Onde está mamãe?

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Havia  alguém  que  eu  precisava  expulsar.  Alguém  que  parecia  ter  iniciado  um    furacão  que  demorava  para sempre e arruinava nossas vidas. Papai e eu conversamos muito a esse respeito, mas a situação continuava muito  tensa  e  eu  estava  muito  confuso.  Por  que  ela  tivera  que  aparecer  e  começar    tudo    aquilo?  Finalmente, não  consegui  conter  a  raiva  por  mais  tempo  e,  tão  logo  a    aula  de  balé  terminou,  corri  para  o  escritório  de Madame M. -  Eu  a  detesto,  Madame,  por  todas  as  coisas  ruins  que  disse  à  minha  mãe.    Tudo  tem  sido  horrível,  a  partir daquele  dia.  Deixe-a  em  paz,  de  agora  em  diante,  ou  irei  embora  e  nunca  mais  voltarei  a  vê-la.  Você    veio  de tão  longe  apenas  para  fazer  minha  mãe  ficar  doente?  Agora,  ela  não  pode  mais  dançar  e  isto  já  é  bastante ruim. Se você não  parar de causar tantas encrencas, eu também abandonarei o balé. Fugirei e você  jamais me  verá  outra  vez.  Pois,  ao  estragar  as  vidas  de  meus  pais,  não  arruinou  apenas    as  vidas  deles,  como também  a  minha e  a de  Bart. Ela  empalideceu, parecendo muito velha. -  Você  me  soa  tão  semelhante  a  seu  pai.  Julian  costumava  fuzilar-me  com  os    olhos  escuros,  exatamente desta mesma  maneira. -  Eu amava você. -  Você  me amava.... -  Sim,  amava.  Quando  julgava  que  você  gostava  de  mim  e  de  meus  pais;  então,    eu  acreditava  que  a  dança era a  coisa  mais  maravilhosa do mundo:  Agora, não  acredito  mais. Ela  pareceu ferida,  como  se  eu  a tivesse  apunhalado  no  coração. Vacilou,    apoiando-se  à  parede,  e teria  caído se  eu não a  amparasse. -  Por  favor,  Jory  -  disse,  arquejante.  -  Não  fuja.  Não  abandone  a  dança.  Se    o  fizer,  minha  vida  perderá  o significado, Georges  terá vivido em  vão, Julian  também. Não tire  tudo daqueles que eu amei  e  perdi. Senti-me  tão  confuso  que  não  consegui  falar.  Portanto,  fugi,  correndo,  como    Bart  sempre  fugia  quando  as coisas  ficavam  muito  pesadas  para ele.    Atrás  de  mim, Melodie  chamou: -  Onde vai  com  tanta pressa, Jory? Não  íamos tomar  uma soda  juntos? Continuei  correndo.  Não  me  importava  mais  com  nada  ou  com  ninguém.  Minha    vida  estava  toda embaralhada.  Meus  pais  não  eram  casados.  Como  poderiam  ser?  Que  sacerdote  ou  juiz  de  paz  casaria  um irmão e  uma    irmã? Quando  cheguei  à  calçada,  diminuí  o  passo  e  fui  a  um  parque  público,  onde  me    sentei  num  banco  pintado  de verde.  Permaneci  ali  por  longo  tempo,  fitando  meus    pés.    Pés  de  bailarino.  Fortes,  calejados,  prontos  para  a atividade profissional nos  palcos. Agora, o que faria quando crescesse? Não desejava realmente ser médico, embora  tivesse afirmado  isto algumas  vezes, a fim  de  agradar  o homem  que eu amava como    pai. Que piada! Por  que  tentar  mentir  a  mim  mesmo?  Não  existiria  vida  para  mim    sem    a  dança.  Quando  eu  punia  Madame M., minha mãe, meu padrasto  -  que era, na    verdade, apenas  meu tio  -, punia ainda  mais a  mim  mesmo. Levantei-me  e  olhei  em  volta,  para  todas  as  pessoas  idosas  que  se  sentavam,    solitárias,  nos  bancos  do parque.  Imaginei  que  um  dia  eu  seria  como  elas  e  disse    com  meus  botões:  Não.  Saberei  quando  admitir  que cometi  um  erro. Saberei  pedir    desculpas. Madame  M.  estava  em  seu  escritório,  a  cabeça  apoiada  nas  mãos  magras,  quando    abri  silenciosamente  a porta e  entrei. Devo ter  feito algum  ruído, pois  ela    ergueu    a cabeça  e vi  lágrimas  em  seus olhos. A alegria  os iluminou quando  ela me viu.    Contudo, Madame não  mencionou o que se  passara  entre nós meia hora antes. -  Tenho um  presente para  sua mãe  -  disse  ela,  em  sua estridente voz  natural. Abriu uma gaveta da  mesa  e dela retirou  uma caixa  dourada  amarrada com  fita    de cetim  vermelho. -  Para  Catherine  -  disse  ela,  lacônica,  sem  me  encarar.  -  Você  tinha  razão  a    respeito  de  tudo.  Eu  estava pronta  para  tirá-lo  de  seu  pai  e  de  sua  mãe,  porque    julgava  estar  fazendo  a  coisa  certa  para  você.
Compreendendo,  agora,  que  ia    fazer  o  que  desejava  para  mim,  não  para  você.  O  lugar  dos  filhos  é  com  as mães,    não com    as  avós.Sorriu com  amargura e  olhou  para  a bonita caixa  dourada: -  Bombons  Lady  Godiva.  O  tipo  que  sua  mãe  adorava  quando  morava  em  Nova    Yorque  e  dançava  na companhia  de  balé  de  Madame  Zolta.  Na  época,  não  podia  comer  bombons  por  medo  de  engordar,  embora fosse  o    tipo  de  bailarina  que  queimava  mais  calorias  que  a  maioria  das  outras,  quando  dançava.  Mesmo assim,  eu  lhe  permitia  comer  apenas  um    bombom  por  semana.  Agora,  que  ela  não  poderá  voltar  a  dançar, pode comer  o que bem  entender. Era  uma frase  bem  ao gosto de Bart. -  Mamãe  está muito gripada  -  expliquei, tão lacônico quanto  ela.  -  Obrigado    pelos  bombons e  pelo que acaba de dizer.  Sei  que  Mamãe  se  sentirá melhor  por  saber  que você  não  tentará roubar-me dela. Então,  sorri  e  beijei-lhe  o  rosto  ressecado.  -  Além  disso,  não  entende  que  há  bastante  de  mim  para compartilhar?  Se  você    não  for  avarenta,  ela  também  não  será.  Mamãe  é  maravilhosa.  Nunca  me  revelou  que existiam  dificuldades  entre  vocês duas. Sentei-me na  única  cadeira  existente no escritório  e cruzei  as  pernas. -  Estou  com  medo,  Madame.  As  coisas  lá  em  casa  estão  ficando  malucas.  Bart    comporta-se  de  modo  cada vez  mais  esquisito.  Mamãe  está  doente,  gripada;  Papai    parece    muito  infeliz.  Trevo  morreu,  Emma  já  não sorri. O  Natal  está chegando e nada se    faz  a  respeito.  Se continuar  assim, acho que sou  eu quem  vai  estourar. -  Hahf  -  fungou  ela,  voltando  ao  normal.  -  A  vida  é  sempre  assim:  vinte    minutos  de  misérias  para  cada  dois segundos de  alegria. Portanto,  seja  eternamente  grato  por  esses  dois  segundos  e  trate  de  apreciá-los.    Aprecie  o  que  conseguir encontrar  de  bom, não importa  o quanto  isso lhe custe. Meus  sorrisos  eram  falsos.  Interiormente,  eu  estava  deveras  deprimido.  As    palavras  cínicas  de  Madame  M. não me ajudavam. -  Tem que ser  realmente  assim?  -  ... perguntei. -  Jory  -  disse  ela,  aproximando  de  mim  o  rosto  branco  como  massa  de  pastel  -  ,  pense  bem  nisso:  se  não existirem  sombras, como  poderá  existir  a luz  do sol? Permaneci  sentado  no  escritório  mal  iluminado  e  permiti  que  aquela  espécie    de  filosofia  azeda  me  desse  um pouco de paz. -  Está bem, entendo o  que quer  dizer, Madame. E se  é incapaz  de pedir    desculpas,  eu não  sou. Ela  murmurou, parecendo  magoada: -  Desculpe-me. Abracei-a com  força.  Tínhamos chegado a  um  tipo de  compromisso. Durante todo o  trajeto até  em  casa, segurei  no colo  a caixa  de bombons,    morrendo de vontade de  abri-la. -  Papai  -  comecei,  hesitante  -,  Madame  M.  enviou  esta  caixa  de  bombons  para    Mamãe.  Uma  espécie  de reconciliação,  creio. Ele  me lançou um  olhar  e um  sorriso. -  Muito bem. -  Acho  muito  estranho  que  Mamãe  permaneça  gripada  por  tanto  tempo.  Nunca    fica  doente  por  mais  que  um ou dois dias. Não  acha que  ela parece  muito    fatigada? -  É  aquele  livro,  aquele  maldito  livro  -  resmungou  ele,  observando  o  tráfego    intenso,  ligando  os  limpadores de  pára-brisas,  debruçando-se  para  ver  melhor  o  sinal  de  tráfego  à  direita.  -  Gostaria  que    parasse  de  chover. A chuva sempre incomoda sua mãe. Então,  ela  fica  acordada  até  às  quatro  da  madrugada  e  levanta  da  cama  ao  raiar    do  dia,  para  escrever  à  mão em  papel  pautado,  com  medo  de  usar  a  máquina  de  escrever  e  me  acordar  com  o  barulho.  Quando  se acendem    as  duas  pontas  de  uma  vela,  algo  tem  que  ceder  e,  no  caso  dela,  foi  a  saúde.  Primeiro,  o  acidente; agora, essa  gripe. Lançou-me outro olhar  de  esguelha. -  Além  disso,  há  Bart  e  seus  problemas.  E  você,  com  os  seus.  Jory,  agora    você  conhece  nosso  segredo.  Sua mãe  e eu conversamos a  respeito;  você  e eu    discutimos    o assunto durante horas  e  horas. É capaz  de perdoarnos?  Não  consegui  ajudá-lo a    entender? Baixei  a cabeça, envergonhado. -  Estou procurando  entender  . -  Procurando?  É  difícil?  Não  lhe  contei  o  que  se  passou  conosco,  todos    quatro  trancados  num  único  quarto, crescendo,  descobrindo em  plena  adolescência  que só podíamos contar  um  com  o outro... -  Certo,  Papai.  Todavia,  quando  fugiram  e  encontraram  um  novo  lar,  com  o  Dr.    Paul,  você  não  poderia  ter encontrado outra  pessoa?  Por  que  teve que  ser  ela? Suspirando, ele comprimiu  os lábios. -  Pensei  que  lhe  tivesse  explicado  como  me  sentia,  então,  com  relação  às    mulheres.  Sua  mãe  estava  sempre presente  quando  eu  necessitava  dela.  Nossa  própria  mãe  nos  traíra.  Quando  somos  jovens,  fixamos  na    mente idéias  muito  fortes. Sinto  tê-lo  magoado com  minha incapacidade de  amar    qualquer    pessoa à  exceção dela. O  que  tinha  eu  a  dizer?  Não  conseguia  entender.  O  mundo  estava  cheio  de    mulheres  jovens  e  belas  -  aos milhares,  aos  milhões. Então,  pensei  em  Melodie.  Se  ela  morresse,  seria  eu  capaz  de  sair  à  procura  e    encontrar  outra?  Pensei  muito a  respeito,  enquanto  Papai  permaneceu  calado,  os    lábios    apertados  numa  linha  fina,  e  a  chuva  caía,  caía, fustigando  com  violência.  Era    como  se  ele  pudesse  ler  meus  pensamentos.  Porque  sim,  se  algum  dia  eu tivesse a infelicidade de perder Melodie, se ela desaparecesse e eu nunca mais tornasse a vê-la, eu continuaria  a  viver  e,  eventualmente,  encontraria  outra  para  tomar  seu  lugar.  Qualquer  coisa  seria  melhor que... -  Jory,  sei  o  que  você  está  pensando.  Tive  anos  e  anos  para  refletir  sobre  o    motivo  pelo  qual  tinha  que  ser minha  irmã  e  mais  ninguém.  Talvez  fosse  porque  eu    perdera  a fé  em  todas  as  mulheres,  devido  ao  que  nossa mãe  nos  fazia,  e  só  minha    irmã  conseguisse  consolar-me.  Foi  ela  quem  impediu  que  eu  desmoronasse durante    aqueles  longos  anos  de  privações.  Foi  ela  quem  fez  daquele  único  quarto  uma  casa    inteira.  Foi  uma mãe  para  Cory  e  Carrie.  Fez  aquele  quarto  parecer  um  lar,    enfeitando  a    mesa,  arrumando  as  camas,  lavando as  roupas  na  banheira,  estendendo-as  no  sótão    para  secar,  mas,  acima  de  tudo,  foi  o  modo  como  ela  dançava no  sótão  que  me  fez    amá-la,  gravando-a  para  sempre  em  meu  coração.  Pois,  enquanto  eu  permanecia  nas sombras    a  observá-la,  parecia-me  que  ela  dançava  exclusivamente  para  mim.  Julguei  que    ela    fizesse  de mim  o  príncipe  de  seus  sonhos,  como  eu  fazia  dela  a  princesa  dos  meus.  Na  época,  eu  era  romântico,  até mais  do    que  ela.  Sua  mãe  é  diferente  da  maioria  das  mulheres,  Jory.  Era  capaz  de  viver    mergulhada    em ódio  e,  apesar  disso,  florescer.  Eu  não.  Eu  precisava  de  amor,  ou  morreria.    Quando  fugimos  de  Foxworth Hall,  ela  flertou  com  Paul,  desejando  que  ele  a    tomasse    de  mim.  Casou-se  com  seu  pai  quando  a  irmã  de Paul,  Amanda,  lhe  contou  uma    mentira.  Foi  uma  boa  esposa  para  seu  pai,  mas,  quando  este  morreu,  ela fugiu    para  as  montanhas    da  Virgínia,  a  fim  de  completar  seus  planos  de  vingança,  que  incluíam  roubar  o segundo  marido  de  nossa  mãe.  Como    você  veio  a  descobrir,  Bart  é  filho  do  marido  de  nossa  mãe  e  não  filho de  Paul,  como  nós  lhe  disséramos.  Na  ocasião,  precisávamos    mentir  para  proteger  vocês.  Então,  depois  que sua  mãe  se  casou  com  Paul  e  este    morreu,    ela  me  procurou.  Eu  esperava  durante  todos  aqueles  anos, sabendo,  de  algum  modo,  que  eventualmente  ela  me  pertenceria  se  eu  conservasse  minha  fé  e mantivesse  acesa  a chama  de  meu  primeiro  amor.  Era tão   fácil  para  ela amar  outros  homens.    Era impossível para  mim  encontrar  qualquer  mulher  capaz  de  comparar-se  a  ela.    Sua    mãe  me  conquistou  quando  eu  tinha mais  ou  menos  a  mesma  idade  que  você  tem    atualmente,  Jory.  Tome  cuidado  com  quem  amar  em  primeiro lugar,  pois  essa  será  a    garota    que  você  jamais  esquecerá.Deixei  escapar  o  fôlego  que  vinha  prendendo  há muito  tempo,  refletindo  que  a    vida  nada  tinha  de  igual  aos  contos  de  fada  do  balé  ou  às  novelas  da  TV.  O amor    não chegava e  partia  com  as  estações do ano, como eu esperava vagamente que    acontecesse. A  viagem  até  em  casa  pareceu  durar  uma  eternidade.  Papai  foi  obrigado  a    dirigir  muito  devagar  e  com extrema cautela,  a intervalos, lançava um  olhar  ao    relógio    do painel. Eu olhava pelas  janelas  do  carro. Por  toda  parte  havia  decorações  de  Natal.  Eu  avistava  nas  vitrines  e  janelas    árvores  de  Natal  alegremente iluminadas.  Olhava  com  nostalgia  as  janelas  pelas  quais  passávamos,  vendo  tudo  daquela  maneira    indistinta que  torna  as  cenas  dez  vezes  mais  românticas  quando  chove.  Desejei    que  fosse  o    ano  anterior.  Desejei  que tivéssemos  a  felicidade  que,  então,  me  parecia  tão  permanente.  Desejei  que  aquela  velha  da    mansão  vizinha jamais  tivesse  surgido  em  nossas  vidas  e  estragado  tudo  o  que  eu    julgara    perfeito.  Desejei,  também, que  Madame M. nunca tivesse  chegado para imiscuir-se  nas  vidas de  meus  pais,    revelando  todos  os segredos que  seria  melhor  ocultar.  Pior  do  que  tudo,  aquelas    duas  velhas    tinham  destruído  o  orgulho  que  eu  sentia  de meus  pais.  Por  mais  que tentasse  o  contrário,  eu  ainda  me  ressentia    contra  o  que  elas  estavam  fazendo, o  que tinham  feito,  arriscando  escândalo,    arriscando    arruinarem  a  minha  vida,  a  vida  de  Bart  e,  também,  a  de Cindy  -  e  tudo  porque  um    homem  fora  incapaz  de  encontrar  outra  mulher  para  amar.  E  aquela  única  mulher na    vida dele devia ter  feito  alguma coisa  para mantê-lo fiel  à  sua  espera. -  Jory  -  disse  Papai,  quando  entramos  na  alameda  de  acesso  à nossa casa.  -    De  vez  em  quando,  ouço  sua  mãe queixar-se  a  respeito  de  capítulos  que  não    consegue    encontrar.  Sua  mãe  não  é  o  tipo  de  pessoa  que  se descuide  em  qualquer  projeto    importante  de  trabalho.  Presumo  que  você  esteja  retirando  os  capítulos completos    da    gaveta, a  fim  de ler  o que ela escreveu...
Deveria eu  contar  a verdade? Fora  Bart  quem  primeiro  roubara  páginas  do  original  de  Mamãe.  Todavia,  meu    senso  de  moralidade  não  me impedira de lê-los também. Embora, até aquele momento, eu não tivesse chegado ao final. Por algum motivo,  eu  não  conseguia  ler  além  da  época  em  que  o  irmão  traíra  pela  primeira  vez  a  irmã,  possuindo-a  à força.  Estava  além  dos    limites  de  minha  compreensão  que  aquele  homem  sentado  ao  meu  lado  fosse  capaz de    estuprar    a  própria  irmã  quando  esta  tinha  apenas  quinze  anos.  Estava  além  dos  limites  de    minha capacidade de  aceitar  tal  procedimento, por  mais desesperada que  fosse  a    sua    necessidade, ou quaisquer  que fossem  as  circunstâncias  que  o  levaram  a  cometer    um  ato  tão  pecaminoso.  E,  sem  dúvida,  ela não  proclamaria  isso  aos  quatro  ventos. -  Será que  eu o perdi,  Jory? Virei  vagarosamente  os  olhos  para  ele,  sentindo-me  fraco  e  doente  por    dentro,  desejando  esconder-me  do tormento que via  nitidamente estampado em  seu rosto.  Apesar  disso, não pude dizer  que sim  -  nem    que não. -  Creio  que  não  é  preciso  você  responder  -  disse  Papai,  com  voz  tensa.  -  Seu    silêncio  já  é  uma  resposta  e  eu sinto  muito.  Eu  o  amo  como  se  fosse  meu  próprio    filho  e  esperava  que  você  me  amasse  o  suficiente  para compreender.  Íamos  contar-  lhe  tudo  quando  julgássemos  que  tivesse  idade  bastante  para  entender.  Cathy devia ter trancado  os primeiros rascunhos numa gaveta, em vez de confiar que seus dois filhos não  se interessassem  pelo  livro. -  É ficção, não é?  -  indaguei, esperançoso.  -  Claro, sei  que é.  Mãe  nenhuma    faria  aquilo aos próprios  filhos... Abri  a  porta e  corri  para casa antes  que ele pudesse  replicar. Entreabri  os  lábios  para  chamar  mamãe.  Então,  tornei  a  fechá-los  e  fiquei    calado.  Era  mais  fácil,  para  mim, evitá-la. Normalmente,  quando  chegava  em  casa  eu  corria  para  o  jardim,  saltando  e    ensaiando  passos  de aquecimento.  Em  dias  chuvosos  como  aquele,  passava  mais  tempo  à  barra.  Naquele  dia,  porém,  atirei-me diante  do    aparelho  de  televisão,  apertei  o  botão  de  controle  remoto  e  me  deixei  mergulhar    numa    tola  mas divertida novela. -  Cathy!  -  chamou Papai  ao  entrar.  -  Onde está você? Por  que  não  gritara:  "Venha  receber-me  com  beijos,  se  me  ama!"  Sentir-se-ia    tolo,  ou  culpado,  agora  que sabia que  tínhamos  conhecimento da origem  daquela frase? -  Já disse  alô à  sua  mãe?  -  perguntou-me ele. -  Não vi  Mamãe. -  Onde  está Bart? -  Não o procurei. Ele  me lançou um  olhar  suplicante e  depois  foi  para o  quarto onde dormia com    sua  "esposa". -  Cathy, Cathy!  -  escutei-o  chamar.  -  Onde está você?   Poucos segundos depois, estava na  cozinha, às minhas costas,  procurando    Mamãe  -  e  não  a  encontrando.  Começou  a  correr  de  um  aposento  para  outro.  Afinal, bateu  à porta do quarto de  Bart. -  Bart, você  está  aí  dentro? Primeiro,  um  prolongado silêncio. Depois, uma resposta relutante,  amuada: -  Sim, estou aqui. Onde mais poderia estar,  com  a porta trancada? -  Então, destranque-a e  saia. -  Mamãe  me trancou por  fora, de  modo que não posso  sair. Continuei  sentado,  mergulhado  no  programa  de  televisão,  mantendo-me  alheio  a    eles.  Tentava  imaginar como conseguiria sobreviver  e  crescer  sentindo-me tão    infeliz. Papai  era  o  tipo  que  possuía  duplicatas  de  todas  as  chaves.  Logo  Bart  estava    fora  do  quarto,  sendo submetido a  um  interrogatório. -  O que fez  você  para que  sua mãe  o trancasse no quarto e saísse de  casa? -  Não fiz  nada! -  Deve ter  feito alguma coisa  que a  deixou  furiosa. Bart  sorriu  com  ar  ladino, permanecendo  calado. Olhei  para  eles, sentindo-me    ansioso e  amedrontado. -  Bart, se fez  algo para  causar  qualquer  mal  à  sua  mãe,  não escapará  ileso.    Estou falando sério. -  Eu  não  faria  nada  para  prejudicar  Mamãe  -  disse  Bart,  irritado.  -  Ela  é    que sempre  me  magoa.  Não  gosta de mim, só de  Cindy. -  Cindy!  -  exclamou Papai,  lembrando-se  repentinamente da  garotinha. Foi ao  belo quarto  de Cindy  e voltou alguns minutos  mais tarde, trazendo-a    no colo. -  Onde está sua  mãe, Bart?
-  Como posso saber? Ela me trancou no quarto. Contra  minha vontade,  eu estava perdendo a capacidade de  manter-me alheio. -  Papai,  há  alguns  dias  Mamãe  deixou  o  carro  na  oficina  e  Madame  M.  nos    trouxe  para  casa.  Portanto,  não pode ter  ido  longe. -  Sim, eu sei. Ela me contou... algo de  errado  com  os freios do  carro dela. Lançou um  olhar  interrogativo a Bart. -  Bart, tem  certeza de  que não sabe  onde está  sua  mãe?        -  Ela  lhe  disse  aonde  ia? -  Ninguém  nunca  me diz  nada. De repente, Cindy  falou: -  Mamãe  saiu na chuva...  ficamos todas  molhadas... -  Não consigo enxergar  através  de portas fechadas.     Bart  girou para  trespassá-la  com  um  olhar  furioso. Cindy  calou a  boca  e    começou  a tremer. Sorrindo, Papai  tornou  a pegar  Cindy  e sentou-se  para  segurá-la no colo. -  Cindy, você  é uma salva-vidas. Agora, pense  bem  e diga-me aonde foi  Mamãe. Tremendo ainda mais, Cindy  olhava para Bart  e não conseguia  falar. -  Pode  falar,  Cindy,  olhe  para  mim  e  não  para  Bart.  Estou  aqui,  cuidarei  de    você.  Bart  não  poderá  machucála enquanto eu  estiver  aqui.  Bart,  pare de  fazer  cara feia para sua irmã. -  Cindy  correu  na  chuva,  Papai,  e  Mamãe  precisou  sair  para  pegá-la.  Depois,    voltou  molhada,  tossindo,  e  eu fiz  algum  comentário. Ela  ficou zangada  comigo, empurrou-me para o quarto  e trancou a porta. -  Bem, creio  que  isso explica o cabelo  embaraçado de  Cindy  -  disse Papai. Mas  não  pareceu  aliviado.  Colocou  Cindy  no  chão  e  começou  a  dar  uma  série  de    telefonemas,  para  todos  os amigos de  Mamãe  e  para Madame Marisha. Minha  avó declarou que viria  imediatamente. Então, Papai  falou  com  Emma, que  só poderia voltar  no dia  seguinte, por    causa  da chuva. Pensei  em  minha  avó  na  estrada,  tentando  dirigir  até  nossa  casa  sob  o    temporal.  Mesmo  com  tempo  ideal, ela não era exatamente  o que eu considerava uma  motorista  razoável. -  Papai,  vamos  verificar  todos  os  aposentos,  inclusive  o  sótão  -  sugeri,    erguendo-me  de  um  pulo  e  correndo para  o armário embutido. -  Ela  pode  ter  ido  dançar  lá  em  cima,  como  costumava  fazer,  e  trancado    acidentalmente  a  porta,  ou adormecido  numa das camas... ou qualquer  coisa. Terminei  a  frase  com  embaraço,  achando que ele me fitava de  modo esquisito. Quando  Papai  começou  a  me  seguir  na  escada  do  sótão,  Cindy  soltou  um  berro    de  medo.  Papai  voltou depressa  ao  corredor  e  pegou-a  no  colo,  como  se    pretendesse    levá-la  conosco.  Bart  empunhava  um  canivete novo  e  estava  começando  a  raspar  a    casca  de  um  galho  fino  e  comprido.  Parecia  disposto  a  descascar  o galho  inteiro,    transformando-o    numa  vara  lisa.  Cindy  não  conseguia  despregar  os  olhos  da  faca  nem  da vara.Papai,  Cindy  e  eu  fizemos  uma  busca  completa  na  casa  inteira,  no  sótão,  nos    armários  embutidos, embaixo das  camas, em  toda parte. Não conseguimos encontrar    Mamãe. -  Cathy  não  faria  uma  coisa  dessas  -  disse  Papai,  preocupado.  -  Em  especial,    não  deixaria  Cindy  sozinha com  Bart. Há algo muito errado. Sim,  pensei  eu,  se  havia  algo  errado  naquela  casa,  era  alguém  que  nos    observava  enquanto  descascava  uma vara que  deveria  ser  usada  no seu  traseiro    despido. -  Papai  -  sussurrei  quando ele  parou  no centrO  de seu  quarto  -,  olhando  em    volta  com  desânimo  e  angústia.  - Por que não supomos que Bart saiba onde ela está ? Ele não é o menino mais honesto deste mundo. Você sabe  como ele vem-se  portando loucamente  nestes  últimos tempos. Saímos  juntos  do  quarto,  Papai  ainda  carregando  Cindy  no  colo  e  começamos  a    procurar  por  Bart.  Agora, não conseguíamos encontrar  Bart. Ele sumira.Papai  e eu nos entreolhamos. Ele  sacudiu a  cabeça. Olhei  em  volta,  sabendo  que  Bart  tinha  que  estar  escondido  atrás  de  alguma    poltrona,  ou  agachado  em algum  canto escuro,  ou, talvez  estivesse  lá fora,  na    chuva,    agindo como um  animal. Mas  o  temporal  piorava.  Sua  toca  na  sebe  não  bastaria  para  mantê-lo  seco.    Até  mesmo  Bart  teria  senso suficiente para não ficar  lá  fora,  no frio e na chuva. As  idéias  em  tumulto,  eu  me  sentia  violento  como  a  tempestade.  Eu  nada    fizera  para  merecer  aquela encrenca  toda  -  não  obstante,  estava  envolvido  nela,    sofrendo    com  Papai,  Mamãe,  Cindy...  e,  talvez,  até mesmo Bart. -  Você  me  odeia  agora,  Jory?  -  perguntou  Papai,  encarando-me  francamente.  -    As  engrenagens  rodam  em seu  cérebro,  dizendo  que  sua  mãe  e  eu  somos  os    causadores    de  tudo  isto  e  merecemos  pagar  o  preço?  Está pensando  que  você  não  deveria  pagar    preço  nenhum?  Se  é  isso  que  está  pensando,  saiba  que  estou  pensando a  mesma  coisa.    Talvez  a  vida  de  sua  mãe  -  assim  como  a  sua  e  a  de  Bart,  também  -  fosse  melhor  se  eu tivesse  desaparecido  e  deixado  que  ela  morasse    na  casa  de  Paul  até  encontrar  outro  homem.  Mas  eu  ainda  a amava.  Como  amo  agora,  amarei  amanhã  e  sempre.  Deus  me  ajude  por  ter    sido  incapaz  de  pensar  em  viver sem  ela.Atordoado,  virei-lhe  as  costas.  Então,  era  assim  o  amor  ardente  e  duradouro,    destruindo  tudo  que  se interpusesse  em  seu  caminho...Deitei-me  na  cama  e  solucei.Afinal,  sentei-me  e  tentei  adivinhar  onde  estaria Mamãe.  Pela  primeira  vez    dei-me  realmente  conta  de  que  ela  poderia  estar  em  perigo.  Ela  seria  incapaz  de abandonar  Papai.  Algo  terrível  devia  ter    acontecido,  ou  ela  estaria  em  casa,  arrumando  a  mesa  como costumava  fazer  às    quintas-feiras,    quando  Emma  tirava  folga.  As  quintas-feiras  eram  dias  muito  especiais para  eles,  por  motivos  que  só  agora  eu  começava  a    entender.Quinta-feira,  o  dia  em  que  as  criadas  de Foxworth Hall  iam  à cidade.    Quinta-feira, o dia em  que Papai  e Mamãe  podiam  sair  pela  janela do sótão e  se deitavam  no  telhado  para  conversarem.  E,  enquanto    conversavam,  enquanto  se  fitavam  mutuamente  naquele local  alto  e solitário  apaixonaram-se  inadvertida e  incontrolavelmente um  pelo  outro. Pois,  agora,  eu  sabia  por  que  Mamãe  se  casara  com  um  homem  após  outro:    tentava  sempre  fugir  ao  amor pecaminoso que ela  também  sentia.Levantei-me. Decidido. Cabia-me encontrar  Bart. -  Quando encontrasse Bart,  encontraria minha mãe.

OS ESPINHOS DO MAU ( Concluído) Onde histórias criam vida. Descubra agora