestidos de palhaço me atrapalhava o caminho. Ia acontecer. Eu sabia que ia acontecer exatamente o que Papai temia.Em seguida, viria uma série de piruetas que levariam Mamãe a descrever um círculo em torno do palco. Para fazer tais piruetas, ela precisava conhecer a localização exata de todos os bailarinos e, também, dos adereços do cenário. Quando ela girou perto de mim, estendi a mão para ajudá-la a manter o equilíbrio antes de prosseguir nas piruetas. Oh, Deus, eu nem tinha coragem de olhar! Então, vi que ela conseguiria; com dor ou sem dor, ela dançaria sem cair. Alegre, agora, dei um grande salto e caí sobre um joelho, propondo casamento à boneca de meus sonhos. Então, meu coração quase parou. Uma das fitas de sua sapatilha se soltara! - Suas fitas, Mamãe - cuidado com a fita do pé esquerdo! Gritei acima da música, mas ela não me escutou. Outra bailarina pisou na fita. Mamãe perdeu o equilíbrio. Estendeu os braços para firmar-se e talvez tivesse conseguido - mas vi o sorriso transformar-se num mudo grito de dor quando o joelho cedeu e ela caiu. Bem no centro do palco. Pessoas gritavam na platéia. Algumas se levantavam para verem melhor. Nós, no palco, continuamos dançando enquanto o contra-regra entrou e carregou Mamãe para os bastidores. Sua substituta entrou em cena e o balé continuou. Quando o pano baixou pela última vez, não esperei para receber os aplausos. Corri para perto de minha mãe. Invadido por um medo horrível, aproximei-me do local onde Papai a carregava nos braços, enquanto os homens da ambulância, uniformizados de branco, apalpavam as pernas de Mamãe para verificar se uma delas, ou ambas, estavam quebradas. - Dancei bem, Chris? - perguntava ela, embora a dor lhe tornasse o rosto muito pálido. - Não estraguei o espetáculo, estraguei? Viu Jory e eu fazermos nosso pas de deux? - Sim, sim - respondia ele, beijando-lhe o rosto e parecendo muito carinhoso ao ajudar a colocá-la numa maca. - Você e Jory estiveram magníficos. Nunca vi você dançar melhor... e Jory foi brilhante. - E, desta vez, não precisei sangrar pernas abaixo - sussurrou ela, fechando os olhos com ar fatigado. - Tive apenas que quebrar uma perna...O que ela disse não fazia muito sentido para mim. Voltei meus pensamentos para a expressão no rosto de Bart ao fitá-la. Parecia estar satisfeito, quase zombeteiro. Estaria eu sendo injusto para com ele? Ou seria culpa o que eu lhe via nos olhos? Solucei enquanto Mamãe foi levada na maca e colocada na ambulância que os conduziria - ela e papai - ao hospital. O pai de Melodie prometeu deixar-me no hospital e depois levar Bart para casa em segurança. - Apesar de ter certeza de que Melodie preferiria que Jory fosse para casa e Bart insistisse em ficar com a mãe no hospital.
Muito mais tarde, Mamãe acordou dos sedativos que lhe haviam ministrado e olhou para as flores que enchiam o quarto. - Ora, parece um jardim - comentou. Sorriu debilmente para Papai, estendendo os braços para ele e depois, para mim. - Chris, sei que você vai dizer que me preveniu. Mas dancei bem até cair, não foi? - Por causa da fita da sapatilha - declarei, ansioso por protegê-la da raiva de Papai. - Se não houvesse soltado, você não cairia. - Minha perna não está quebrada, está? - perguntou ela a papai. - Não querida, apenas alguns ligamentos rompidos e cartilagens partidas, que foram consertadas durante a operação. Então, Papai se sentou na beira da cama e forneceu todos os detalhes da contusão, que não era tão insignificante quanto ela queria acreditar. Mamãe refletiu em voz alta: - Não consigo entender, realmente, como aquela fita se soltou. Sempre costuro pessoalmente as fitas, com todo cuidado, sem confiar em ninguém... Fez uma pausa, fitando o espaço. - Onde sente dor, agora? - Em lugar nenhum - replicou ela num tom ríspido, como se aborrecida. - Onde está Bart? Por que não veio com vocês? - Você sabe onde está Bart. Detesta hospitais e gente doente, tanto quanto detesta tudo o mais. Emma está tomando conta dele e de Cindy. Mas queremos que você volte logo para casa. Portanto, faça o que o médico e as enfermeiras mandarem - e não seja tão malditamente teimosa a ponto de não escutar nem obedecer. - O que há de errado comigo? - perguntou ela, alertando-se, como eu. Empertiguei-me na cadeira, pressentindo que algo estava por desabar sobre nós. - Seu joelho está em péssimo estado, Cathy. Sem entrarmos em detalhes específicos, você terá que usar uma cadeira de rodas até que alguns ligamentos rompidos cicatrizem. - Uma cadeira de rodas? Parecendo atordoada, ela disse aquilo como se estivesse mencionando a cadeira elétrica. - O que há realmente de errado? Você está omitindo alguma coisa. Tenta proteger-me! - Quando os médicos tiverem certeza, você saberá. Mas uma coisa é certa: nunca mais poderá dançar. E eles também disseram que nem mesmo pode fazer demonstrações para os alunos. Nenhum tipo de dança, nem mesmo valsa. Ele falou em tom firme, mas com os olhos cheios de compaixão e sofrimento. Ela pareceu atônita, não acreditando que uma queda tão insignificante pudesse causar danos tão graves. - Nenhuma dança...? Absolutamente nenhuma? - Absolutamente nenhuma - repetiu Papai. - Sinto muito, Cathy, mas eu a preveni. Relembre e conte as vezes em que caiu e machucou esse joelho. Quanto dano você julga que ele seja capaz de suportar? Até mesmo andar não será tão fácil para você como era antes. Portanto trate de chorar agora. Desabafe logo de uma vez. Ela chorou nos braços dele e, eu sentado na cadeira, solucei por dentro, sentindo-me tão desolado quanto se fosse eu quem perdesse o uso das pernas para dançar. - Tudo bem, Jory - disse ela, após enxugar as lágrimas e exibir um sorriso trêmulo. - Se eu não puder dançar, arranjarei algo melhor para fazer - embora só Deus saiba o que seja. OUTRA AVÓ Dentro de poucos dias, Mamãe se sentia muito melhor. Foi então que Papai levou para o hospital uma máquina de escrever portátil, uma grossa pilha de papel amarelo tamanho ofício e outros objetos para escrita. Arrumou tudo na mesinha que podia ser rolada acima da cama de Mamãe e mostrou um de seus largos e encantadores sorrisos. - É uma ótima ocasião para você terminar aquele livro que começou há tanto tempo, - disse ele. - Consulte seus diários e bote tudo pra fora. Ao diabo com quem possa ofender-se! Magoe todos eles como foi magoada, como eu fui magoado. Dê também algumas facadas por Cory e Carrie. E, já que está com a mão na massa, acrescente alguns murros por mim, Jory e Bart, pois eles também foram afetados. De que falava ele? Fitaram-se por longo tempo. Depois, com ar infeliz, ela tomou das mãos dele um velho diário. Abriu-o e eu pude ver a caligrafia grande, feminina, juvenil. - Não sei se devo - murmurou com estranha expressão no olhar. - Seria como reviver aquilo tudo. Todo o sofrimento voltaria.
Papai sacudiu a cabeça. - Cathy, faça o que achar que deve fazer. Em primeiro lugar, deve ter existido um bom motivo para você escrever esses diários. Quem sabe? Talvez você esteja a caminho de uma nova carreira, mais gratificante que a primeira. Não me parecia possível que escrever fosse capaz de substituir o balé. Todavia, quando fui visitar Mamãe no hospital, no dia seguinte, ela estava escrevendo como louca. Percebi-lhe no rosto uma estranha expressão de concentração e, de certo modo, senti inveja. - Mais quanto tempo? - perguntou ela a Papai, que me levara até lá. Estávamos todos à espera, Emma com Cindy no colo e eu segurando com força a mão de Bart. Papai ergueu Mamãe do banco dianteiro do carro e a colocou na cadeira de rodas dobrável que ele alugara. Bart olhava com repulsa para a cadeira de rodas e Cindy Chamava: "Mamãe, Mamãe!", pouco se importando com a maneira pela qual Mamãe retornasse, desde que voltasse para casa. Bart, porém, manteve-se afastado, mirando Mamãe de cima abaixo, como se fitasse uma desconhecida com a qual antipatizava. Depois, Bart girou nos calcanhares e se encaminhou para casa. Nem mesmo disse "alô" a Mamãe. Uma expressão de mágoa passou pelo semblante de Mamãe e ela chamou: - Bart! Não vá embora antes de eu ter uma oportunidade para dizer alô. Não está satisfeito por ver-me? Não imagina o quanto senti sua falta. Sei que não gosta de hospitais; mesmo assim, gostaria que você tivesse ido até lá. Sei, também, que você não gosta desta cadeira, mas não a usarei para sempre. Uma senhora na aula de fisioterapia mostrou-me o quanto é possível a gente fazer sentada neste tipo de cadeira... Interrompeu-se porque o olhar sombrio e duro de Bart não a encorajava a prosseguir. - Você parece engraçada, nessa cadeira - disse ele, com a testa franzida. - Não gosto de você nessa cadeira! Mamãe riu, nervosa. - Bem, para falar a verdade, também não é o meu trono predileto, mas lembre- se de que não fará parte permanente de minha vida; só até meu joelho ficar bom. Venha, Bart, seja amistoso com sua mãe. Eu o perdôo por não me visitar no hospital, mas não o perdoarei se não me mostrar um pouco de afeição. Ainda carrancudo, Bart recuou quando ela rolou a cadeira na direção dele. - Não! Não me toque! - exclamou ele, em voz muito alta. - Não precisava dançar e cair! Caiu porque não queria voltar para casa e ver-me outra vez! Odeia-me porque cortei o cabelo de Cindy! E agora quer castigar-me, ficando sentada nessa cadeira quando não tem necessidade disso! Virando-se, correu para o quintal, usando o caminho de pedras. Logo tropeçou e caiu. Levantando-se, continuou a correr, esbarrando numa árvore e soltando um grito. Pude ver que seu nariz sangrava. Puxa, que sujeitinho desajeitado! Papai ignorou a rebelião de Bart e empurrou Mamãe para dentro de casa, com Cindy deleitada por viajar no colo dela. - Não se preocupe com Bart... ele voltará, arrependido... sentiu muito sua falta, Cathy. Ouvi-o chorar de noite. E o novo psiquiatra, Dr. Hermes, acha que ele está melhorando, desabafando parte da hostilidade. Mamãe ficou calada, passando a mão nos cabelos curtos e macios de Cindy, que mais parecia um menino naquele macacão, embora Emma tivesse atado um laço de fita num curto tufo de seus cabelos. Creio que Papai contara a Mamãe o que Bart fizera a Cindy, pois ela não fez perguntas a respeito. Mais tarde, quando Bart já estava deitado, corri para apanhar um livro que esquecera na sala de estar íntima e escutei a voz de Mamãe vindo do quarto "dela". - Chris, o que farei em relação a Bart? Tentei mostrar-lhe amor e carinho, mas ele me rejeitou. E veja o que fez a Cindy, uma criança indefesa, que acha que ninguém será capaz de lhe fazer mal. Você deu uma surra nele? Fez alguma coisa para castigá-lo? Ele demonstra respeIto para com algum de nós? Algumas semanas no sótão, talvez lhe ensinassem algo a respeito de obediência. Ouvir Mamãe falar daquele modo deixou-me deprimido. Tão triste que fui obrigado a afastar-me depressa e jogar-me na cama, fitando as paredes com os pôsteres de Julian Marquet dançando com Catherine Dahl. Não era a primeira vez que eu tentava imaginar como teria sido realmente meu verdadeiro pai. Amara muito minha mãe? E ela o amara? Minha vida teria sido mais feliz se ele não morresse antes de eu nascer? Então, houve Papai Paul, que veio depois daquele homem alto com cabelos e olhos escuros. Seria Bart realmente filho do Dr. Paul, ou...? Nem pude completar a pergunta, sentindo-me desleal por alimentar dúvidas.Fechei os olhos, sentindo uma assustadora tensão na atmosfera que me cercava, como se uma espada invisível pairasse sobre nós, pronta para ceifar-nos todos. No início da noite seguinte, encurralei Papai em seu escritório e desabafei tudo o que vinha contendo até aquele momento.
- Papai você tem que fazer algo a respeito de Bart. Ele me causa medo. Não sei como podemos continuar vivendo com ele dentro de casa, pois tudo indica que está ficando louco - se já não enlouqueceu. Papai baixou a cabeça, apoiando-a nas mãos. - Não sei o que fazer, Jory. Sua mãe morreria se tivéssemos que mandar Bart para longe. Você nem imagina o quanto ela já suportou. Não creio que possa agüentar muito mais... a perda de outra criança a destruiria. - Nós a salvaremos! - exclamei ardorosamente. - Mas temos que evitar que Bart visite aquelas pessoas na casa vizinha, que lhe contam mentiras. Ele vive lá o tempo todo, Papai; aquela velha o pega no colo e conta-lhe estórias que o fazem voltar para casa com um comportamento esquisito, como se fosse um velho, como se odiasse as mulheres. Tudo é culpa dela, Papai, daquela mulher de preto. Quando a velha deixar Bart em paz, ele voltará a ser o que era antes de conhecê-la. Papai me fitou da maneira mais estranha, como se algo em minhas palavras tivesse acionado novas idéias em sua mente. Como sempre, ele precisava sair, visitar pacientes; desta vez, porém, telefonou para o hospital e informou que tinha uma emergência em casa. E tinha mesmo, podem apostar! Eu olhava freqüentemente para o terceiro marido de minha mãe e desejava que ele fosse meu verdadeiro pai, mas no momento em que ele cancelou todos os seus compromissos, a fim de salvar Bart e Mamãe -, compreendi que, sob todos os aspectos que realmente importavam, ele era meu pai de verdade. Naquela noite, pouco depois do jantar, Mamãe foi para o quarto, trabalhar em seu livro. Cindy estava deitada e Bart se achava no quintal. Papai e eu vestimos pesados suéteres e nos esgueiramos furtivamente pela porta da frente.A noite estava escura de nevoeiro, fria de umidade, quando caminhamos, lado a lado, em direção à enorme e sombria mansão com impressionantes portões de ferro pintados de preto. - Sou o Dr. Christopher Sheffield - disse Papai junto à caixinha negra embutida no pilar dos portões. - Quero falar com a dona da casa. Enquanto os portões se abriam silenciosamente, ele me perguntou por que eu nunca descobrira o nome da mulher. Dei de ombros, como se ela não tivesse nome e, no que me dizia respeito, não precisasse de um. Bart jamais a chamara de outra maneira senão de "Vovó". À porta principal, Papai bateu com a aldrava de bronze. Finalmente, escutamos o ruído de passos arrastados e John Amos Jackson nos abriu a porta. - Senhoras idosas se cansam com facilidade - disse John Amos Jackson, o rosto fino, comprido, esquelético, os olhos encovados, as mãos trêmulas, as costas magras arqueadas. - Não digam nada para perturbá-la. Percebi a maneira como Papai o fitava, carrancudo e perplexo. O mordomo calvo afastou-se arrastando os pés, deixando-nos entrar numa sala cuja porta ele abrira. A velha de negro estava sentada na cadeira de balanço. - Desculpe-me incomodá-la - disse Papai, olhando-a com grande atenção. - Meu nome é Dr. Christopher Sheffield e moro na casa ao lado. Este é meu filho mais velho, Jory, que a senhora já conhece. A velha parecia excitada e nervosa ao gesticular para que entrássemos, indicando as cadeiras que devíamos usar. Sentamo-nos na beirada das poltronas, não tencionando permanecer por muito tempo. Passaram-se segundos que mais pareceram horas, antes que Papai se inclinasse para dizer: - A senhora possui uma bela casa. Tornou a olhar em volta, vendo as poltronas elegantes e todos os outros móveis finos, olhando também para os quadros. - Tenho a mais estranha sensação de dejà vu - murmurou consigo mesmo. A cabeça velada da mulher se inclinou profundamente. Suas mãos se abriram de modo expansivo, suplicantes, dando a impressão de implorarem que ele compreendesse o seu silêncio. Eu sabia que ela falava perfeitamente o inglês. Por que fingia? Excetuando aquelas mãos aristocráticas com tantos anéis cintilantes, a velha permaneceu absolutamente imóvel. Mas as mãos nervosas torciam o colar de pérolas que eu sabia que ela usava sob o manto negro. Papai lhe lançou um olhar penetrante e ela se apressou em sentar sobre as mãos. - Não fala inglês? - indagou Papai em voz tensa. Ela meneou vigorosamente a cabeça, indicando que podia entender inglês. Papai franziu a testa. Parecia intrigado, outra vez. - Bem, para abordarmos o motivo de nossa visita, meu filho Jory disse-me que a senhora e Bart, meu filho caçula, se conhecem muito bem. Jory informou que a senhora dá a Bart presentes caros e o faz comer doces entre as refeições. Sinto muito, Sra.... Sra....? Fez uma pausa, esperando que ela dissesse o nome. Quando isso não aconteceu, prosseguiu: - Quando Bart vier aqui outra vez, quero que a senhora o mande de volta para casa e não lhe dê coisa alguma. Ele cometeu uma série de coisas feias, que merecem castigo. A mãe dele e eu não podemos admitir que uma pessoa desconhecida se interponha entre Bart e nossa autoridade sobre ele. Quando a senhora lhe faz as vontades aqui, nós sofremos as conseqüências. Durante todo esse tempo, Papai se esforçava por ver as mãos da velha - que fazia igual esforço para mantêlas escondidas. O que se passava, afinal? Por que Papai desejava ver as mãos dela? Estaria fascinado por todos aqueles anéis fabulosos? Eu nunca imaginara que ele gostasse de coisas assim, pois Mamãe tinha aversão por qualquer tipo de jóias, à exceção de brincos. Então, quando Papai parecia observar outra das telas a óleo, as mãos da velha tornaram a aparecer, subindolhe ao pescoço, atraídas pelo colar de pérolas, que parecia agir sobre elas como um imã. Papai virou repentinamente a cabeça. Falou fora de propósito, assustando a velha - e a mim, também. - Esses anéis que a senhora está usando... eu já os vi antes! Quando ela, de modo por demais evidente, ocultou as mãos nas mangas largas do vestido, Papai ergueu-se de um salto, como se atingido por um raio. Olhou para ela, girou mais uma vez para observar a suntuosa sala e voltou a encará-la. Seus olhos pareciam trespassá-la. Ela se encolheu. - O... melhor... que... se... pode... comprar... com... dinheiro... - disse Papai, pausadamente, separando cada palavra. Percebi sua amargura, embora não conseguisse entendê-la. Tive a impressão de que, ultimamente, eu não conseguia entender nada. - Nada é bom demais para a elegante e aristocrática Sra Bartholomew Winslow - disse ele. - Esses anéis, Sra. Winslow... por que não teve o bom senso de escondê-los? Então, talvez seu disfarce desse resultado, embora eu não acredite. Conheço bem demais sua voz e seus gestos. Usa trapos negros, mas seus dedos brilham com os seus símbolos de status. Esquece-se do que esses símbolos nos causaram? Acredita que eu tenha esquecido aqueles dias intermináveis de sofrimento com o frio ou o calor, com a solidão - toda a nossa dor simbolizada por um colar de pérolas e esses anéis nos seus dedos? Fiquei chocado e confuso. Nunca antes vira Papai tão perturbado. Não se deixava provocar com facilidade. E quem era aquela mulher que ele conhecia e eu não? Por que a chamara de Sra. Bartholomew Winslow - o exato nome de meu meio-irmão? Seria verdade que a velha era mesmo avó de Bart -e que Bart não era filho de Papai Paul? Papai continuou: - Por que, Sra. Winslow, por que? Julgou que conseguiria esconder-se aqui sem que nós descobríssemos? Como espera iludir alguém, se o próprio modo de sentar e manter a cabeça traem sua verdadeira identidade? Já não fez o suficiente para ferir Cathy e eu? Tem que voltar para fazer mais? Eu deveria ter adivinhado que você estava por trás da confusão de Bart - por trás de seu comportamento esquisito. O que andou fazendo ao nosso filho? - Nosso filho? - repetiu ela. - Não quer dizer, mais corretamente, filho dela? - Mamãe! - explodiu ele, antes de olhar para mim com ar culposo. Olhando de um para outro, refleti que era maravilhoso e, ao mesmo tempo, muito estranho. Afinal, a mãe dele estava livre do manicômio e era, realmente, avó de Bart. Contudo, por que ele a chamava de Sra. Winslow? Se era mãe dele e do Dr. Paul, teria que ser Sra. Sheffield... ou não? Enquanto eu pensava tudo isso, ela estava dizendo: - Senhor, meus anéis não são tão excepcionais. Bart me disse que o senhor não é o seu verdadeiro pai. Portanto, faça o favor de retirar-se da minha casa. Prometo não permitir que Bart torne a entrar aqui. Não vim para fazer mal a ele - ou a qualquer outra pessoa. Tive a impressão de que ela lançou a meu pai um olhar de advertência. Creio que lhe oferecia uma escapatória, por minha causa. - Minha querida mãe, o brinquedo terminou. Ela começou a soluçar, cobrindo o rosto velado com as mãos. Sem dar importância às suas lágrimas, Papai perguntou: - Quando os médicos lhe deram alta? - No verão passado - sussurrou ela, baixando as mãos de modo a poder usar melhor a voz para implorar. - Mesmo antes de mudar-me para cá, mandei que meus advogados fizessem o possível para ajudar Cathy e você a comprarem o terreno que escolhessem. Ordenei-lhes que me mantivessem anônima, pois sabia que vocês não desejariam meu auxílio. Papai deixou-se cair numa poltrona, dobrando-se para apoiar pesadamente os cotovelos nos joelhos. Por que não estava feliz em ver a mãe livre daquele lugar horrível? Agora, ela morava ao lado - e ele sempre fizera questão de visitá-la no manicômio. Não amava a própria mãe? Ou temia que ela ficasse louca a qualquer momento? Julgava que Bart poderia ter herdado a loucura dela? Ou que a insanidade da avó pudesse contaminar Bart, como uma doença física infecciosa? E por que minha mãe não gostava dela? Olhei de um para outro, esperando respostas para minhas perguntas silenciosas, temendo descobrir que, afinal, Paul não era o pai de Bart. Quando Papai levantou a cabeça, pude ver-lhe o rosto abatido, as profundas rugas que desciam do nariz aos cantos da boca. Rugas que eu nunca vira antes. - Não posso, em sã consciência, voltar a chamá-la de Mamãe - disse ele num tom desprovido de expressão. - Se me ajudou a comprar o terreno no qual se situa atualmente minha casa, eu lhe agradeço. Amanhã, verá o letreiro indicando que está à venda e nós nos mudaremos daqui se você se recusar a mudar-se primeiro. Não permitirei que você afaste meus filhos dos pais. - Da mãe - corrigiu ela. - Dos únicos pais que eles possuem - replicou ele. - Eu deveria saber que você viria para cá. Telefonei para seu médico e ele me informou que lhe dera alta, mas não disse quando, nem para onde você foi. - Que outro lugar tinha eu para ir? - exclamou ela dolorosamente, retorcendo como dois trapos desbotados e inertes as mãos cobertas de jóias. Foi como se estendesse as mãos e tocasse Papai, muito embora evitasse fazer qualquer movimento na direção dele. Cada palavra que pronunciava, cada olhar que lhe lançava dizia que ela o amava até eu podia perceber. - Christopher - suplicou ela. - Não tenho amigos, família ou lar... e lugar nenhum para ir, exceto perto de você e dos seus. Tudo que me resta são você, Cathy e os filhos que ela gerou - meus netos. Você seria capaz de tomá-los de mim, também? Todas as noites, rezo de joelhos para que você e Cathy me perdoem, recebam-me de volta, me amem como amavam antes. Papai parecia feito de aço, inatingível. Eu, porém, estava à beira das lágrimas. - Meu filho, meu amado filho, aceite-me de volta e diga que me ama novamente. E se for incapaz disso, permita-me ao menos viver onde posso ver ocasionalmente os meus netos. Fez uma pausa, esperando pela reação dele. Quando Papai permaneceu calado, ela prosseguiu: - Eu tinha esperança de que você fosse tolerante se eu permanecesse aqui e jamais permitisse que ela conhecesse minha identidade. Mas eu a vi, escutei-lhe a voz; ouvi a sua, também. Escondendo-me atrás do muro para escutá-los. Meu coração palpita. Meu peito dói de saudade. As lágrimas me inundam os olhos quando contenho minha voz, que deseja gritar para fazê-los saber que estou arrependida! Tão terrivelmente arrependida! Papai continuou em silêncio. Assumira sua atitude distante, profissional. - Christopher, eu daria com prazer dez anos de minha vida para desfazer os males que causei! E daria mais dez anos só para sentar-me à sua mesa e sentir-me bem acolhida por meus netos! Tinha lágrimas nos olhos; eu também. Meu coração chorava pela mãe de meu pai, mesmo enquanto eu tentava adivinhar por que motivo ele e Mamãe a odiavam. - Christopher, Christopher, não entende por que uso estes trapos? Cubro o rosto, o cabelo, o corpo, para que ela não saiba! Mas, durante todo o tempo, fico alimentando a esperança, rezando para que mais cedo ou mais tarde vocês dois me perdoem o suficiente e permitam que eu me torne novamente membro de sua família! Por favor, por favor, aceite-me outra vez como sua mãe! Se você aceitar, talvez ela também consiga! Como podia ele ficar ali, sentado, e não sentir por ela a mesma piedade que eu sentia? Por que ele não chorava como eu? - Cathy jamais a perdoará - declarou ele, sem entonação. Por estranho que pareça, ela exclamou alegremente: - Então, você aceita? Diga, por favor... você me perdoa! Estremeci, aguardando que ele falasse. - Mamãe, como posso dizer que a perdôo? Ao dizer isso, eu trairia Cathy - e jamais serei capaz de traí-la. Juntos estamos de pé e juntos cairemos, ainda acreditando que procedemos corretamente, enquanto você fica sozinha e cheia de remorso. Nada que você diga ou faça pode desfazer a morte. E cada dia que você permanece aqui mais aumenta a perturbação mental de Bart. Sabe que ele está ameaçando nossa filha adotiva, Cindy? - Não! - exclamou ela, sacudindo a cabeça com tanta veemência que os véus balançaram violentamente. - Bart seria incapaz de machucar a irmã! - Seria mesmo? Cortou-lhe os cabelos com uma faca, Senhora Winslow. E ameaçou também a própria mãe. - NÃO! - gritou ela, ainda mais apaixonadamente que antes. Bart ama a mãe! Faço agrados e dou presentes a Bart porque você se ocupa demais com sua vida profissional para dar-lhe toda atenção que ele merece e necessita. Da mesma maneira que a mãe dele se ocupa demais com a própria vida para se importar em saber se ele recebe amor suficiente. Mas eu cuido das necessidades dele. Tento substituir os colegas que ele não tem. Faço tudo que me é possível para torná-lo feliz. E se dar-lhe guloseimas e presentes faz com que ele se sinta melhor, que mal estou fazendo? Além disso, quando uma criança tem à disposição todos os doces que é capaz de comer, logo enjoa deles. Eu sei. Já fui como Bart, adorando sorvetes, doces, balas, bolinhos e outras guloseimas... e hoje em dia não consigo suportá-las. Papai se pôs de pé e fez um gesto para mim. Levantei-me e fui para perto dele, que fitou sua mãe com piedade. - É mesmo uma pena que você tenha vindo tarde demais para tentar redimir-se de seus atos. Outrora, eu ficaria comovido por qualquer palavra de ternura que você pronunciasse. Agora, sua simples presença mostra quão pouco você se importa que sejamos profundamente magoados outra vez, como seremos se você permanecer aqui. - Por favor, Christopher - implorou ela. - Não tenho outra família, nem outras pessoas que se incomodem em saber se estou viva ou morta. Não me negue seu amor, pois isso matará a sua melhor parte, a parte que faz de você aquilo que é. Você nunca foi como Cathy. Sempre conseguiu apegar-se a uma parcela de seu amor. Agora, agarre- se a ela com força, Christopher. Agarre-se bem e talvez, eventualmente, consiga ajudar Cathy a encontrar também um pouco de amor por mim! Soluçou, fraquejando. Ou, se não amor, ajude-a a encontrar clemência, pois confesso que poderia ter servido melhor a meus filhos. Então, Papai se comoveu, mas não por muito tempo. - Em primeiro lugar, tenho que pensar na saúde de Bart. Ele nunca teve muita confiança em si mesmo. Suas estórias o perturbaram tanto que ele passou a sofrer de pesadelos. Deixe-o em paz! Deixe-nos em paz! Vá embora, fique longe de nós, não lhes pertencemos mais. Há muitos anos, nós lhe demos muitas oportunidades de provar que nos amava. Mesmo quando fugimos, você poderia ter acatado a intimação do juiz e nos poupado a dor de sabermos que não éramos suficientemente amados para que você ao menos se apresentasse e mostrasse algum interesse por nosso futuro. Tomou fôlego e acrescentou: - Portanto, saia de nossas vidas! Construa uma vida nova para você mesma, com a riqueza que nos sacrificou para conseguir. Deixe que Cathy e eu vivamos a vida que conseguimos à custa de tanto trabalho e esforço. Fiquei pasmo... Do que ele estava falando? O que sua mãe fizera aos dois filhos, Christopher e Paul? E o que tinha minha mãe a ver com a vida deles na juventude? Ela também se levantou, alta e esbelta. Então, vagarosamente, removeu o véu que lhe cobria a cabeça e o rosto. Prendi a respiração. Papai também. Nunca antes eu vira uma mulher capaz de ser, ao mesmo tempo, tão feia e tão bonita. As cicatrizes davam a impressão de que um gato lhe arranhara o rosto. As bochechas estavam flácidas pela idade; o bonito cabelo louro mesclado com mechas grisalhas. Eu me sentira imensamente curioso por ver de perto o que ela ocultava sob o véu. Agora, desejava não ter visto. Papai baixou a cabeça. - Precisava fazer isso? - Sim - disse ela. - Queria que você visse o que fiz para não mais me parecer com Cathy. Apontou para a cadeira de balanço. - Vê essa cadeira? Tenho uma igual em cada aposento desta casa. Indicou todas as confortáveis poltronas, forradas com almofadas espessas e macias. - Sento-me em duras cadeiras de pau, a fim de castigar-me. Uso os mesmos trapos negros todos os dias. Mantenho espelhos nas paredes, para poder ver como sou velha e feia atualmente. Quero sofrer pelos pecados que cometi contra meus filhos. Detesto este véu, mas faço questão de usá-lo. Não consigo enxergar direito através dele, mas mereço isso, também. Faço o possível a fim de criar para mim mesma o mesmo tipo de inferno que criei para o sangue do meu sangue. E continuo a acreditar que ainda chegará o dia em que Cathy e você reconhecerão que estou procurando pagar meus pecados, de modo que possam perdoarme e voltar para mim, transformando-nos outra vez numa família. E, quando você e Cathy conseguirem isso, poderei ir em paz para meu túmulo. Então, quando eu me reunir a seu pai, talvez ele não me julgue com demasiada severidade. - Oh! - exclamei espontaneamente. - Eu a perdôo por qualquer coisa que tenha feito! Sinto que tenha que se vestir de negro o tempo todo, com um véu cobrindo o rosto! Virei-me para Papai, puxando-lhe a manga.
- Diga que a perdoa, Papai. Por favor, não a faça sofrer mais! Ela é sua mãe e eu seria sempre capaz de perdoar minha mãe, não importa o que ela faça. Ele falou com minha avó como se nem me tivesse escutado: - Você sempre soube convencer-nos a fazer o que você queria. Eu nunca o ouvira falar com tamanha frieza. - Mas já não sou um menino - prosseguiu. - Agora, sei como resistir à sua tentação, pois tenho uma mulher que jamais me decepcionou em coisas importantes. Ela me ensinou a não ser tão crédulo como antes. Você quer Bart porque julga que ele devia ter sido seu. Mas não pode tê-lo. Bart nos pertence. Eu costumava pensar que Cathy errou ao procurar vingança e roubar Bart Winslow de você. Mas ela não errou - fez o que tinha que fazer. E assim, temos dois filhos em vez de apenas um. - Christopher! - bradou ela, desesperada. - Você não quer que o mundo tome conhecimento de sua indiscrição! Claro que não quer. - E da sua, também - replicou ele friamente. - Se você nos delatar, estará também delatando a si mesma. E lembre-se de que éramos apenas crianças. Acha que o juiz e o júri seriam favoráveis a nós ou a você. - Para o bem de vocês! - gritou ela quando saímos da sala e nos encaminhamos à porta principal da mansão (Papai foi obrigado a empurrar-me à sua frente, pois eu queria ficar, com pena dela). - Ame-me outra vez, Christopher! Por favor, permita que eu me redima! Papai girou nos calcanhares, rubro de raiva: - Não posso perdoá-la! Você só pensa em si mesma. Como sempre só pensou em si mesma. Eu não a conheço, Sra. Winslow. Quem me dera jamais tê-la conhecido! Oh, Papai, pensei eu, você se arrependerá. Perdoe-a, por favor. - Christopher - chamou ela mais uma vez, a voz tão sumida e fina que chegava a soar velha e áspera. - Quando você e Cathy conseguirem amar-me novamente, encontrarão vidas melhores para vocês e seus filhos. Existe tanta coisa que eu poderia fazer para ajudá-los, se ao menos vocês permitissem. - Dinheiro? - retrucou ele desdenhosamente. - Vai usar chantagem? Temos bastante dinheiro. Temos bastante felicidade. Conseguimos sobreviver, conseguimos amar -e não matamos ninguém para conseguir o que temos. Matamos? Ela matara alguém? Papai puxou-me pela mão ao andar furiosamente para a porta. No caminho da mansão à nossa casa, eu disse: - Papai, tenho a impressão de que senti o cheiro de Bart naquela sala. Ele podia estar escondido, escutando. Ele estava lá, tenho certeza. - Muito bem- disse ele, num tom fatigado. - Volte e procure por ele. - Papai, por que não a perdoa? Acredito que ela esteja realmente arrependida do que fez para que você a odiasse - e é sua mãe. Sorri e puxei-lhe o braço, querendo que ele voltasse comigo e dissesse a ela que a amava. - Não seria bom termos ambas as minhas avós em casa, no Natal? Ele sacudiu a cabeça e seguiu em frente, deixando-me sozinho para correr de volta à mansão. Deu apenas alguns passos, antes de voltar-se para mim: - Jory, prometa não contar nada a sua mãe a respeito desta noite. Prometi, mas fiquei insatisfeito. Estava insatisfeito com tudo o que escutara. Não sabia se ouvira toda a verdade a respeito de meu pai e sua mãe, ou apenas parte de uma comprida estória secreta que nunca me haviam contado. Tive ímpetos de correr atrás de Papai e perguntar por que ele odiava tanto a própria mãe, mas compreendi, por sua expressão facial, que ele não me diria. De certo modo esquisito, alegrei-me por não saber demais. - Se Bart estiver lá, traga-o para casa e leve-o às escondidas para o quarto, Jory. Por favor, pelo amor de Deus, não torne a mencionar à sua mãe qualquer coisa a respeito daquela mulher. Eu cuidarei dela. Irá embora e tudo voltará a ser como antes. Sendo como eu era, acreditei, embora sentisse pena da mãe dele. Não devia a ela a mesma lealdade que devia a ele, mas não pude reprimir a pergunta mais importante: - Papai, o que fez sua mãe para que você a odeie tanto? E se a odeia, por que sempre insistia em visitá-la, quando Mamãe não queria? Ele fitou o espaço e, como se de muito longe, sua voz me chegou aos ouvidos: - Jory, temo que você venha a conhecer toda a verdade dentro de muito pouco tempo. Dê-me tempo para encontrar as palavras adequadas, a verdadeira explicação que satisfará sua necessidade de saber. Mas acredite: sua mãe e eu sempre tencionamos contar-lhe tudo. Estávamos apenas esperando que você e Bart crescessem o suficiente. E, quando ouvir nossa estória, creio que você compreenderá como posso, ao mesmo tempo, amar e odiar minha mãe. É triste dizer, mas existem muitos filhos que se sentem ambiguamente em relação aos pais. Abracei-o, embora não fosse uma atitude adulta. Eu o amava e se isso também não fosse coisa de adulto, não valia a pena a gente crescer. - Não se preocupe com Bart, Papai - disse eu. - Vou levá-lo para casa em segurança. Consegui esgueirar-me bem a tempo por entre os portões, que se fecharam atrás de mim com um leve ruído metálico. Então... silêncio. Se existia no mundo algum local mais silencioso que aquele enorme terreno, eu nunca lá estivera. Dei um pulo e escondi-me depressa atrás de uma árvore. John Amos Jackson segurava Bart pela mão e o afastava da mansão. - Agora, você sabe o que precisa fazer, não sabe? - Sim, senhor - entoou Bart, como em transe. - Sabe o que acontecerá se não fizer o que eu mandar, não sabe? - Sim, senhor. Coisas ruins acontecem a todo mundo - inclusive a mim. - Sssim, coisasss ruinsss, que você lamentará. - Coisas ruins que eu lamentarei - repetiu meu irmão. - O homem nasce da mulher para o pecado... -E aqueles que causam o pecado... - Devem sofrer. - E como devem eles sofrer? - De todos os modos, por todos os modos. Serão redimidos pela morte. Congelei-me onde estava agachado, não acreditando em meus ouvidos. O que fazia aquele homem a Bart? Saíram do alcance de minha audição e espiei bem a tempo de ver Bart desaparecer por cima do muro, a caminho de casa. Esperei até que John Amos Jackson retornasse à mansão com seu andar arrastado e apagasse todas as luzes. Então, de repente, dei-me conta de que não ouvira os latidos de Maçã. Um cão do tamanho e idade de Maçã não deveria latir para avisar aos de casa que havia um intruso no terreno? Esgueirei-me até o celeiro e chamei Maçã pelo nome. Ele não apareceu correndo para me lamber o rosto e sacudir o rabo. - Maçã - tornei a chamar, mais alto. Acendi um lampião de querosene que estava pendurado perto da porta e iluminei a baia que servia de lar para Maçã. Prendi a respiração !Oh, não! NÃO! Quem seria tão cruel a ponto de matar um cão de fome, daquela maneira? Quem seria capaz, depois disso, de cravar um forcado naquele pobre monte de ossos coberto por lindo pêlo? Agora, ele estava todo ensangüentado. Escuro, com sangue velho, que se coagulara numa cor de ferrugem. Corri para fora do celeiro e vomitei. Uma hora mais tarde, Papai e eu estávamos cavando um túmulo e enterrando um enorme cão que não tivera oportunidade de chegar à maturidade. Ambos sabíamos que Bart seria internado para sempre, se a notícia se espalhasse. - Talvez não tenha sido ele - disse Papai quando voltamos para casa. - Não consigo acreditar que ele fosse capaz. A essa altura, eu conseguia acreditar em qualquer coisa.Havia uma velha que morava ao lado.Usava trapos pretos e cobria o rosto de negro.Era duas vezes sogra de Mamãe, duplamente odiada, E muito mais. Tudo que eu podia fazer era imaginar, imaginar o que ela fizera a meus pais. Papai ainda não explicara toda a verdade, como havia prometido. Embora eu tivesse um vislumbre de uma vaga solução deixara-me dominar pela emoção e, por um momento, pensei que ela era também minha avó, pois Chris, no fundo de meu coração, era meu verdadeiro pai.Mas, na verdade, o filho de Paul era Bart e eu sabia por que motivo sua avó o queria tanto - e não a mim. Eu pertencia a Madame Marisha, assim como Bart pertencia a ela. Era o parentesco de sangue que os levava a se amarem. E eu suspirava, porque era apenas neto torto de uma mulher tão misteriosa e comovente, que se julgava obrigada a sofrer para redimir seus erros. Refleti que precisava cuidar melhor de Bart - protegê-lo, orientá-lo, mantê-lo na linha. Imediatamente, tive um impulso repentino que me levou a correr ao quarto de Bart, que estava deitado de lado na cama, com o polegar na boca. Parecia um bebê - apenas um menininho que sempre vivera à minha sombra, sempre tentando igualar o que eu fizera na sua idade, jamais conseguindo atingir o ponto que eu alcançara. Não falara mais cedo, não andara com menos idade nem sorrira até quase completar um ano de idade. Era como se ele soubesse, desde o berço, que sempre seria o número dois, jamais o número um. Agora, encontrara a única pessoa no mundo que o colocava em primeiro lugar. Alegrei-me por Bart possuir uma avó de verdade, só para ele. Embora ela só se vestisse de negro, eu podia perceber que, outrora, fora muito bonita. Mais bonita que minha Avó Marisha jamais poderia esperar ser quando jovem.
Ainda assim... ainda assim... estavam faltando algumas peças do quebra-cabeça. John Amos Jackson... onde se ajustava ele no quadro? Por que uma avó carinhosa, uma mãe que desejava unir-se ao filho, esposa e neto... por que traria ela consigo aquele velho detestável?
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OS ESPINHOS DO MAU ( Concluído)
RomanceDas cinzas do mal, Crhis e Cathy construíram um lindo lar para seus esplêndidos filhos... Jory, de quatorze anos, era tão bonito, tão delicado. E Bart possuía uma imaginação tão brilhante para um menino de nove anos. Entao, acenderam-se luzes na cas...