CAPÍTULO CXLIX

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Teoria do Benefício

.. Tão insolúvel que o Quincas Borba não pôde dar com ele, apesar de estudálo longamente e com boa vontade. — Ora adeus! concluiu; nem todos os problemas valem cinco minutos de atenção.

Quanto à censura de ingratidão, Quincas Borba rejeitou-a inteiramente, não como improvável, mas como absurda, por não obedecer às conclusões de uma boa filosofia humanística.

— Não me podes negar um fato, disse ele; é que o prazer do beneficiador é sempre maior que o do beneficiado. Que é o benefício? é um ato que faz cessar certa privação do beneficiado. Uma vez produzido o efeito essencial, isto é, uma vez cessada a privação, toma o organismo ao estado anterior, ao estado indiferente. Supõe que tens apertado em demasia o cós das calças; para fazer cessar o incômodo, desabotoas o cós, respiras, saboreias um instante de gozo, o organismo torna à indiferença, e não te lembras dos teus dedos que praticaram o ato. Não havendo nada que perdure, é natural que a memória se esvaeça, porque ela não é uma planta aérea, precisa de chão. A esperança de outros favores, é certo, conserva sempre no beneficiado a lembrança do primeiro; mas este fato, aliás um dos mais sublimes que a filosofia pode achar em seu caminho, explica-se pela memória da privação, ou, usando de outra fórmula, pela privação continuada na memória, que repercute a dor passada e aconselha a precaução do remédio oportuno. Não digo que, ainda sem esta circunstância, não aconteça, algumas vezes, persistir a memória do obséquio, acompanhada de certa afeição mais ou menos intensa; mas são verdadeiras aberrações, sem nenhum valor aos olhos de um filósofo.

— Mas, repliquei eu, se nenhuma razão há para que perdure a memória do obséquio no obsequiado, menos há de haver em relação ao obsequiador. Quisera que me explicasse este ponto.

—Não se explica o que é de natureza evidente, retorquiu o Quincas Borba; mas eudirei alguma coisa mais. A persistência do benefício e seus efeitos.Primeiramente, há o sentimento de uma boa ação, e dedutivamente a consciênciade que somos capazes de boas ações; em segundo lugar, recebe-se uma convicçãode superioridade sobre outra criatura, superioridade no estado e nos meios; eesta é uma das coisas mais legitimamente agradáveis, segundo as melhores opiniões,ao organismo humano. Erasmo, que no seu Elogio da Sandice escreveu algumascoisas boas, chamou a atenção para a complacência com que dois burros se coçamum ao outro. Estou longe de rejeitar essa observação de Erasmo; mas direi o queele não disse, a saber, que se um dos burros coçar melhor o outro, esse há deter nos olhos algum indício especial de satisfação. Por que é que uma mulherbonita olha muitas vezes para o espelho, senão porque se acha bonita, e porqueisso lhe dá certa superioridade sobre uma multidão de outras mulheres menosbonitas ou absolutamente feias? A consciência é a mesma coisa; remira-se amiúdo, quando se acha bela. Nem o remorso é outra coisa mais do que o trejeitode uma consciência que se vê hedionda. Não esqueças que, sendo tudo uma simplesirradiação de Humanitas, o benefício e seus efeitos são fenômenos perfeitamenteadmiráveis.

Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881)Onde histórias criam vida. Descubra agora