A última dança

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-  Jory  -  chamou Mamãe, aliviada  quando me viu entrar.  -  Graças  a Deus você    voltou. Gostou do almoço? Claro,  respondi,  ótimo  almoço;  e  ela  não  deu  muita  atenção  quando  não    entrei  em  detalhes,  pois  estava  por demais  ocupada  com  os  preparativos  de  última  hora.  Era  assim  que  acontecia  nos  dias  de espetáculo:    aula  de manhã,  ensaio  à tarde  e  espetáculo  à  noite.  Correria, correria,    correria,    fazendo  de  conta  o  tempo  todo  que  o mundo  cessaria  de  girar  se  a  gente  não  se    apresentasse  no  palco  com  o  máximo  de  nossa  capacidade. Quando, na  verdade,  o    mundo    não  parava de  girar... -  Sabe,  Jory  -  tagarelou  Mamãe,  muito  feliz,  no  camarim  que  compartilhávamos    -  ela  falava  de  trás  de  um biombo  e  não  nos  víamos  -,  o  balé  sempre  me  emocionou,  durante  toda  a  minha  vida.  Mas  esta  noite    será  a mais  grandiosa  de  todas,  porque  dançarei  com  meu  próprio  filho!  Sei  que    você    e  eu  já  dançamos  juntos muitas  vezes,  mas  esta noite é  especial. Agora, você  é    suficientemente bom  para apresentar-se  num  solo. Por favor, por  favor,  esforce-  se    ao máximo para que  Julian, lá no céu, possa  orgulhar-se  de seu único  filho. Claro  que  me  esforçaria  ao  máximo;  sempre  me  esforçava.  As  gambiarras  se    acenderam,  a  overture terminou,  o  pano  subiu.  Houve  um  momento  de  silêncio  antes    do    início  da  música  do  primeiro  ato.  Era  o nosso  tipo  de  música  -  de  Mamãe  e  meu  -,    levando-nos  ao  mundo  encantado  onde  tudo  podia  acontecer,  até mesmo finais    felizes. -  Mamãe, você  está maravilhosa... mais  linda que qualquer  das  outras    bailarinas! E  era  verdade.  Ela  riu,  alegre,  replicando  que  eu  certamente  sabia  como    agradar  as  mulheres  e,  se continuasse  assim, acabaria  sendo o  Don  Juan do  século    vinte. -  Agora,  Jory,  ouça  a  música  com  atenção.  Não  se  absorva  na  contagem  a  ponto    de  esquecer  a  música.  É  a melhor  maneira de  captar  a  magia:  sentir  a música! Eu estava tão  tenso que me sentia prestes a  estourar. -  Mamãe, espero que  o pai  que eu mais  amo esteja sentado no centro da    primeira  fila. Foi  então que  ela correu para  um  ponto  de  onde  podia ver  a  platéia.  Em    determinados  lugares,  as  gambiarras não me feriam  os  olhos. -  Eles não estão  lá  -  disse  ela, desalentada.  -  Nem  Bart... Não  houve  tempo  para  responder.  Ouvi  minha  deixa  musical  e  entrei  dançando    no  palco  com  o  resto  do corpo de  baile. Tudo  corria perfeitamente, com  Mamãe  na    sacada,    fazendo  o  papel  da  linda boneca  Copélia, parecendo  bastante  real  para inspirar    amor  à distância. Todavia,  quando  o  primeiro  ato  terminou,  ela  ofegava,  sem  fôlego.  Não    contara  a  Papai  que  dançaria também  o  papel  da  moça  da  aldeia,  Swanhilda,  que    amava  Franze    apesar  dele  se  apaixonar  bobamente  por uma  boneca  mecânica.  Dois  papéis  para    Mamãe  -  papéis  difíceis,  pois  ela  os  coreografara.  Papai  certamente a proibiria  de dançar  se conhecesse toda a verdade sobre a última dança de mamãe. Teria eu cometido um erro  ao contribuir  para enganá-lo? -  Mamãe,  como  está  seu  joelho?  -  perguntei  quando  a  vi  fazer  uma  ou  duas    caretas  de  dor  durante  o intervalo  entre os atos. -  Jory,  meu  joelho  está  ótimo!  -  replicou  ela  com  aspereza,  tentando  mais    uma  vez  avistar  Papai  e  Bart  em suas  poltronas.  -  Por  que  não  vieram?  Se  Chris    não    aparecer  para  me  assistir  dançar  pela  última  vez,  jamais o perdoarei! Vi  Papai  e  Bart  logo  antes  do  início  do  segundo  ato.  Estavam  na  segunda  fila    e  percebi  que  Bart  fora  trazido à  força.  Seu  lábio  inferior  projetava-se  numa    careta    de  amuo  e  ele  fitava  raivosamente  a  cortina  que  subiria para revelar beleza e  graça. Então, ele ficaria ainda mais carrancudo. Beleza e graça não iluminavam a  vida de Bart  como iluminavam  a minha. Hora  do  terceiro  ato.  Mamãe  e  eu  dançamos  juntos,  bonecos  movidos  a  corda,    acionados  por  enormes chaves  que  nos  saíam  às  costas.Começamos  rigidamente,  movimentando  as  juntas  emperradas.  O  enorme salão    onde  o  Dr.  Copélius  guardava  suas  invenções  era  misteriosamente  obscuro,  tornado  ainda  mais dramático  por  lâmpadas  azuis.  Notei    que Mamãe  estava  em  dificuldades,  mas,  mesmo  assim,  não  perdeu  um único  passo  enquanto  acompanhamos  o  ritmo  da  música  e    ligamos  todos  os  outros  bonecos  mecânicos,  que se  movimentaram  e começaram  a dançar  conosco. -  Você  está bem, Mamãe?  -  indaguei  num  sussurro, quando ficamos bastante    próximos um  do outro. -  Claro  -  disse  ela,  ainda sorrindo. Não parava de  sorrir, pois,   supostamente, o  sorriso era  pintado na cara da    boneca. Temi  por  ela, mesmo enquanto lhe admirava a  coragem. Sabia que, na  platéia,    Bart  nos observava,  julgandonos estúpidos  e idiotas, sentindo ciúmes  de nossa    graça    e agilidade. De  repente,  percebi,  pelo  sorriso  tenso  de  Mamãe,  que  ela  sentia  uma  dor    terrível.  Tentei  dançar  mais  perto dela,  mas  um  dos  bonecos  vestidos  de  palhaço    me  atrapalhava    o  caminho.  Ia  acontecer.  Eu  sabia  que  ia acontecer  exatamente  o  que  Papai  temia.Em  seguida,  viria  uma  série  de  piruetas  que  levariam  Mamãe  a descrever  um    círculo  em  torno  do  palco.  Para  fazer  tais  piruetas,  ela  precisava  conhecer  a    localização    exata de  todos  os  bailarinos  e,  também,  dos  adereços  do  cenário.  Quando  ela    girou  perto  de  mim,  estendi  a  mão para  ajudá-la  a  manter  o  equilíbrio  antes  de    prosseguir    nas  piruetas.  Oh,  Deus,  eu  nem  tinha  coragem  de olhar! Então, vi que ela  conseguiria; com dor ou sem dor, ela dançaria sem cair. Alegre, agora, dei um grande  salto    e  caí  sobre  um  joelho,  propondo  casamento  à  boneca  de  meus  sonhos.  Então,  meu    coração quase  parou. Uma das fitas  de sua  sapatilha se  soltara! -  Suas fitas, Mamãe  -  cuidado com  a fita do  pé esquerdo! Gritei  acima  da  música,  mas  ela  não  me  escutou.  Outra  bailarina  pisou  na    fita.  Mamãe  perdeu  o  equilíbrio. Estendeu  os  braços  para  firmar-se  e  talvez    tivesse    conseguido  -  mas  vi  o  sorriso  transformar-se  num  mudo grito de  dor  quando o    joelho cedeu e ela  caiu. Bem  no centro do  palco. Pessoas  gritavam  na  platéia.  Algumas  se  levantavam  para  verem  melhor.  Nós,    no  palco,  continuamos dançando  enquanto  o  contra-regra  entrou  e  carregou  Mamãe  para  os  bastidores.  Sua  substituta  entrou  em cena e  o    balé  continuou. Quando o pano baixou pela  última vez,  não esperei  para receber  os  aplausos.    Corri  para perto de minha mãe. Invadido  por  um  medo  horrível,  aproximei-me  do    local    onde  Papai  a  carregava  nos  braços,  enquanto  os homens da ambulância,  uniformizados de branco, apalpavam as pernas de Mamãe para verificar se uma delas, ou  ambas,    estavam  quebradas. -  Dancei  bem,  Chris?  -  perguntava  ela,  embora  a  dor  lhe  tornasse  o  rosto    muito  pálido.  -  Não  estraguei  o espetáculo,  estraguei?  Viu  Jory  e eu fazermos    nosso    pas  de deux? -  Sim,  sim  -  respondia  ele,  beijando-lhe  o  rosto  e  parecendo  muito  carinhoso    ao  ajudar  a  colocá-la  numa maca.  -  Você  e  Jory    estiveram  magníficos. Nunca vi  você  dançar  melhor...  e  Jory  foi  brilhante. -  E,  desta  vez,  não  precisei  sangrar  pernas  abaixo  -  sussurrou  ela,  fechando    os  olhos  com  ar  fatigado.  -  Tive apenas que quebrar uma perna...O que ela disse não fazia muito sentido para mim. Voltei meus pensamentos para  a  expressão  no  rosto  de  Bart  ao  fitá-la.  Parecia  estar  satisfeito,  quase    zombeteiro.    Estaria  eu  sendo injusto  para com  ele? Ou seria  culpa o que  eu  lhe  via nos    olhos? Solucei  enquanto  Mamãe  foi  levada  na  maca  e  colocada  na  ambulância  que  os    conduziria  -  ela  e  papai  -  ao hospital. O  pai  de  Melodie  prometeu deixar-me no    hospital    e depois levar  Bart  para casa  em  segurança. -  Apesar  de  ter  certeza  de  que  Melodie  preferiria  que  Jory  fosse  para  casa  e    Bart  insistisse  em  ficar  com  a mãe  no hospital.
Muito  mais  tarde,  Mamãe  acordou  dos  sedativos  que  lhe  haviam  ministrado  e    olhou  para  as  flores  que enchiam  o quarto. -  Ora, parece um  jardim  -  comentou. Sorriu debilmente para Papai, estendendo os braços  para ele e  depois, para    mim. -  Chris, sei  que você  vai  dizer  que me preveniu.  Mas dancei  bem  até cair,    não  foi? -  Por  causa  da  fita  da  sapatilha  -  declarei,  ansioso  por  protegê-la  da  raiva    de  Papai.  -  Se  não  houvesse soltado, você  não cairia.  -  Minha perna não está  quebrada, está?  -  perguntou ela a  papai. -  Não  querida,  apenas  alguns  ligamentos  rompidos  e  cartilagens  partidas,  que    foram  consertadas  durante  a operação. Então,  Papai  se  sentou  na  beira  da  cama  e  forneceu  todos  os  detalhes  da    contusão,  que  não  era  tão insignificante quanto ela  queria acreditar. Mamãe  refletiu em  voz  alta: -  Não  consigo  entender,  realmente,  como  aquela  fita  se  soltou.  Sempre    costuro  pessoalmente  as  fitas,  com todo cuidado,  sem  confiar  em  ninguém... Fez  uma pausa, fitando o espaço. -  Onde sente dor, agora? -  Em lugar  nenhum  -  replicou  ela  num  tom  ríspido,  como  se  aborrecida.  -  Onde    está  Bart?  Por  que  não  veio com  vocês? -  Você  sabe  onde  está  Bart.  Detesta  hospitais  e  gente  doente,  tanto  quanto    detesta  tudo  o  mais.  Emma  está tomando conta dele e  de Cindy. Mas queremos que    você    volte  logo para casa. Portanto,  faça  o que o médico e as enfermeiras  mandarem  -    e não seja  tão malditamente  teimosa  a  ponto de não  escutar  nem  obedecer. -  O que há  de  errado  comigo?  -  perguntou ela, alertando-se, como eu. Empertiguei-me na  cadeira,  pressentindo que  algo estava por  desabar  sobre    nós. -  Seu  joelho  está  em  péssimo  estado,  Cathy.  Sem  entrarmos  em  detalhes    específicos,  você  terá  que  usar  uma cadeira  de  rodas  até que  alguns ligamentos    rompidos    cicatrizem. -  Uma cadeira de  rodas? Parecendo  atordoada, ela disse aquilo como se  estivesse mencionando a    cadeira  elétrica. -  O que há  realmente  de errado?  Você está omitindo  alguma coisa.  Tenta    proteger-me! -  Quando  os  médicos  tiverem  certeza,  você  saberá.  Mas  uma  coisa  é  certa:    nunca  mais  poderá  dançar.  E  eles também disseram que nem mesmo pode fazer demonstrações para os alunos. Nenhum tipo de dança, nem mesmo valsa. Ele  falou em  tom  firme,  mas com  os olhos cheios  de compaixão e  sofrimento. Ela  pareceu atônita, não  acreditando  que uma queda  tão insignificante    pudesse  causar  danos  tão graves. -  Nenhuma  dança...?  Absolutamente  nenhuma?        -  Absolutamente  nenhuma  -  repetiu  Papai.  -  Sinto  muito, Cathy,  mas  eu  a    preveni.  Relembre  e  conte  as  vezes  em  que  caiu  e  machucou  esse  joelho.  Quanto  dano  você julga  que  ele  seja  capaz  de  suportar?  Até    mesmo  andar  não  será  tão  fácil  para  você  como  era  antes.  Portanto trate de chorar  agora. Desabafe  logo de  uma vez. Ela  chorou  nos  braços  dele  e,  eu  sentado  na  cadeira,  solucei  por  dentro,    sentindo-me  tão  desolado  quanto  se fosse eu quem  perdesse  o  uso das  pernas  para    dançar. -  Tudo bem, Jory  -  disse ela, após  enxugar  as  lágrimas  e exibir  um  sorriso    trêmulo.  -  Se eu não puder  dançar, arranjarei  algo melhor  para  fazer  -  embora só    Deus    saiba o que  seja. OUTRA AVÓ Dentro  de  poucos  dias,  Mamãe  se  sentia  muito  melhor.  Foi  então  que  Papai    levou  para  o  hospital  uma máquina de  escrever  portátil,  uma grossa pilha  de papel  amarelo tamanho ofício e  outros objetos para  escrita. Arrumou  tudo  na  mesinha  que  podia  ser  rolada  acima  da  cama  de  Mamãe  e  mostrou  um    de  seus  largos  e encantadores sorrisos. -  É  uma  ótima  ocasião  para  você  terminar  aquele  livro  que  começou  há  tanto    tempo,  -  disse  ele.  -  Consulte seus  diários  e  bote  tudo  pra  fora.  Ao  diabo  com  quem  possa  ofender-se!  Magoe  todos  eles  como    foi magoada, como eu fui  magoado. Dê também  algumas  facadas  por  Cory  e Carrie.  E, já que está com  a  mão na massa, acrescente    alguns  murros por  mim, Jory  e Bart, pois eles  também  foram  afetados. De que  falava ele? Fitaram-se  por  longo  tempo.  Depois,  com  ar  infeliz,  ela  tomou  das  mãos  dele    um  velho  diário.  Abriu-o  e  eu pude ver  a  caligrafia  grande, feminina,  juvenil. -  Não  sei  se  devo  -  murmurou  com  estranha  expressão  no  olhar.  -  Seria  como    reviver  aquilo  tudo.  Todo  o sofrimento voltaria.
Papai  sacudiu  a cabeça. -  Cathy,  faça  o  que  achar  que  deve  fazer.  Em  primeiro  lugar,  deve  ter    existido  um  bom  motivo  para  você escrever  esses  diários.  Quem  sabe?  Talvez  você    esteja    a  caminho  de  uma  nova  carreira,  mais  gratificante que a  primeira. Não  me  parecia  possível  que  escrever  fosse  capaz  de  substituir  o  balé.    Todavia,  quando  fui  visitar  Mamãe no  hospital,  no  dia  seguinte,  ela  estava  escrevendo  como  louca.  Percebi-lhe  no  rosto  uma  estranha    expressão de concentração e, de certo  modo, senti  inveja. -  Mais quanto tempo?  -  perguntou ela a  Papai,  que me levara até  lá. Estávamos  todos  à  espera, Emma  com  Cindy  no  colo  e  eu  segurando  com  força  a    mão  de  Bart.  Papai  ergueu Mamãe  do  banco  dianteiro  do  carro  e  a  colocou  na    cadeira    de  rodas  dobrável  que  ele  alugara.  Bart  olhava com  repulsa  para  a  cadeira  de    rodas  e  Cindy  Chamava:  "Mamãe,  Mamãe!",  pouco  se  importando  com  a maneira pela qual Mamãe  retornasse, desde que voltasse para casa. Bart, porém, manteve-se afastado, mirando Mamãe    de  cima abaixo,  como se  fitasse  uma desconhecida  com  a qual  antipatizava. Depois,  Bart  girou  nos  calcanhares  e  se  encaminhou  para  casa.  Nem  mesmo    disse  "alô"  a  Mamãe.  Uma expressão de mágoa passou  pelo  semblante de  Mamãe  e ela chamou: -  Bart!  Não  vá  embora  antes  de  eu  ter  uma  oportunidade  para  dizer  alô.  Não    está  satisfeito  por  ver-me?  Não imagina  o  quanto  senti  sua  falta.  Sei  que  não  gosta  de  hospitais;  mesmo  assim,  gostaria  que  você    tivesse  ido até  lá.  Sei,  também,  que  você  não  gosta  desta  cadeira,  mas  não  a    usarei    para  sempre.  Uma  senhora  na  aula de  fisioterapia mostrou-me  o quanto é possível  a gente  fazer  sentada  neste tipo  de    cadeira... Interrompeu-se  porque o olhar  sombrio e duro de Bart  não a  encorajava a    prosseguir. -  Você  parece  engraçada, nessa  cadeira  -  disse ele,  com  a testa  franzida.  -    Não gosto de você  nessa  cadeira! Mamãe  riu,  nervosa. -  Bem,  para  falar  a  verdade,  também  não  é  o  meu  trono  predileto,  mas  lembre-  se  de  que  não  fará  parte permanente de minha vida; só até meu joelho ficar bom. Venha, Bart, seja amistoso com sua mãe. Eu o perdôo  por  não me visitar  no hospital, mas  não  o  perdoarei  se não me mostrar  um  pouco de afeição. Ainda carrancudo, Bart  recuou quando ela rolou a cadeira na  direção dele. -  Não!  Não  me  toque!  -  exclamou  ele,  em  voz  muito  alta.  -  Não  precisava    dançar  e  cair!  Caiu  porque  não queria voltar para casa e ver-me outra vez! Odeia-me porque cortei o cabelo de Cindy! E agora quer castigar-me, ficando sentada nessa  cadeira  quando não tem  necessidade  disso! Virando-se,  correu  para  o  quintal,  usando  o  caminho  de  pedras.  Logo  tropeçou    e  caiu.  Levantando-se, continuou  a  correr,  esbarrando  numa  árvore  e  soltando  um    grito.  Pude  ver  que  seu  nariz  sangrava.  Puxa,  que sujeitinho  desajeitado! Papai  ignorou  a  rebelião  de  Bart  e  empurrou  Mamãe  para  dentro  de  casa,  com    Cindy  deleitada  por  viajar  no colo dela. -  Não  se  preocupe  com  Bart...  ele  voltará,  arrependido...  sentiu  muito  sua    falta,  Cathy.  Ouvi-o  chorar  de noite. E o novo psiquiatra,  Dr. Hermes, acha que    ele    está  melhorando, desabafando parte da hostilidade. Mamãe  ficou  calada,  passando  a  mão  nos  cabelos  curtos  e  macios  de  Cindy,  que    mais  parecia  um  menino naquele  macacão,  embora  Emma  tivesse  atado  um  laço  de    fita    num  curto  tufo  de  seus  cabelos.  Creio  que Papai  contara a  Mamãe  o que Bart    fizera  a Cindy, pois ela não  fez  perguntas  a respeito. Mais  tarde,  quando  Bart  já  estava  deitado,  corri  para  apanhar  um  livro  que    esquecera  na  sala  de  estar  íntima e escutei  a voz  de Mamãe  vindo do  quarto    "dela". -  Chris,  o  que  farei  em  relação  a  Bart?  Tentei  mostrar-lhe  amor  e  carinho,    mas  ele  me  rejeitou.  E  veja  o  que fez  a  Cindy,  uma  criança  indefesa,  que  acha  que  ninguém  será  capaz  de  lhe  fazer  mal.  Você  deu  uma    surra nele?  Fez  alguma  coisa  para  castigá-lo?  Ele  demonstra  respeIto  para  com  algum  de  nós?  Algumas  semanas no sótão,  talvez  lhe    ensinassem  algo a respeito de  obediência. Ouvir  Mamãe  falar  daquele  modo  deixou-me  deprimido.  Tão  triste  que  fui    obrigado  a  afastar-me  depressa  e jogar-me na  cama,  fitando  as  paredes com  os  pôsteres  de  Julian  Marquet  dançando com  Catherine Dahl.    Não era  a  primeira  vez  que  eu  tentava  imaginar  como  teria  sido  realmente  meu    verdadeiro    pai.  Amara  muito minha mãe? E ela o  amara?  Minha vida  teria  sido  mais  feliz  se    ele não  morresse  antes  de eu  nascer? Então,  houve  Papai  Paul,  que  veio  depois  daquele  homem  alto  com  cabelos  e    olhos  escuros.  Seria  Bart realmente  filho  do  Dr.  Paul,  ou...?  Nem  pude  completar    a    pergunta,  sentindo-me  desleal  por  alimentar dúvidas.Fechei  os  olhos,  sentindo  uma    assustadora  tensão  na  atmosfera  que  me    cercava,  como  se  uma espada invisível  pairasse sobre nós, pronta para ceifar-nos    todos. No  início  da  noite  seguinte,  encurralei  Papai  em  seu  escritório  e  desabafei    tudo  o  que  vinha  contendo  até aquele momento.
-  Papai  você  tem  que  fazer  algo  a  respeito  de  Bart.  Ele  me  causa  medo.  Não    sei  como  podemos  continuar vivendo com  ele dentro de  casa,  pois tudo indica que    está    ficando  louco  -  se  já  não enlouqueceu. Papai  baixou  a  cabeça,  apoiando-a  nas  mãos.    -  Não  sei  o  que  fazer,  Jory.  Sua  mãe  morreria  se  tivéssemos que mandar Bart  para longe. Você nem imagina o quanto ela já suportou. Não creio que possa  agüentar muito mais... a  perda de outra  criança a  destruiria. -  Nós  a  salvaremos!  -  exclamei  ardorosamente.  -  Mas  temos  que  evitar  que    Bart  visite  aquelas  pessoas  na casa  vizinha,  que  lhe  contam  mentiras.  Ele  vive    lá  o    tempo  todo,  Papai;  aquela  velha  o  pega  no  colo  e conta-lhe  estórias  que  o  fazem    voltar  para  casa  com  um  comportamento  esquisito,  como  se  fosse  um  velho, como se    odiasse  as mulheres.  Tudo é  culpa dela, Papai, daquela mulher  de preto.  Quando a  velha  deixar  Bart em paz, ele voltará a  ser  o que era antes    de conhecê-la. Papai  me  fitou  da  maneira  mais  estranha,  como  se  algo  em  minhas  palavras    tivesse  acionado  novas  idéias em  sua  mente.  Como  sempre,  ele  precisava  sair,  visitar  pacientes;  desta  vez,  porém,  telefonou  para    o hospital  e  informou que tinha uma emergência em  casa. E tinha mesmo, podem    apostar! Eu olhava freqüentemente  para o terceiro marido de minha mãe  e desejava que    ele fosse meu  verdadeiro pai, mas  no  momento  em  que  ele  cancelou  todos  os  seus    compromissos,    a  fim  de  salvar  Bart  e  Mamãe  -, compreendi  que, sob todos  os aspectos que    realmente  importavam, ele era meu pai  de verdade. Naquela  noite,  pouco  depois  do  jantar,  Mamãe  foi  para  o  quarto,  trabalhar  em    seu  livro.  Cindy  estava deitada  e  Bart  se  achava  no  quintal.  Papai  e  eu  vestimos    pesados   suéteres  e  nos  esgueiramos  furtivamente pela  porta  da  frente.A  noite  estava  escura  de  nevoeiro,  fria  de  umidade,  quando  caminhamos,  lado    a  lado, em direção  à enorme e  sombria  mansão com  impressionantes portões  de ferro pintados  de preto. -  Sou o Dr. Christopher  Sheffield  -  disse Papai  junto à  caixinha negra    embutida no pilar  dos portões.  -  Quero falar com a dona da casa. Enquanto os portões se abriam silenciosamente, ele me perguntou por que eu nunca  descobrira  o  nome  da  mulher.  Dei  de  ombros,  como  se  ela  não  tivesse  nome    e,    no  que  me  dizia respeito, não precisasse  de  um. Bart  jamais a  chamara  de outra    maneira  senão de  "Vovó". À porta  principal,  Papai  bateu  com  a  aldrava  de  bronze.  Finalmente,    escutamos  o  ruído  de  passos  arrastados e  John Amos  Jackson nos abriu  a porta. -  Senhoras  idosas  se  cansam  com  facilidade  -  disse  John  Amos  Jackson,  o    rosto  fino,  comprido,  esquelético, os  olhos  encovados,  as  mãos  trêmulas,  as    costas  magras    arqueadas.  -  Não  digam  nada  para  perturbá-la.        Percebi  a  maneira  como  Papai  o  fitava,  carrancudo  e  perplexo.  O  mordomo    calvo  afastou-se  arrastando  os pés, deixando-nos entrar  numa sala cuja porta ele    abrira. A velha de  negro  estava sentada  na cadeira de  balanço. -  Desculpe-me  incomodá-la  -  disse  Papai,  olhando-a  com  grande  atenção.  -  Meu    nome  é  Dr.  Christopher Sheffield e moro na  casa  ao  lado. Este é  meu filho mais    velho,    Jory, que a  senhora  já  conhece. A velha  parecia  excitada  e  nervosa  ao  gesticular  para  que  entrássemos,    indicando  as  cadeiras  que  devíamos usar.  Sentamo-nos  na  beirada  das  poltronas,    não  tencionando    permanecer  por  muito  tempo.  Passaram-se segundos que  mais pareceram  horas, antes    que Papai  se  inclinasse para dizer: -  A senhora  possui  uma bela casa. Tornou  a  olhar  em  volta,  vendo  as  poltronas  elegantes  e  todos  os  outros    móveis  finos,  olhando  também  para os quadros. -  Tenho a  mais estranha  sensação  de dejà vu  -  murmurou consigo mesmo. A  cabeça  velada  da  mulher  se  inclinou  profundamente.  Suas  mãos  se  abriram  de    modo  expansivo, suplicantes, dando a impressão de implorarem que ele compreendesse o seu silêncio. Eu sabia que ela falava perfeitamente o  inglês. Por  que fingia? Excetuando  aquelas  mãos  aristocráticas  com  tantos  anéis  cintilantes,  a  velha    permaneceu  absolutamente imóvel.  Mas  as  mãos  nervosas  torciam  o  colar  de  pérolas    que    eu  sabia  que  ela  usava  sob  o  manto  negro. Papai  lhe  lançou um  olhar  penetrante  e ela se apressou  em  sentar  sobre as mãos. -  Não fala inglês?  -  indagou Papai  em  voz  tensa. Ela  meneou  vigorosamente  a  cabeça,  indicando  que  podia  entender  inglês.    Papai  franziu  a  testa.  Parecia intrigado, outra vez. -  Bem,  para  abordarmos  o  motivo  de  nossa  visita,  meu  filho  Jory  disse-me  que    a  senhora  e  Bart,  meu  filho caçula,  se  conhecem  muito bem.  Jory  informou  que  a    senhora    dá a  Bart  presentes  caros  e  o  faz  comer  doces entre as refeições. Sinto muito,    Sra.... Sra....? Fez  uma pausa, esperando  que ela dissesse o nome. Quando  isso  não aconteceu,    prosseguiu: -  Quando  Bart  vier  aqui  outra  vez,  quero  que  a  senhora  o  mande  de  volta  para    casa  e  não  lhe  dê  coisa alguma.  Ele  cometeu  uma  série  de coisas feias,  que    merecem    castigo.  A  mãe  dele  e  eu não  podemos  admitir que  uma  pessoa  desconhecida  se    interponha  entre  Bart  e  nossa  autoridade  sobre  ele.  Quando  a  senhora  lhe faz  as    vontades    aqui, nós  sofremos as  conseqüências. Durante  todo  esse  tempo,  Papai  se  esforçava  por  ver  as  mãos  da  velha  -  que    fazia  igual  esforço  para  mantêlas  escondidas. O  que  se  passava,  afinal?  Por  que  Papai  desejava  ver  as  mãos  dela?  Estaria    fascinado  por  todos  aqueles anéis fabulosos? Eu nunca imaginara que ele gostasse de coisas assim, pois Mamãe tinha aversão por qualquer  tipo de  jóias,  à exceção  de brincos. Então,  quando  Papai  parecia  observar  outra  das  telas  a  óleo,  as  mãos  da    velha  tornaram  a  aparecer,  subindolhe ao pescoço,  atraídas pelo colar  de    pérolas, que    parecia  agir  sobre elas  como um  imã. Papai  virou repentinamente  a cabeça. Falou fora de propósito, assustando a    velha  -  e a  mim, também. -  Esses anéis que  a senhora  está  usando... eu  já os  vi  antes! Quando  ela,  de  modo  por  demais  evidente,  ocultou  as  mãos  nas  mangas  largas    do  vestido,  Papai  ergueu-se de  um  salto,  como  se  atingido  por  um  raio.  Olhou    para    ela,  girou  mais  uma  vez  para  observar  a  suntuosa sala  e voltou a encará-la. Seus    olhos pareciam  trespassá-la. Ela se  encolheu. -  O...  melhor...  que...  se...  pode...  comprar...  com...  dinheiro...  -  disse    Papai,  pausadamente,  separando  cada palavra. Percebi  sua  amargura,  embora  não  conseguisse  entendê-la.  Tive  a  impressão  de    que,  ultimamente,  eu  não conseguia  entender  nada. -  Nada  é  bom  demais  para  a  elegante  e  aristocrática  Sra  Bartholomew  Winslow    -  disse  ele.  -  Esses  anéis, Sra. Winslow... por  que  não  teve  o  bom  senso  de  escondê-los?  Então,  talvez  seu  disfarce  desse    resultado,  embora  eu  não acredite. Conheço bem demais sua voz e seus gestos. Usa trapos negros, mas seus dedos brilham com os seus símbolos  de  status.  Esquece-se  do  que  esses  símbolos  nos  causaram?  Acredita  que    eu  tenha    esquecido aqueles dias intermináveis de sofrimento com o frio ou o calor, com a solidão - toda a nossa dor simbolizada por  um  colar  de  pérolas  e  esses  anéis  nos  seus  dedos?        Fiquei  chocado  e  confuso.  Nunca  antes  vira  Papai tão  perturbado.  Não  se    deixava  provocar  com  facilidade.  E  quem  era  aquela  mulher  que  ele  conhecia  e  eu não?  Por  que  a  chamara  de  Sra.  Bartholomew  Winslow    -  o  exato  nome  de  meu  meio-irmão?  Seria verdade  que a  velha era mesmo avó de Bart  -e que  Bart  não  era  filho  de Papai  Paul? Papai  continuou: -  Por  que,  Sra.  Winslow,  por  que?  Julgou  que  conseguiria  esconder-se  aqui    sem  que  nós  descobríssemos? Como  espera  iludir  alguém,  se  o  próprio  modo  de    sentar    e  manter  a  cabeça  traem  sua  verdadeira identidade?  Já  não  fez  o  suficiente  para    ferir  Cathy  e  eu?  Tem  que  voltar  para  fazer  mais?  Eu  deveria  ter adivinhado  que    você    estava  por  trás  da  confusão  de  Bart  -  por  trás  de  seu  comportamento  esquisito.  O    que andou  fazendo ao  nosso filho? -  Nosso filho?  -  repetiu ela.  -  Não quer  dizer, mais corretamente,  filho    dela? -  Mamãe!  -  explodiu ele,  antes  de olhar  para mim  com  ar  culposo. Olhando  de  um  para  outro,  refleti  que  era  maravilhoso  e,  ao  mesmo  tempo,    muito  estranho.  Afinal,  a  mãe dele estava livre do manicômio e era, realmente, avó de Bart. Contudo, por que ele a chamava de Sra. Winslow? Se era mãe  dele  e do Dr. Paul,  teria que  ser  Sra. Sheffield... ou não? Enquanto eu pensava tudo  isso, ela  estava dizendo: -  Senhor,  meus  anéis  não  são  tão  excepcionais.  Bart  me  disse  que  o  senhor    não  é  o  seu  verdadeiro  pai. Portanto,  faça  o  favor  de  retirar-se  da  minha  casa.    Prometo    não  permitir  que  Bart  torne  a  entrar  aqui.  Não vim  para  fazer  mal  a  ele  -  ou  a    qualquer  outra  pessoa.    Tive  a  impressão  de  que  ela  lançou  a  meu  pai  um olhar  de  advertência. Creio    que lhe oferecia uma escapatória,  por  minha  causa. -  Minha querida mãe,  o brinquedo  terminou. Ela  começou  a  soluçar,  cobrindo  o  rosto  velado  com  as  mãos.  Sem  dar    importância  às  suas  lágrimas,  Papai perguntou: -  Quando os  médicos  lhe deram  alta? -  No  verão  passado  -  sussurrou  ela,  baixando  as  mãos  de  modo  a  poder  usar    melhor  a  voz  para  implorar.  - Mesmo  antes  de  mudar-me  para  cá,  mandei  que  meus    advogados    fizessem  o  possível  para  ajudar  Cathy  e você  a  comprarem  o  terreno  que    escolhessem.  Ordenei-lhes  que  me  mantivessem  anônima,  pois  sabia  que vocês não    desejariam    meu  auxílio. Papai  deixou-se  cair  numa poltrona, dobrando-se  para  apoiar  pesadamente os    cotovelos nos  joelhos. Por  que  não estava  feliz  em  ver  a  mãe  livre  daquele lugar  horrível?  Agora,    ela  morava  ao  lado  -  e  ele  sempre fizera  questão  de  visitá-la  no  manicômio.  Não    amava    a  própria  mãe?  Ou  temia  que  ela  ficasse  louca  a qualquer  momento?  Julgava  que    Bart  poderia  ter  herdado  a  loucura  dela?  Ou  que  a  insanidade  da  avó pudesse  contaminar Bart, como uma doença física infecciosa? E por que minha mãe não gostava dela? Olhei  de  um  para  outro,  esperando  respostas  para  minhas  perguntas  silenciosas,  temendo  descobrir  que, afinal,  Paul  não  era  o  pai    de  Bart.  Quando  Papai  levantou  a  cabeça,  pude  ver-lhe  o  rosto  abatido,  as profundas    rugas  que desciam  do nariz  aos  cantos  da  boca. Rugas  que  eu nunca  vira antes. -  Não  posso, em  sã  consciência,  voltar  a chamá-la  de  Mamãe  -  disse  ele  num    tom  desprovido  de expressão.  - Se  me  ajudou  a  comprar  o  terreno  no  qual  se  situa    atualmente  minha  casa,  eu  lhe  agradeço.    Amanhã,  verá  o letreiro  indicando que está  à venda  e nós  nos mudaremos daqui  se    você    se  recusar  a mudar-se  primeiro. Não permitirei  que você  afaste  meus  filhos dos    pais. -  Da  mãe  -  corrigiu ela. -  Dos  únicos  pais  que  eles  possuem  -  replicou  ele.  -  Eu  deveria  saber  que    você  viria  para  cá.  Telefonei  para seu médico e  ele me informou que  lhe dera  alta, mas  não disse  quando, nem  para onde você  foi. -  Que  outro  lugar  tinha  eu  para  ir?  -  exclamou  ela  dolorosamente,  retorcendo    como  dois  trapos  desbotados  e inertes  as  mãos  cobertas  de  jóias.  Foi  como  se  estendesse  as  mãos  e  tocasse  Papai,  muito  embora  evitasse fazer    qualquer  movimento  na  direção  dele.  Cada  palavra  que  pronunciava,  cada  olhar  que  lhe  lançava  dizia que ela o  amava até eu podia    perceber. -  Christopher  -  suplicou  ela.  -  Não  tenho  amigos,  família  ou  lar...  e  lugar    nenhum  para  ir,  exceto  perto  de você  e dos  seus.  Tudo que  me resta são você,    Cathy    e os  filhos que ela gerou  -  meus  netos.  Você seria capaz de tomá-los de mim,  também? Todas as noites, rezo de joelhos para que você e Cathy me perdoem, recebam-me    de volta, me amem  como amavam  antes. Papai  parecia feito de  aço,  inatingível. Eu, porém, estava à  beira das    lágrimas. -  Meu  filho,  meu  amado  filho,  aceite-me  de  volta  e  diga  que  me  ama    novamente.  E  se  for  incapaz  disso, permita-me ao menos  viver  onde posso ver    ocasionalmente    os meus  netos. Fez  uma pausa, esperando  pela  reação  dele. Quando Papai  permaneceu calado,    ela prosseguiu: -  Eu  tinha  esperança  de  que  você  fosse  tolerante  se  eu  permanecesse  aqui  e    jamais  permitisse  que  ela conhecesse  minha  identidade.  Mas  eu  a  vi,  escutei-lhe  a  voz;  ouvi  a  sua,  também.  Escondendo-me    atrás  do muro  para  escutá-los.  Meu  coração  palpita.  Meu  peito  dói  de  saudade.  As    lágrimas    me  inundam  os  olhos quando  contenho minha  voz, que deseja gritar  para  fazê-los    saber  que  estou arrependida! Tão  terrivelmente arrependida! Papai  continuou em  silêncio. Assumira sua atitude  distante,  profissional. -  Christopher,  eu  daria  com  prazer  dez  anos  de  minha  vida  para  desfazer  os    males  que  causei!  E  daria  mais dez  anos  só  para  sentar-me  à sua mesa e  sentir-me bem  acolhida por  meus  netos! Tinha  lágrimas  nos  olhos;  eu  também.  Meu  coração  chorava  pela  mãe  de  meu    pai,  mesmo  enquanto  eu tentava adivinhar  por  que  motivo ele e  Mamãe  a odiavam. -  Christopher,  Christopher,  não  entende  por  que  uso  estes  trapos?  Cubro  o    rosto,  o  cabelo,  o  corpo,  para  que ela não saiba! Mas,  durante  todo  o  tempo,  fico  alimentando  a  esperança,  rezando  para  que  mais    cedo  ou  mais  tarde  vocês dois  me  perdoem  o  suficiente  e  permitam  que  eu  me  torne    novamente    membro  de  sua  família!  Por  favor, por  favor, aceite-me outra vez  como sua  mãe!    Se você  aceitar, talvez  ela  também  consiga! Como  podia  ele  ficar  ali,  sentado,  e  não  sentir  por  ela  a  mesma  piedade  que    eu  sentia?  Por  que  ele  não chorava como eu? -  Cathy  jamais  a perdoará  -  declarou  ele, sem  entonação. Por estranho que pareça, ela exclamou alegremente: -  Então, você  aceita? Diga,  por  favor... você  me perdoa! Estremeci, aguardando que  ele  falasse. -  Mamãe,  como  posso  dizer  que  a  perdôo?  Ao  dizer  isso,  eu  trairia  Cathy  -  e    jamais  serei  capaz  de  traí-la. Juntos estamos de  pé  e  juntos cairemos, ainda acreditando que procedemos corretamente, enquanto você    fica sozinha  e  cheia  de  remorso.  Nada  que  você  diga  ou  faça  pode  desfazer  a    morte.    E  cada  dia  que  você permanece  aqui  mais  aumenta  a  perturbação  mental  de  Bart.    Sabe  que  ele  está  ameaçando  nossa  filha adotiva, Cindy? -  Não!  -  exclamou  ela,  sacudindo  a  cabeça  com  tanta  veemência  que  os  véus    balançaram  violentamente.  - Bart  seria  incapaz  de machucar  a irmã! -  Seria  mesmo?  Cortou-lhe  os  cabelos  com  uma  faca,  Senhora  Winslow.  E    ameaçou  também  a  própria  mãe.    -  NÃO!  -  gritou ela, ainda mais apaixonadamente que  antes. Bart  ama a  mãe!    Faço agrados  e dou presentes  a Bart  porque  você  se  ocupa  demais  com  sua  vida  profissional  para  dar-lhe  toda  atenção  que  ele    merece  e necessita. Da mesma  maneira que  a mãe  dele se ocupa  demais com  a    própria    vida  para se importar  em  saber se  ele  recebe  amor  suficiente.  Mas  eu  cuido  das      necessidades  dele.  Tento  substituir  os  colegas  que  ele  não tem.  Faço  tudo  que  me    é  possível  para  torná-lo  feliz. E  se  dar-lhe  guloseimas  e  presentes  faz  com  que    ele  se sinta  melhor,  que  mal  estou  fazendo?  Além  disso,  quando  uma  criança  tem  à    disposição    todos  os  doces  que é  capaz  de  comer,  logo  enjoa  deles.  Eu  sei.  Já  fui  como  Bart,    adorando  sorvetes,  doces,  balas,  bolinhos  e outras  guloseimas... e hoje  em  dia    não    consigo suportá-las. Papai  se  pôs  de  pé  e  fez  um  gesto  para  mim.  Levantei-me  e  fui  para  perto    dele,  que  fitou  sua  mãe  com piedade. -  É  mesmo  uma  pena  que  você  tenha  vindo  tarde  demais  para  tentar  redimir-se    de  seus  atos.  Outrora,  eu ficaria comovido por qualquer palavra de ternura que você pronunciasse. Agora, sua simples presença mostra  quão  pouco  você  se  importa  que  sejamos  profundamente  magoados  outra  vez,    como    seremos  se você  permanecer  aqui. -  Por favor, Christopher  -  implorou ela.  -  Não tenho outra  família, nem    outras pessoas  que se  incomodem  em saber  se  estou  viva  ou  morta.  Não  me  negue  seu  amor,  pois  isso  matará  a  sua  melhor  parte,  a    parte  que  faz de  você  aquilo  que  é.  Você  nunca  foi  como  Cathy.  Sempre  conseguiu  apegar-se  a  uma  parcela  de  seu  amor. Agora, agarre- se a ela com força, Christopher. Agarre-se bem e talvez, eventualmente, consiga  ajudar Cathy  a encontrar  também  um  pouco de  amor  por  mim! Soluçou, fraquejando. Ou, se  não  amor, ajude-a a  encontrar  clemência, pois confesso que poderia    ter  servido melhor  a meus  filhos. Então,  Papai  se  comoveu,  mas  não  por  muito  tempo.    -  Em  primeiro  lugar,  tenho  que  pensar  na  saúde  de Bart. Ele nunca teve muita  confiança em si mesmo. Suas estórias o  perturbaram tanto que ele passou a sofrer    de  pesadelos.  Deixe-o  em  paz!  Deixe-nos  em  paz!  Vá  embora,  fique  longe  de  nós,    não  lhes pertencemos  mais.  Há  muitos  anos,  nós  lhe  demos  muitas  oportunidades  de    provar    que  nos  amava.  Mesmo quando  fugimos,  você  poderia  ter  acatado  a  intimação  do    juiz  e  nos  poupado  a  dor  de  sabermos  que  não éramos  suficientemente  amados  para    que    você  ao  menos  se  apresentasse  e  mostrasse  algum  interesse  por nosso  futuro. Tomou fôlego e acrescentou: -  Portanto,  saia  de  nossas  vidas!  Construa  uma  vida  nova  para  você  mesma,    com  a  riqueza  que  nos sacrificou para conseguir.  Deixe que Cathy  e eu vivamos a    vida    que conseguimos à  custa de tanto  trabalho  e esforço. Fiquei  pasmo...  Do  que  ele  estava  falando?  O  que  sua  mãe  fizera  aos  dois    filhos,  Christopher  e  Paul?  E  o que tinha minha mãe  a ver  com  a vida deles na    juventude? Ela  também  se  levantou,  alta  e  esbelta.  Então,  vagarosamente,  removeu  o  véu    que  lhe  cobria  a  cabeça  e  o rosto.  Prendi  a  respiração.  Papai  também.  Nunca    antes    eu  vira  uma  mulher  capaz  de  ser,  ao  mesmo    tempo, tão  feia  e  tão  bonita.  As  cicatrizes  davam  a  impressão  de  que  um  gato  lhe    arranhara  o  rosto.  As  bochechas estavam  flácidas  pela  idade;  o  bonito  cabelo    louro    mesclado  com  mechas  grisalhas.  Eu  me  sentira imensamente curioso por  ver  de    perto o  que ela  ocultava sob o véu. Agora, desejava não ter  visto. Papai  baixou a  cabeça. -  Precisava fazer  isso? -  Sim  -  disse ela.  -  Queria que você  visse o  que  fiz  para  não mais me parecer    com  Cathy. Apontou para  a cadeira  de  balanço. -  Vê essa cadeira?  Tenho uma igual  em  cada aposento  desta casa. Indicou todas as  confortáveis poltronas, forradas com  almofadas espessas  e    macias. -  Sento-me  em  duras  cadeiras  de  pau,  a  fim  de  castigar-me.  Uso  os  mesmos    trapos  negros  todos  os  dias. Mantenho espelhos nas paredes, para poder ver como sou velha e feia atualmente. Quero sofrer pelos pecados  que  cometi  contra  meus  filhos.  Detesto  este  véu,  mas  faço  questão  de  usá-lo.  Não  consigo  enxergar direito  através  dele,  mas    mereço  isso,  também.  Faço  o  possível  a  fim  de  criar  para  mim  mesma  o  mesmo tipo    de    inferno  que  criei  para  o  sangue  do  meu  sangue.  E  continuo  a  acreditar  que  ainda    chegará  o  dia  em que  Cathy  e  você  reconhecerão  que  estou  procurando  pagar  meus    pecados,    de  modo  que  possam  perdoarme e  voltar  para mim, transformando-nos outra vez    numa família. E,  quando você  e Cathy  conseguirem  isso, poderei  ir  em  paz  para    meu  túmulo.    Então,  quando  eu  me  reunir  a  seu  pai,  talvez  ele  não  me  julgue  com demasiada    severidade. -  Oh!  -  exclamei  espontaneamente.  -  Eu  a  perdôo  por  qualquer  coisa  que  tenha    feito!  Sinto  que  tenha  que  se vestir  de negro o  tempo todo, com  um  véu cobrindo    o  rosto! Virei-me para Papai, puxando-lhe a  manga.
-  Diga  que  a  perdoa,  Papai.  Por  favor,  não  a  faça  sofrer  mais!  Ela  é  sua  mãe    e  eu  seria  sempre  capaz  de perdoar  minha mãe, não  importa o que ela faça. Ele  falou com  minha avó como se  nem  me tivesse  escutado: -  Você  sempre soube convencer-nos a  fazer  o que você  queria. Eu  nunca  o  ouvira  falar  com  tamanha  frieza.        -  Mas  já  não  sou  um  menino  -  prosseguiu.  -  Agora,  sei  como resistir  à  sua    tentação,  pois  tenho  uma  mulher  que  jamais  me  decepcionou  em  coisas  importantes.  Ela  me ensinou  a  não  ser  tão  crédulo  como    antes.  Você  quer  Bart  porque  julga  que  ele  devia  ter  sido  seu.  Mas  não pode  tê-lo.  Bart    nos  pertence.  Eu  costumava  pensar  que  Cathy  errou  ao  procurar  vingança  e  roubar    Bart Winslow  de  você.  Mas  ela  não  errou  -  fez  o  que  tinha  que  fazer.  E  assim,    temos    dois  filhos  em  vez  de apenas um. -  Christopher!  -  bradou  ela,  desesperada.  -  Você  não  quer  que  o  mundo  tome    conhecimento  de  sua indiscrição!  Claro que  não  quer. -  E  da  sua,  também  -  replicou  ele  friamente.  -  Se  você  nos  delatar,  estará    também  delatando  a  si  mesma.  E lembre-se  de que  éramos apenas  crianças. Acha que    o    juiz  e o  júri  seriam  favoráveis  a nós  ou a você. -  Para  o  bem  de  vocês!  -  gritou  ela  quando  saímos  da  sala  e  nos  encaminhamos    à  porta  principal  da  mansão (Papai  foi  obrigado  a  empurrar-me  à  sua  frente,  pois    eu  queria  ficar,  com  pena  dela).  -  Ame-me  outra  vez, Christopher!  Por  favor,    permita que  eu me redima! Papai  girou  nos  calcanhares,  rubro  de  raiva:  -  Não  posso  perdoá-la!  Você  só  pensa  em  si  mesma.  Como sempre só pensou  em    si  mesma. Eu não a conheço, Sra. Winslow. Quem  me dera  jamais tê-la conhecido! Oh, Papai, pensei  eu, você  se  arrependerá. Perdoe-a, por  favor. -  Christopher  -  chamou  ela  mais  uma  vez,  a  voz  tão  sumida  e  fina  que  chegava    a  soar  velha  e  áspera.  - Quando você e Cathy conseguirem amar-me novamente, encontrarão vidas melhores para vocês e seus filhos. Existe  tanta  coisa  que eu poderia  fazer  para  ajudá-los, se ao menos  vocês  permitissem. -  Dinheiro?  -  retrucou  ele  desdenhosamente.  -  Vai  usar  chantagem?  Temos    bastante  dinheiro.  Temos bastante  felicidade.  Conseguimos  sobreviver,    conseguimos  amar    -e  não  matamos  ninguém  para  conseguir  o que temos. Matamos?  Ela  matara alguém? Papai  puxou-me pela mão ao andar  furiosamente para a  porta. No caminho da    mansão à  nossa casa, eu disse: -  Papai,  tenho  a  impressão  de  que  senti  o  cheiro  de  Bart  naquela  sala.  Ele    podia  estar  escondido,  escutando. Ele  estava lá, tenho  certeza. -  Muito bem-   disse ele,  num  tom  fatigado.  -  Volte e  procure por  ele. -  Papai,  por  que  não  a  perdoa?  Acredito  que  ela  esteja  realmente  arrependida    do  que  fez  para  que  você  a odiasse  -  e é  sua  mãe. Sorri  e puxei-lhe o braço, querendo que  ele voltasse  comigo e dissesse a  ela    que a  amava. -  Não seria bom  termos ambas  as minhas  avós em  casa, no Natal? Ele  sacudiu  a  cabeça  e  seguiu  em  frente,  deixando-me  sozinho  para  correr  de    volta  à  mansão.  Deu  apenas alguns passos,  antes  de  voltar-se  para mim: -  Jory, prometa não  contar  nada  a  sua  mãe  a  respeito desta  noite. Prometi,  mas  fiquei  insatisfeito.  Estava  insatisfeito  com  tudo  o  que    escutara.  Não  sabia  se  ouvira  toda  a verdade  a  respeito  de  meu  pai  e  sua  mãe,  ou    apenas    parte  de  uma  comprida  estória  secreta  que  nunca  me haviam  contado.  Tive  ímpetos    de  correr  atrás  de  Papai  e  perguntar  por  que  ele  odiava  tanto  a  própria  mãe, mas compreendi, por  sua expressão facial, que ele não me diria. De certo modo esquisito, alegrei-me  por não saber  demais. -  Se  Bart  estiver  lá,  traga-o  para  casa  e  leve-o  às  escondidas  para  o    quarto,  Jory.  Por  favor,  pelo  amor  de Deus,  não  torne  a  mencionar  à  sua  mãe    qualquer  coisa    a  respeito  daquela  mulher.  Eu  cuidarei  dela.  Irá embora  e  tudo  voltará  a  ser  como  antes.        Sendo  como  eu  era,  acreditei,  embora  sentisse  pena  da  mãe  dele. Não devia a    ela a  mesma lealdade  que devia  a ele, mas  não pude  reprimir  a pergunta mais  importante: -  Papai,  o  que  fez  sua  mãe  para  que  você  a  odeie  tanto?  E  se  a  odeia,  por    que  sempre  insistia  em  visitá-la, quando  Mamãe  não  queria?  Ele  fitou o  espaço  e,  como se  de muito  longe, sua voz  me chegou aos  ouvidos: -  Jory,  temo  que  você  venha  a  conhecer  toda  a  verdade  dentro  de  muito  pouco    tempo.  Dê-me  tempo  para encontrar  as  palavras  adequadas,  a  verdadeira  explicação    que  satisfará  sua  necessidade  de  saber.  Mas acredite: sua mãe e eu sempre  tencionamos contar-lhe tudo. Estávamos apenas esperando que você e Bart crescessem o suficiente. E, quando ouvir nossa estória, creio que você compreenderá como posso, ao mesmo tempo,  amar  e  odiar  minha  mãe.  É  triste  dizer,  mas  existem  muitos  filhos  que  se  sentem  ambiguamente  em relação  aos  pais.  Abracei-o,  embora  não  fosse  uma  atitude  adulta.  Eu  o  amava  e  se  isso  também    não  fosse coisa de  adulto, não valia a  pena  a  gente crescer. -  Não se preocupe com  Bart, Papai  -  disse  eu.  -  Vou levá-lo para casa  em    segurança. Consegui  esgueirar-me  bem  a  tempo  por  entre  os  portões,  que  se  fecharam    atrás  de  mim  com  um  leve  ruído metálico.  Então... silêncio. Se  existia no mundo algum  local  mais  silencioso que  aquele  enorme    terreno,  eu  nunca  lá  estivera. Dei  um  pulo  e  escondi-me  depressa  atrás  de  uma  árvore.  John  Amos  Jackson    segurava  Bart  pela  mão  e  o afastava da  mansão. -  Agora, você  sabe o que precisa fazer, não sabe?        -  Sim, senhor  -  entoou Bart,  como em  transe. -  Sabe o que  acontecerá se  não fizer  o que eu mandar,  não sabe? -  Sim, senhor. Coisas  ruins  acontecem  a todo mundo  -  inclusive a  mim. -  Sssim, coisasss  ruinsss, que você  lamentará. -  Coisas  ruins que eu  lamentarei  -  repetiu meu irmão. -  O homem  nasce  da mulher  para o pecado... -E aqueles que  causam  o pecado... -  Devem  sofrer. -  E como devem  eles  sofrer? -  De todos os modos, por  todos os  modos. Serão  redimidos pela morte. Congelei-me onde  estava agachado, não  acreditando em  meus  ouvidos. O que    fazia aquele homem  a Bart? Saíram  do  alcance  de  minha  audição  e  espiei  bem  a  tempo  de  ver  Bart    desaparecer  por  cima  do  muro,  a caminho  de  casa.  Esperei  até  que  John  Amos  Jackson  retornasse  à  mansão  com  seu  andar  arrastado  e apagasse    todas  as luzes. Então,  de  repente,  dei-me  conta  de  que  não  ouvira  os  latidos  de  Maçã.  Um  cão    do  tamanho  e  idade  de  Maçã não  deveria  latir  para  avisar  aos  de  casa  que  havia  um  intruso  no  terreno?  Esgueirei-me  até  o    celeiro  e chamei  Maçã  pelo nome. Ele não apareceu correndo  para me lamber  o    rosto e  sacudir    o  rabo. -  Maçã  -  tornei  a  chamar, mais  alto. Acendi  um  lampião  de  querosene  que  estava  pendurado  perto  da  porta  e    iluminei  a  baia  que  servia  de  lar para  Maçã. Prendi  a  respiração  !Oh, não!  NÃO! Quem  seria  tão  cruel  a  ponto  de  matar  um  cão  de  fome,  daquela  maneira?  Quem    seria  capaz,  depois  disso, de cravar um forcado naquele pobre monte de ossos coberto por lindo pêlo? Agora, ele estava todo ensangüentado.  Escuro,  com  sangue  velho,  que  se  coagulara  numa  cor  de  ferrugem.    Corri    para  fora  do celeiro  e  vomitei.  Uma  hora  mais  tarde,  Papai  e  eu  estávamos    cavando  um  túmulo  e  enterrando  um  enorme cão  que  não  tivera  oportunidade  de    chegar  à  maturidade.    Ambos  sabíamos  que  Bart  seria  internado  para sempre, se a  notícia se espalhasse. -  Talvez  não  tenha  sido  ele  -  disse  Papai  quando  voltamos  para  casa.  -  Não    consigo  acreditar  que  ele  fosse capaz. A  essa  altura,  eu  conseguia  acreditar  em  qualquer  coisa.Havia  uma  velha  que  morava  ao  lado.Usava  trapos pretos e  cobria  o rosto  de negro.Era  duas  vezes  sogra de Mamãe, duplamente odiada,       E muito mais. Tudo  que  eu  podia  fazer  era  imaginar,  imaginar  o  que  ela  fizera  a  meus    pais.  Papai  ainda  não  explicara  toda a  verdade,  como  havia  prometido.  Embora  eu    tivesse    um  vislumbre  de  uma  vaga  solução  deixara-me dominar  pela  emoção  e,  por  um    momento,    pensei  que  ela  era  também  minha  avó,  pois  Chris,  no  fundo  de meu  coração,  era  meu  verdadeiro  pai.Mas,  na  verdade,  o  filho  de  Paul  era  Bart  e  eu  sabia  por  que  motivo  sua avó    o  queria  tanto  -  e  não  a  mim.  Eu  pertencia  a  Madame  Marisha,  assim  como  Bart  pertencia  a  ela.  Era  o parentesco de sangue que  os levava a se amarem. E eu suspirava, porque era apenas neto torto de uma mulher    tão  misteriosa  e  comovente,  que  se  julgava  obrigada  a  sofrer  para  redimir  seus    erros.  Refleti  que precisava cuidar  melhor  de  Bart  -  protegê-lo, orientá-lo,    mantê-lo    na linha. Imediatamente,  tive  um  impulso  repentino  que  me  levou  a  correr  ao  quarto  de    Bart,  que  estava  deitado  de lado  na  cama,  com  o  polegar  na  boca.  Parecia  um  bebê    -  apenas  um  menininho  que  sempre  vivera  à  minha sombra, sempre tentando igualar  o que eu fizera na sua idade, jamais conseguindo atingir o ponto que eu alcançara.    Não  falara  mais  cedo,  não  andara  com  menos  idade  nem  sorrira  até  quase  completar    um  ano  de idade.  Era  como  se  ele  soubesse,  desde  o  berço,  que  sempre  seria  o    número    dois,  jamais  o  número  um. Agora,  encontrara  a  única  pessoa  no  mundo  que  o    colocava  em  primeiro  lugar.  Alegrei-me  por  Bart  possuir uma  avó  de  verdade,  só    para  ele.    Embora  ela  só  se  vestisse  de  negro,  eu  podia  perceber  que,  outrora,  fora muito bonita.  Mais bonita que minha Avó Marisha  jamais poderia    esperar  ser  quando  jovem.
Ainda assim... ainda assim... estavam  faltando algumas  peças do quebra-cabeça. John  Amos  Jackson...  onde  se  ajustava  ele  no  quadro?  Por  que  uma  avó    carinhosa,  uma  mãe  que  desejava unir-se  ao  filho, esposa e  neto... por  que    traria  ela consigo    aquele velho detestável?

OS ESPINHOS DO MAU ( Concluído) Onde histórias criam vida. Descubra agora