CAPÍTULO XX

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Bacharelo-me

Um grande futuro! Enquanto esta palavra me batia no ouvido, devolvia eu os olhos, ao longe, no horizonte misterioso e vago. Uma idéia expelia outra, a ambição desmontava Marcela. Um grande futuro? Talvez naturalista, literato, arqueólogo, banqueiro, político ou até bispo, — bispo que fosse, — uma vez que fosse um cargo, uma preeminência, uma grande reputação, uma posição superior. A ambição, dado que fosse águia, quebrou nessa ocasião o ovo, e desvendou a pupila fulva e penetrante. Adeus, amores! adeus, Marcela; dias de delírio, jóias sem preço, vida sem regime, adeus. Cá me vou às fadigas e à glória; deixo-vos com as calcinhas da primeira idade.

E foi assim que desembarquei em Lisboa e segui para Coimbra. A Universidadeesperava-me com as suas matérias árduas, e não sei se profundas; estudei-asmuito mediocremente, e nem por isso perdi o grau de bacharel; deramme com asolenidade do estilo, após os anos da lei; uma bela festa que me encheu deorgulho e de saudades, — principalmente de saudades. Tinha eu conquistado emCoimbra uma grande nomeada de folião; era um acadêmico estróina, superficial,tumultuário e petulante, dado às aventuras, fazendo romantismo prático eliberalismo teórico, vivendo na pura fé dos olhos pretos e das constituiçõesescritas. No dia em que a Universidade me atestou, em pergaminho, uma ciênciaque eu estava longe de trazer arraigada no cérebro, confesso que me achei dealgum modo logrado, ainda que orgulhoso. Explico-me: o diploma era uma carta dealforria; se me dava a liberdade, dava-me a responsabilidade. Guardei-o, deixeias margens do Mondego, e vim por ali fora assaz desconsolado, mas sentindo jáuns ímpetos, uma curiosidade, um desejo de acotovelar os outros, de influir, degozar, de viver, — de prolongar a Universidade pela vida adiante...    

Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881)Onde histórias criam vida. Descubra agora