A chuva caía como tiros disparados por Deus. De pé junto às janelas dos fundos, eu observava a chuva castigar os rostos das estátuas de mármore, punindo-as por serem nuas e pecaminosas. Esperei que Jory voltasse para casa e me procurasse.Maus. Éramos ambos maus, por vivermos com pais que não deviam ser pais.Por trás de mim, Mamãe chegou das compras, toda rosada e risonha, sacudindo a chuva dos cabelos, cumprimentando Emma como se tudo estivesse bem. Jogou os pacotes numa cadeira, tirou o casaco e disse que tinha a impressão de estar ficando gripada. - Detesto quando chove, Emma. Olá, Bart... não o tinha visto aí até agora. Como passou? Com saudades de mim? Não respondi. Agora, não era obrigado a falar com ela. Não precisava ser delicado, cortês, nem mesmo limpo. Podia fazer o que bem entendia. Eles faziam. Os mandamentos de Deus nada significavam para eles. Agora, também nada significavam para mim. - Bart, este Natal será ótimo - disse Mamãe, não olhando para mim, mas para Cindy, que precisava de mais roupas novas. - Será nosso primeiro Natal com Cindy. Os melhores tipos de família sempre têm crianças de ambos os sexos e, desse modo, os meninos podem aprender a respeito das meninas, e vice-versa. Abraçou Cindy com mais força. - Cindy, você não sabe o quanto é felizarda por ter dois irmãos mais velhos maravilhosos, que absolutamente adorarão você quando crescer e se transformar numa verdadeira beleza... se ainda não adoram. Rapaz, se ela ao menos soubesse! Mas, como afirmava Malcolm, mulheres bonitas eram imbecis. Olhei para a cozinha, na direção de Emma, que não era bonita e nunca poderia ter sido. Seria ela mais esperta? Conseguiria enxergar através de mim? Os olhos de Emma se ergueram e encontraram os meus. Estremeci. Sim, mulheres feias eram mais espertas. Sabiam que o mundo não era belo só porque desejavam ser belas durante algum tempo. - Bart, você ainda não me disse o que deseja que Papai Noel lhe traga. Encarei-a com olhar duro. Ela sabia o que eu mais desejava. - Um pônei - respondi. Peguei o canivete que Jory me dera e comecei a aparar as unhas. Aquilo fez Mamãe olhar para mim. Depois, seus olhos procuraram os cabelos curtos de Cindy, que apenas começava a parecer bonito novamente. - Bart, guarde essa faca. Deixa-me nervosa. Pode cortar-se acidentalmente. Então, ela espirrou. Várias vezes. Seus espirros sempre vêm em grupos de três. Tirou da bolsa papel absorvente para limpar o nariz e, depois, assoá-lo. Contaminando o meu ar puro e limpo com seus imundos micróbios de gripe. Jory só chegou em casa muito depois do escurecer, encharcado de chuva e parecendo infeliz ao dirigir-se a seu quarto e bater a porta. Sorri ao ver Mamãe franzir a testa. Portanto, agora também o seu queridinho não gostava mais dela. Eis o resultado de proceder errado. A chuva continuava a cair. Mamãe olhou para mim, os olhos muito abertos, o rosto pálido, o cabelo emaranhado em torno do rosto - e compreendi que alguns homens a considerariam bonita. Arranquei um fio do meu cabelo, prendi uma ponta entre os dentes e o estiquei com uma das mãos. Meu canivete cortou-o facilmente em dois pedaços. - Boa faca - comentei. - Afiada como uma navalha de barbear. Boa para amputar pernas, braços, cortar cabelos... Sorri quando ela pareceu amedrontada. Poderoso. Senti-me poderoso. John Amos tinha razão: as mulheres não passavam de imitações tímidas e amedrontadas dos homens. Chovia mais forte. O vento soprava a chuva em volta da casa, produzindo sons uivantes. Frio lá fora, escuro e frio. Choveu a noite inteira e, na manhã seguinte, continuava a chover. Emma se foi em seu carro só porque era quinta-feira e ela não podia deixar de visitar uma amiga. - Fique quieta, agora, madame - disse ela a Mamãe, na garagem. - Só porque não tem febre, não quer dizer que não esteja doente. Não me parece muito bem. Bart... comporte-se e não crie dificuldades para sua mãe.
Saí da garagem e fui para a cozinha. De algum modo, meu braço, que na verdade era a asa de um avião, derrubou ao chão vários pratos da mesa posta para o café da manhã. Vi minha tigela de cereais com passas: pequenos insetos num mar cremoso... - Bart, você fez isso de propósito! - Sim, Mamãe, você sempre diz que faço tudo de propósito. Desta vez, vou-lhe mostrar como tem razão. Peguei meu copo de leite, no qual eu mal tocara, e o joguei no rosto dela. Errei por centímetros, pois ela foi rápida em esquivar-se. - Bart, como se atreve a fazer isso? Quando seu pai voltar para casa, contarei a ele e você será severamente castigado! - Sim, eu já sabia o que ele faria: espancar-me-ia o traseiro, faria um sermão a respeito de obediência e respeito à minha mãe. A surra não doeria. O sermão não seria escutado. Eu podia desligar Papai e ligar Malcolm. - Por ,que não me dá uma surra, Mamãe? Vamos... deixe-me ver o que você é capaz de fazer para me causar dor. Empunhei a faca em posição, pronto para golpear se ela ousasse aproximar-se de mim. Será que ela ia desmaiar? - Bart, como pode comportar-se tão mal quando sabe que não me sinto bem hoje? Prometeu a seu pai que se comportaria bem. O que fiz para que você me deteste tanto? Sorri - significativamente. - Onde arranjou essa faca? Não é o canivete que Jory lhe deu. - A velha da mansão vizinha me deu de presente. Ela me dá tudo que peço. Se eu lhe dissesse que quero um revólver, ou uma espada, ela me daria, pois é exatamente como você - fraca, tão ansiosa por agradar-me, quando não existe no mundo mulher que algum dia consiga me agradar. Agora, os olhos dela exprimiam verdadeiro terror. Aproximou-se de Cindy, que estava sentada na cadeira alta de criança, fazendo uma grossa porcaria com biscoitos e um copo de leite, molhando biscoitos no leite até amolecê-los e depois tentando enfiá-los depressa na boca, antes que a parte amolecida caísse. E ninguém ralhava com ela. - Bart, vá imediatamente para seu quarto. Feche a porta; eu a trancarei por fora. Não quero vê-lo outra vez até seu pai voltar para casa. E já que não considera seu café da manhã suficientemente bom para tomá-lo, também não merece almoçar. - Não pode dizer o que devo ou não fazer. Se ousar fazer isso, contarei ao mundo inteiro o que você e seu "marido" estão fazendo: irmão e irmã vivendo juntos. Vivendo em pecado. Fornicando! (Um belo termo de "Malcolm"). Cambaleando, ela levou as mãos ao rosto, tornou a limpar o nariz, enfiou os lenços de papel no bolso das calças e pegou Cindy no colo. - O que vai fazer, prostituta? Utilizar-se de Cindy como escudo? Não adianta, não adianta, pegarei ambas... E a polícia não pode encostar em mim. Tenho apenas dez anos, apenas dez anos -, apenas dez anos, apenas dez anos... E continuei repetindo aquilo, como um disco quebrado. Em meus ouvidos, a voz de John Amos dizia-me como proceder. Falei como num sonho: - Era uma vez, há muito tempo, um homem chamado Jack, o Estripador, que vivia em Londres e matava prostitutas. Eu também mato marafonas e irmãs pecadoras que não sabem distinguir o certo do errado. Mamãe, vou-lhe mostrar como Deus deseja que você seja castigada por cometer incesto. Trêmula, parecendo frágil como um coelho branco, amedrontada demais para mover-se, ela segurou Cindy no colo enquanto eu me aproximei... mais, cada vez mais, golpeando com a faca. - Bart, - disse ela, com voz mais forte, mais controlada - não sei quem andou lhe contando estórias, mas se você fizer algum mal a mim ou a Cindy, Deus se vingará de você - mesmo que a polícia não possa prendê-lo ou mandá-lo para a cadeira elétrica. Ameaças. Ameaças vãs. John Amos já me dissera que um menino da minha idade podia fazer o que bem entendesse e a polícia nada podia fazer para detê-lo ou puni-lo. - O homem com quem você vive é seu irmão? É? - berrei. - Diga uma mentira e vocês duas morrerão! - Acalme-se, Bart. Não sabe que em breve será Natal? Não quer ser internado num sanatório e perder todos os presentes que Papai Noel colocará na árvore, para você. - Papai Noel não existe! - gritei, ainda mais furioso - ela pensava que eu acreditava naquelas baboseiras?
- Você me amava. Durante toda a sua vida, evitou confessar isso por meio de palavras, mas eu podia ler nos seus olhos. Bart, o que transformou você? O que fiz para que me odeie tanto? Diga-me, a fim de que eu possa mudar e ser melhor para você. Vejam só! Tentando conquistar-me momentos antes de sua morte... e redenção! Deus se apiedaria dela quando fosse esquartejada, humilhada de todas as maneiras possíveis. Apertei as pálpebras e ergui a lâmina afiada com a navalha, que não fora presente de minha avó - fora um presente dado por John Amos, pouco depois que a velha bruxa Marisha aparecera. - Sou o anjo negro do Senhor - declarei em minha trêmula voz de velho. - Estou aqui para fazer justiça, pois a humanidade ainda não tomou conhecimento de seus pecados. Mamãe movimentou rapidamente Cindy e virou o corpo, de modo que a garotinha não se machucasse quando eu golpeasse. Então, enquanto eu a observava, sua perna direita se ergueu violentamente e acertou um pontapé doloroso em meu pulso. A faca voou pelos ares. Corri para apanhá-la, mas Mamãe foi mais rápida e chutou a faca para baixo do balcão. Atirei-me ao chão para tatear em busca da arma e, desta feita, Mamãe deve ter colocado Cindy no chão, pois senti-a repentinamente em cima de mim, torcendo-me o braço para trás. Segurando um punhado de meus cabelos na outra mão, obrigou-me a ficar em pé. - Agora, veremos quem manda aqui e quem será castigado - declarou. Empurrou-me e arrastou-me, sem largar-me o braço ou os cabelos, forçando-me a entrar no meu quarto e atirando-me no chão. Mais depressa do que consegui levantar-me, ela bateu a porta e escutei a chave girar na fechadura. Estava trancado no quarto. - Deixe-me sair, sua puta! Deixe-me sair ou incendiarei a casa! E morreremos todos queimados, queimados, queimados! Escutei-lhe a respiração ruidosa enquanto ela ofegava, encostada à porta trancada. Tentei encontrar o estoque de fósforos e velas que escondera em meu quarto. Tinham sumido. Todos os meus fósforos, todas as minhas velas, até mesmo o isqueiro que eu roubara de John Amos. - Ladra! - rugi. - Não existe nada nesta casa senão ladrões, trapaceiros, mentirosos e putas! E todos vocês querem meu dinheiro! Pensam que morrerei hoje, amanhã, na semana que vem ou no outro mês - mas viverei o bastante para vêlos todos mortos, Mamãe! Viverei até o último camundongo de sótão morto! Ela correu pelo corredor. Ouvi o ruído dos saltos de suas chinelas de cetim. Eu me amedrontara; agora, não sabia o que fazer. John Amos não me mandara aguardar até a noite de Natal, de modo que tudo coincidisse com o outro incêndio, em Foxworth Hall? Para fazer da mesma forma, só que diferente? - Mamãe - murmurei, ajoelhado e chorando. - Eu não fiz aquelas maldades a sério. Mamãe, por favor, não vá embora, não me abandone sozinho. Não gosto de ficar sozinho. Não gosto do que está acontecendo comigo, Mamãe. Por que precisava fingir que se casou com seu irmão? Por que não pôde apenas viver com ele e conosco, sendo decente? Solucei, com medo do que era capaz de fazer quando me tornava mau. Ela não precisava trancar minha porta quando estava com Cindy, precisava? Nunca confiava em que eu procedesse corretamente. Contudo, talvez fosse porque também não podia confiar em si mesma, como eu. Nascera bela e malvada; só através da morte Deus poderia redimir-lhe a alma pecadora. Suspirei e levantei-me para fazer o que precisava, a fim de salvá-la da confusão em que ela transformara sua vida - e as nossas. - Mamãe! - berrei. - Destranque esta porta! Eu me matarei, se você não me obedecer! Sei tudo a seu respeito; sei tudo que você e seu irmão estão fazendo - o pessoal da casa vizinha me contou tudo a respeito da infância de vocês. E o seu livro me contou o resto. Destranque a porta, se não me deseja ver morto! Ela veio destrancar a porta e me encarou, limpando o nariz e passando a mão nos cabelos. - Que quer dizer? Como o pessoal da casa vizinha lhe contou tudo ? Quem é o pessoal da casa vizinha? - Saberá quando a encontrar - repliquei, cheio de confiança em mim mesmo. De repente, voltei a me sentir malvado. Ela precisava carregar aquela maldita Cindy no colo, o tempo todo. Fora a mim que ela parira, não a Cindy. - Lá também existe um velho que sabe tudo a respeito de você e do tempo que passou trancada no sótão. Vá até lá e converse com eles, Mamãe. Então, não se sentirá tão feliz por ter uma filha. Ela ficou boquiaberta e uma terrível expressão de pavor fez seus olhos azuis ficarem muito escuros. - Bart, por favor, não diga mentiras. - Nunca digo mentiras; não sou como você - repliquei, observando-a com atenção.
Ela começou a tremer tanto que quase deixou Cindy cair do colo. Pena que não tenha deixado. Mas não faria mal se a molequinha caísse no chão atapetado. - Agora, espere por mim aqui - disse ela, encaminhando-se para o armário dos casacos. - Pelo menos uma vez na vida, faça o que digo. Sente-se e assista à televisão... coma todos os doces que quiser... mas fique em casa e não tome chuva.Ela ia à mansão vizinha. Senti-me invadido pelo pânico, temendo que ela não voltasse. Temendo que não fosse salva; temendo que talvez, no final das contas, John Amos não estivesse fazendo uma brincadeira. Mas nada pude dizer, pois Deus estava do lado de John Amos - teria que estar, pois ele não vivia em pecado. Usando seu mais quente casaco branco de inverno e botas brancas, Mamãe pegou Cindy, que também estava muito bem agasalhada. - Seja bonzinho, Bart, e lembre-se sempre de que eu o amo. Voltarei em menos de dez minutos, embora só Deus saiba o que aquela mulher de preto pode saber a meu respeito. Lancei um rápido olhar envergonhado ao seu rosto pálido e preocupado. Mamãe ia desmoronar quando encontrasse minha avó, que era a sua própria mãe. Mamãe terminaria enfiada numa camisa-de-força e eu nunca mais voltaria a vê-la. Por que eu não me senti alegre por Deus já a estar castigando, iniciando sua redenção? Minha cabeça doía novamente. Meu estômago estava esquisito. As pernas não queriam obedecer, mas, pesadas como chumbo, pareciam movidas por vontade própria. Puxaram-me até o armário dos casacos no momento em que Mamãe saiu e bateu a porta da frente.Minha alma chorava: Mamãe, não vá embora e me abandone sozinho! Não gosto de ficar sozinho. Ninguém me amará, exceto você, Mamãe. Ninguém. Por favor, não vá até lá - não permita que John Amos a veja.Ela não deveria ter dito coisa alguma. Deveria saber que você não permaneceria em casa, onde estaria seguro. Vesti meu casaco e corri até as janelas da frente, para observar Mamãe carregando Cindy no colo, sob o vento e a chuva fria. Como se ela, uma simples mulher, pudesse encarar Deus e sua ira negra. Tão logo ela sumiu de vista, esgueirei-me para fora de casa e segui-lhe os passos. Este novo casaco significava realmente que ela me amava? Não, respondeu o sábio velho em meu cérebro, não significava coisa alguma. Presentes, brinquedos, jogos e roupas eram coisas fáceis de dar - coisas que todos os pais davam aos filhos, mesmo quando estavam dispostos a servir-lhes arsênico misturado nas rosquinhas. Os pais se recusavam a dar o que era mais importante: segurança. Lá fora, o vento soprava o impermeável contra meu corpo, fazendo a chuva fustigar-me o rosto. Pude perceber que Mamãe, dez metros à minha frente, encontrava dificuldade para tentar segurar Cindy, que procurava libertar-se e voltar correndo para casa, enquanto gritava: - Não gosto de chuva! Me leve pra casa! Não quero ir, Mamãe! Tentando acalmá-la enquanto mantinha o equilíbrio e, ao mesmo tempo, procurava conservar o capuz sobre a cabeça, Mamãe finalmente desistiu dos esforços para não se molhar e tratou de manter Cindy seca. Logo seu cabelo estava emplastrado contra o couro cabeludo, tão liso como o meu naquele momento, pois eu nunca colocava um capuz na cabeça - davame medo de me olhar no espelho. Mamãe escorregou na lama que escorria das montanhas e quase perdeu o equilíbrio. Mas conseguiu permanecer em pé. Cindy gritava e esmurrava-lhe o rosto com os punhos minúsculos:
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OS ESPINHOS DO MAU ( Concluído)
RomanceDas cinzas do mal, Crhis e Cathy construíram um lindo lar para seus esplêndidos filhos... Jory, de quatorze anos, era tão bonito, tão delicado. E Bart possuía uma imaginação tão brilhante para um menino de nove anos. Entao, acenderam-se luzes na cas...