BEYROUX.
Recém decretado o período de inquisição.
A lua nunca esteve tão cheia.
E apesar de até hoje ser meu grande fascínio, naquela época principalmente eu não podia mais a contemplar como antes. O caos havia acabado de se instalar em nossa aldeia. Não era como hoje. As pessoas ainda estavam buscando se adaptar. Ainda procuravam formas de sobreviver. Todas as noites o capítulo se repetia. E naquela, não foi diferente.
O céu logo ameaçou escurecer, e com isso minha mãe rapidamente se prontificou em me olhar nos olhos. Mantendo suas mãos em meus ombros, deu em mim um leve chacoalho. Chacoalho esse que hoje me lembro bem. Ela suspirou e espremeu os olhos, me transmitindo assim grande parte de sua dor.
— Ouça... se algo me acontecer esta noite, saiba que eu te amo.
— Mas, mãe...
— Escute, caso eu não volte... — ela continuou, com os olhos marejados.
Eu, já prevendo o que ela falaria logo me certifiquei de interrompê-la.
— Mamãe, você irá voltar. Você sempre me diz isso e no dia seguinte sempre volta! — assim afirmei ingênua, ao levantar meus braços, movimentando meus ainda pequenos dedos no ar.
— Você não entende. É duro na floresta. Quando estamos transformados... não é tão simples... — ela disse, ao enxugar as lágrimas que insistiam em rolar por suas bochechas rosadas. Então, por alguns segundos permitiu-se olhar para cima, observando a cor escura que enfeitava o céu, anunciando que seu tempo estava se esgotando— Vamos, filha. Venha comigo.
Ela precisou se recompor em questão de segundos. Tinha que estar forte para mim. Com isso, ela segurou em minha mão, e à medida que andava eu podia observar o ambiente em minha volta. Não éramos as únicas a nos despedirmos. Havia além de nós outros pais se despedindo de seus filhos de forma dolorosa, sentindo dentro de si a dor da incerteza. Antes eu não entendia a razão, mas hoje eu sei. Isso acontecia, pois na realidade, todos eles tinham o mesmo medo que minha mãe: não voltar no dia seguinte.
Apesar de triste, eu já estava acostumada. Afinal, o cenário era sempre o mesmo, noite após noite.
Naquela, mais do que nunca ela segurava minha mão de forma firme, ao mesmo tempo em que demonstrava estar instável emocionalmente. Nosso destino era uma moradia abandonada. Era lá que as crianças ficavam durante as noites, para nos protegermos dos possíveis ataques. Também servia como uma distração, claro. Afinal, muitas de nós ainda não sabíamos o que estava acontecendo, e nem o que estaria por vir.
Ao chegarmos, minha mãe apenas me parou frente à entrada, ajoelhando-se de como que ficasse do meu tamanho, e me olhando novamente.
— Não dê trabalho aos cuidadores, está bem? Apenas fique aqui e faça o que eles disserem. Ajude no que precisarem. Eles cuidarão de você à noite inteira, e quando amanhecer, eu só preciso que me aguarde. Eu estarei aqui. — disse, buscando manter seu tom de voz firme. Ela não acreditava em suas próprias palavras.
— Tome. Para te dar força. — assim falei, entregando a ela o colar que eu possuía em meu pescoço. Eu havia o encontrado quando mais nova próximo a nossa residência, enterrado na areia. O amuleto nele fixado possuía desenhos quase que indecifráveis voltados em um círculo com pequenas partes pontudas. Logo me fascinei e o guardei. Apesar de simples, eu o guardava com um carinho especial. E não pensei duas vezes antes de entrega-la.
Ela, por sua vez, tomou um sorriso enfraquecido em seu rosto. E então me deu um beijo na testa. Naquele momento, eu pude jurar ter sentido uma pontada mais forte em meu coração. Mas eu não entendia por qual razão acontecia. Talvez tenha sido devido à forma como ela deu as costas para mim e eu a observei correr em direção à floresta.
Logo que entrei na moradia, me sentei ao chão. E então pude observar um menino me observando do outro lado da sala, em silêncio. À medida que as horas passavam, mais vazia eu me sentia. Lá de dentro, não tínhamos noção do tempo. E apenas quando ouvíamos os sons do bater de asas de gárgulas e lobos uivando, tínhamos a certeza de que enfim havia começado.
Não conseguia ouvir aquilo sem me recordar de que minha mãe e os pais de todas aquelas crianças estavam em algum lugar por ali, no corpo daquelas bestas. Era torturante. Consigo ouvir os gritos até hoje. Então, desesperada, optei por tampar meus ouvidos com minhas mãos e espremer meus olhos. Permaneci naquela posição até que me visse obrigada a mudar, fosse por desconforto ou por qualquer outra necessidade.
Na janela da sala, no entanto, em determinado momento, exatamente à minha frente, eu pude observar uma besta com o corpo de um animal, estando este com fisionomia de alguém que teria sido petrificado. Estava parada, causando em mim a impressão de que me observava. De início, me espantei. Porém ao analisar mais cuidadosamente, acabei a me interessar.
No rosto, havia um aspecto nada angelical, acompanhado por presas que sendo brancas se destacavam entre a cor do resto, sendo essa acinzentada.
E em seu pescoço havia um colar.O meu colar.
E então tudo fez sentido para mim.— Mamãe! — gritei, correndo em direção à janela. Entretanto, fui impedida de tentar uma aproximação maior. Assustada com minha ação, a besta soltou um berro e me mostrou suas presas afiadas. Por segundos, deixou-se distrair. Foi rápido. Quando menos esperei, avistei outras bestas em cima dela, causando em mim a pior sensação que já havia visto até então. Logo, ela saiu de minha vista. E foi quando eu soube. Ela estava morta.

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Amaldiçoada - A Jornada Maldita VOL. I
FantasyBeyroux é um vilarejo que está sob a maldição de um poderoso feiticeiro que busca vingar a morte de sua amada resultante de um violento período de inquisição. Condenados, os moradores da aldeia buscam viver dia após dia o aprisionamento imposto a el...