II. Coming Home

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LEXA

A caminhada de volta sempre me trazia clareza. Uma espécie de entendimento sobre meu propósito na vida; meu propósito era não virar alguém como a minha mãe. Voltar para aquele apartamento medíocre sempre me relembrava disso.

Já era noite ferrada quando atravessei a porta. Gustus comia diante da televisão, algumas latas de cerveja ao lado do sofá revelavam que aquela seria uma longa noite. Olhei com desprezo na direção daquele parasita que Anya tinha como marido e, muito embora o ódio borbulhasse dentro de mim, mantive-me calada.

- Oi, meu amor – Anya sorriu na minha direção. Sorriso triste, olhos tristes. Nada diferente. Nunca era. – Quer jantar? – perguntou e aproximou-se de mim, me dando um abraço desajeitado.

Neguei com a cabeça. Não tinha fome. – Só vou dormir mesmo, boa noite – desejei e caminhei em direção ao meu quarto. O mesmo quarto que costumava dividir com meu irmãozinho.

- Não fala mais comigo? – o robusto homem exclamou de forma irritadiça quando eu passava. Revirei os olhos e fechei as mãos em forma de punho.

- Ela está cansada, amor, deixe-a ir – a mulher, outrora tão linda como uma flor silvestre, tentou acalmar o marido.

Uma parte de mim morria todas as vezes que eu a via tão submissa àquele verme. Ela costumava ser minha heroína, eu sentia tanto orgulho de ser sua filha, hoje em dia, o único sentimento que consigo nutrir é pena. A Anya que me criou por nove anos, sem a ajuda de homem nenhum, nunca permitiria que um filho seu fosse tirado dos seus braços. Nunca permitiria ser tratada como capacho.

- Eu ponho comida na boca dessa ingrata! – exclamou em fúria e levantou-se do sofá, caminhando agressivamente na minha direção.

O tempo em que eu o temia havia passado. O tempo em que suas agressões me machucavam também, hoje em dia eu apenas sentia a dor física, mas essa eu já estava acostumada.

Sustentei seu olhar de forma pedante. – Comida na minha boca? – repeti num tom de desafio – Eu tenho bastante certeza que um inútil feito você não seria capaz dessa proeza – rebati e não tenho certeza quando o tapa me atingiu.

O conhecido ardor tomou conta, depois o formigamento, para em seguida uma dor excruciante se propagar por todo meu rosto. Anya se pôs entre mim e ele, implorando para que ele parasse, mas ele não pararia, não agora que havia começado. Gustus apenas a empurrou para o lado e fechou os punhos em torno dos meus cabelos, puxando-os dolorosamente.

- Você vai aprender a me respeitar, sua piranha! – gritava num ar meio embriagado suas inverdades.

Mantive-me calada, sentindo o gosto metálico do meu próprio sangue. Estranhamente, aquele conhecido sabor ferroso me trazia algum conforto... Era algo constante, nunca mudava, sempre que alguém me machucava, eu sentiria o gosto de sangue. Diferentemente das demais coisas na minha vida, eu podia contar com aquilo.

Seu punho encontrou meu estômago dessa vez. Arfei, buscando ar, e não vi ou ouvi muitas coisas após isso. Apenas os gritos desesperados de Anya. Suas lágrimas e ele dizendo para ela parar de escândalo, pois "eu viveria" e ele não queria que os vizinhos chamassem a polícia, muito embora aquilo fosse pouco provável, considerando o cortiço onde morávamos.

Ela me ajudou a chegar até meu quarto. Seus soluços arrependidos ecoavam pelas finas paredes, mas eu sabia, não importava quantas vezes ela me pedisse desculpas... Nada mudaria. Ela era refém dele, mas eu não seria.

Meus braços envolveram meu abdômen, como se aquilo fosse proteger meus órgãos ou aliviar a dor, mas bastou eu soltar o ar preso em meus pulmões para tudo voltar a doer numa dor dilacerante. Minha visão ficou turva por algum tempo e caso eu não fosse habituada àquela sensação, possivelmente estaria gritando em agonia, mas eu não gritei. Eu não o daria esse gostinho extra de vitória. Mordi meu próprio lábio numa tentativa de aliviar uma dor com outra e me recostei contra a parede, querendo pôr o máximo de distância entre mim e a chorosa mulher.

- Eu te amo, Anya, eu realmente amo – limpei o filete de sangue que corria pelo canto da minha boca – Mas você não é minha mãe – comentei de forma distante, me esforçando para não fazer nenhuma careta. Ela nada respondeu, talvez soubesse que era verdade. – Eu queria estar aqui por você... Não queria te deixar sozinha com ele – pausei, pois as lágrimas ameaçavam rolar e eu realmente não queria chorar. Eu não demonstraria fraqueza, não podia me dar ao luxo de ser fraca. – Mas então eu me dei conta que você tinha duas pessoas que te amavam mais que a própria vida, e preteriu ambas, você perdeu seus filhos e ficou com a única pessoa que nunca te amou – havia uma certa fúria no que eu dizia, ressentimento, rancor... Ela me traiu, traiu Aden, e por isso eu nunca a perdoaria, todavia, eu a amaria até meu último suspiro. – Me cansei, Anya, essa é a verdade, eu me cansei – revelei e ela me olhou, seus olhos suplicantes, mas ao mesmo tempo repletos de compreensão. Ela sabia que mais cedo ou mais tarde uma tragédia aconteceria. Eu acho que lá no fundo ela sabia que dormia com a pessoa que ceifaria sua vida. – Eu queria sentir raiva, nojo, ódio de você, mas a única coisa que sinto é pena – nunca havia sido tão sincera em toda minha vida. Não importava quantas vezes eu fosse atingida, não importava quantas vezes ele me machucasse. Meu espírito nunca seria quebrado. Anya não teve a mesma sorte.

- Você merece muito mais do que eu tenho a te oferecer, Lexa. Você sempre foi boa demais para esse mundo, meu lindo bebê... – sua voz saiu trêmula, seus olhos marejados escrutinavam meu rosto, como se aquela fosse a primeira vez que ela realmente enxergasse o monstro que Gustus havia se tornado. Seus olhos me pediam as desculpas que seus lábios não mais conseguiam pronunciar e ela afundou o rosto na curva do meu pescoço. Reprimi um gemido de dor e acariciei seus cabelos com as pontas dos meus dedos, deixando-a liberar tudo que a atormentava.

– Eu te amo, eu sempre irei, você e seu irmão são as únicas coisas boas que deixarei para esse mundo – revelou e me deu um demorado beijo sobre a testa. Ela sabia que aquela seria nossa despedida. Ela sabia que eu nunca retornaria.

- Espero que você encontre seu caminho – desejei sinceramente.

Nada de sentimentalismo, nada de lágrimas. Gustus não havia me quebrado, mas ele definitivamente não havia me amolecido. Eu sabia exatamente o quão cruel o mundo era, mas acima de tudo, eu sabia exatamente o que era preciso para sobreviver nele.

Ela deixou o quarto com a certeza de que eu não estaria ali na manhã seguinte. Enfiei meus poucos pertences em duas mochilas e as demais pus em sacos de lixo. Às três da manhã eu havia partido, levando, além das minhas coisas, trezentos dólares que minha mãe deixou sobre a mesa com um simples bilhete "May we meet again". Um ditado comum entre nossos ancestrais.

Quando bati na porta de Raven, às quatro da manhã, não havia surpresa alguma em sua cara. Ela apenas sabia o que me levava ali. Ela sempre sabia.

- Quão ruim foi dessa vez? – lançou a primeira pergunta.

Levantei a blusa e a mostrei o local onde havia levado o soco. Estava num roxo vivo àquela altura, sem mencionar minha cara inchada.

- Aquele desgraçado. – constatou raivosa antes de me ajudar com meus pertences. – Você pode ficar pelo tempo que quiser, o quarto está vago de qualquer forma.

- Obrigada, Raven, eu ajudarei com as dispensas e tentarei arrumar um lugar o mais rápido possível – comentei e ela rolou os olhos, com enfado.

- Você é minha melhor amiga, não irá a lugar nenhum – sorriu e sentou-se ao meu lado no sofá. Apoiando a cabeça no meu ombro. – Estou feliz que você foi embora – falou baixinho e senti meu coração se comprimir com o pensamento de que eu havia deixado minha mãe sozinha com aquele monstro.

- Você sabe como sou... Nada me derruba – falei duramente. Ocultando dela o que assombrava meus pensamentos.

Seja forte, não deixe ninguém ver sua dor... Dessa forma, você não precisará sentir a deles. 

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