Capítulo 3 - O Adeus de Lucy

8K 995 119
                                    

    A chuva caía la fora já há algum tempo que Lucy não soube precisar. Porque a vida de sua família parecia estar sempre cercada de tristezas e tragédias?

 Sentada sobre o feno fresco, abraçando os joelhos ela divagava sobre todos os eventos que haviam acometido os Galahad até ali.

 Sabia que a mãe era uma órfã de guerra e que a primeiro momento seu pai havia tomado-a como escrava, mas se apaixonado pouco tempo depois. Tinha conhecimento também de que um acidente misterioso levara a vida do primeiro filho dos dois, o que deixara a mãe muito triste e inconsolável a ponto de fugir de casa por meses. Seu procurara por ela em todos os cantos, até encontrá-la vivendo na floresta com um casal de idosos e seu neto. Finalmente juntos os dois desafiaram a igreja e o estado, casando-se a despeito de suas diferenças sociais. Esta "desobediência" enfureceu profundamente o clero, fazendo com que Lucian fosse excomungado e destituído de todos os seus bens, menos a propriedade na qual moravam agora.

 O único filho homem nascera com uma grave doença que o privava de levar uma vida normal e alguns anos após a mãe perecera a enfermidade. Seu pai sofrera um acidente, deixando-o manco e apenas aumentando sua tristeza diante o luto pela morte da amada. Finalmente agora se encontravam em uma situação terrível da qual parecia não haver saída!

 A linhagem de Galahad parecia estar amaldiçoada, fadada ao sofrimento por todas as suas gerações.

 Lucy agarrou um montante de feno e atirou para fora, através da janela usada para descarregar os fardos por meio de uma roldana . As tiras de palha se espalharam a boiar numa enorme poça de lama que se formara lá embaixo, na entrada do celeiro.

 Se pelo menos o primeiro bebê de seus pais tivesse vingado...poderia ser um homem saudável agora e com toda certeza honraria os deveres da família na guerra. Se pelo menos houvesse outro homem...

 Ela agarrou mais um tufo de feno com força e quando ia jogar novamente pela abertura algo lhe ocorreu.

 Ela era bem forte e também manejava a espada de maneira quase impecável, segundo seu pai mesmo dizia, muitos generais não tinham as mesmas habilidades que a jovem. O rosto dos irmãos era bem parecido e também poucas pessoas da corte, praticamente nenhuma conhecia a face deles e isso apenas quando crianças. E se ela...não! Isto seria audacioso demais. Se fosse descoberta as consequências seriam muito maiores do que somente mais uma desgraça pública para a família. Mas quando a vida de seus familiares estava em risco, quem ligava para isso afinal?

 Lucy esperou bastante, até que tivesse certeza de que todos já tinham ido dormir e voltou para a casa principal. A chuva ainda caía forte, o que dificultou as passadas de volta pela lama com as saias encharcadas. Após entrar pé por pé, atravessou a os corredores em direção a biblioteca. Na escrivaninha do pai com certeza estava guardado o documento que exigia que fosse cedido um membro da família de sexo masculino para se alistar, e ela estava certa!

 Dentro do envelope com o celo já partido a carta intimava o filho primogênito ao serviço do exército e na falta de um o patriarca deveria assumir seu lugar. A desobediência seria reparada com sangue através de pena de morte ao desertor e vergonha pública para a família durante as três próximas gerações.

 Lucy estremeceu. Este era o mundo cruel ao qual ela pertencia e contra isso nada poderia ser feito. Enfiou o envelope no decote do vestido e correu para a sala onde eram exibidas com orgulho as armaduras de Lucian e Christopher.

 Tão diferentes em tamanho e desgaste. A do pai mostrava significantes arranhões e marcas de reparo, mas a do filho reluzia intocada, como se houvesse sido feita apenas para exposição.

 Lucy soltou as peças de armadura do suporte e mediu as ombreiras em seu próprio corpo, dando graças a Deus pelo menos uma vez ao porte pequeno do irmão, que possibilitava o encaixe quase perfeito da armadura leve em seu próprio corpo.

 Ali mesmo livrou-se de todos os componentes das vestes femininas, colocando junto com a armadura a camisa e calça de algodão que faziam parte do conjunto. O peso do metal era desproporcional ao tamanho da armadura, mas ela teria de se acostumar. Faltava apenas mais uma coisa.

 Lembrando-se da caixa de costura da irmã foi até a sala onde horas atrás todos discutiam sobre os motivos que levaram o velho irmão de guerra de seu pai a visitar a propriedade.

 A caixinha de madeira estava sobre o aparador da lareira, junto com o bastidor onde Vivienne tecia com maestria o bonito bordado.

 Lucy sorriu. Nunca tivera a mesma habilidade que a irmã. No passado isso a aborrecera algumas vezes, mas agora ela finalmente percebia que o manejo da espada era o que realmente importava para ela.

 Segurou a bela massa de cabelos enrolada em sua mão, passando a tesoura bem rente a nuca. As madeixas cultivadas com tanto carinho durante  anos caíram pesadamente no chão. Lucy sentiu um aperto no coração ao ver que o único retrato de sua vaidade havia sido perdido, mas seria por um bem maior.

 Ali mesmo, de frente para um pequeno espelho ela acertou as mechas de maneira a parecer o máximo possível com os cabelos do irmão. Respirou fundo e seguiu para o quarto que dividia com Viv.

 A irmã dormia peadamente, como sempre. Depositou um suave beijo em sua testa, em um adeus silencioso. Fez o mesmo com Christopher, pegando emprestado ainda algumas mudas de roupa dele. Ao final adentrou os aposentos do pai.

 Tinha estado poucas vezes ali, a maioria foi quando a mãe ainda estava em vida.

 O quarto era sóbrio e humildemente decorado. O único quadro na parede era uma enorme pintura de Giselle, sorrindo. Lucian sempre contava que o pintor se aborrecera com a decisão dela de sorrir na pose, alegando que ela não conseguiria sustentar os lábios daquela forma por muito tempo. Mas a mulher batera o pé daquela forma suave de sempre, dizendo que gostaria de imortalizar uma prova de que era feliz ali. Sua mãe era tão linda e bondosa...Ficaria chocada com sua decisão agora e seria capaz de percorrer todo caminho até o front atrás de sua filha querida.

 Ela voltou-se para a cama, onde o pai dormia imóvel e alheio a tudo. Os cabelos cabelos compridos e escuros lhe cobriam a face, que mesmo em sono profundo permaneciam tensas.

 Seu pai carregava o peso do mundo nas costas e ela sentia-se triste por adicionar mais uma preocupação a conta. Mas seria temporário, para um bem maior ela repetiu para si mesma enquanto acariciava a face paterna, que pareceu suavizar-se por um instante.

 Pediria mil desculpas quando retornasse. Com certeza um castigo muito grande a aguardaria, talvez acompanhado de uma surra que ela levaria de bom grado.

 Sorriu de forma triste e saiu da casa, sem olhar para trás.

 Colocou sem dificuldade a sela no garanhão do pai, mais uma das coisas que "tomaria emprestado" por tempo indeterminado. Demorou um pouco até conseguir montar. A armadura pesada restringia um pouco de seus movimentos.

 Incitou o animal com vontade, para que não lhe ocorresse o pensamento de retornar para o colo de Lucian, implorando perdão. Queria se afastar o máximo o possível, até o ponto onde não haveria mais volta.

A Donzela de Ferro(Concluído - SEM REVISÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora