Berenice era uma excelente esposa, amiga e companheira. Sempre o ouvia com atenção, dava-lhe carinho e cuidava dele em todos os aspectos. O preço por seu amor, no entanto, começava a ser cobrado.
Miguel estava acostumado a resolver seus negócios sem a interferência de ninguém. Enriquecera de uma forma que poucos da sua idade conseguiram. Tinha tudo o que precisava para ser um homem de sucesso e não desperdiçava essa chance.
Era óbvio que não conseguiria chegar onde chegou sem usar seus meios. Nenhum milionário apostaria tão alto em um recém-formado programador, se não tivesse sido tão convincentemente levado a isso. O problema era que Berenice não estava nada satisfeita com a maneira que Miguel estava levando seus negócios.
A última coisa que ouvira Miguel conversar com um estrangeiro fora a gota d'água. O dono de uma renomada empresa americana de softwares havia entrado em falência em menos de um ano de sociedade com a Informa. O motivo: maus investimentos na bolsa de valores, incentivados pelo seu novo sócio, ninguém menos que Miguel Lontano.
Apesar de Berenice não entender nada de negociações, ela sabia o suficiente para perceber que a falência da empresa rendera muito dinheiro para Miguel, que detinha as ações em alta, de modo a comprar as ações do americano a preço de banana, e a revendê-las em momento oportuno, lucrando mais do que cinco vezes o valor de compra. Uma manobra que rendera milhões de dólares a Miguel, mas custara uma acalorada discussão no escritório com a esposa.
Miguel decidira abandonar de vez o hábito de deixar as portas entreabertas. Mesmo quando a conversa era em um idioma que poucos da casa dominavam, ele mantinha agora tuda a portas fechadas. Por mais que pudesse sanar qualquer dano de uma informação que caísse no ouvido errado, com Berenice, as coisas sempre seriam diferentes. Como ele podia imaginar que aquela garota tímida e ingênua, que se tornara senhora de sua mansão e de sua vida, dominava tão bem o idioma americano?
Ela entrara no escritório com uma xícara de chá, quando o gringo estava debruçado sobre a mesa de Miguel, implorando para que ele desse um jeito de consertar as coisas e de reaver a fortuna perdida. Miguel olhava impassível para o homem. Tinha repulsa por homens que imploravam. Mas o olhar de Berenice parecia saber qual era o lado certo da história.
— O que está havendo? — ela perguntara, em um inglês confiante. — Senhor, o que houve?
— Eu estou falido! — ele declarou, sem saber com quem falava. Sem saber que ela era sua única chance de se salvar. — Estou perdido! Eu não sei como isso foi acontecer.
Berenice olhou severamente para Miguel, com um ar acusatório. Diferente daquele infeliz, ela sabia exatamente como aquilo acontecera.
— Miguel, por que não resolve o problema desse senhor? — ela perguntou em português, para dar a Miguel a chance de se explicar.
— Ele já está de saída — Miguel disse, rejeitando a oferta de Berenice, ao responder em inglês.
Um par de olhos verde-vivos cruzaram os olhos de Berenice, e ela se lembrou de já tê-los visto em algum lugar. Um homem que exalava riqueza e sobriedade, mesmo ao lado de dois meninos gêmeos que só aprontavam.
— Senhor McDill, quer que eu o acompanhe até a porta? — ofereceu Miguel, sem denotar um pingo de piedade pela perda do homem, e sem querer admitir o ciúme por aquela intensa troca de olhares com sua esposa.
— Não, senhor Lontano, não há mais nada que o senhor possa fazer por mim — Christian respondeu, levantando-se com custo da mesa em que se apoiava, enquanto seu mundo caía.
— Ah, aí é que o senhor se engana, sempre há algo que eu posso fazer — Miguel respondeu, de certa forma querendo impressionar a esposa, sem saber o quanto ela o estava repudiando por isso.
Detendo o homem com o braço, após contornar sua mesa, Miguel apoiou uma mão na nuca do americano e olhou fixamente em seus olhos.
— O que aconteceu na sua empresa não tem nada a ver comigo — declarou, com uma voz suave que enojou Berenice na mesma hora. — Você sabe que eu tentei evitar esse fim de todas as maneiras. Eu fui o único sócio, na verdade, que realmente lutou por você, e você será sempre grato a mim por isso. Agora, você vai seguir a sua vida e galgar um lugar no mundo como fez para chegar onde chegou. E, da próxima vez, ficará longe de investimentos na bolsa.
Miguel deu uma risadinha com seu comentário final, fazendo Christian rir também. Foi doloroso para Berenice ver aquilo.
— Sim, muito obrigado por tudo, senhor Miguel. Nunca vou me esquecer do que fez por mim — o americano ecoou, colocando uma mão no ombro do ex-sócio.
Ao ficar a sós no escritório com a esposa, Miguel ainda sorria quando viu a face de decepção de Berenice.
— Você é um monstro — ela sentenciou, fazendo-o piscar na dúvida se havia escutado direito.
— Você não entende desses negócios, Berenice, não é tão ruim quanto parece. — Gesticulou, com pouco caso, retornando para trás da mesa. — A empresa dele estava com muitas divisões. Também não tinha muito planejamento. Esse homem monopolizava demais as decisões, o que culminou nesse triste fim. Se os sócios fossem mais unidos e não dependessem tanto dele, as coisas poderiam ter sido bem diferentes.
Berenice não soube se fora a condescendência ou o sadismo de Miguel, mas ela se sentira ainda mais enojada com aquilo. O homem era mesmo um canalha, como ele mesmo lhe confessara no passado.
— Que espécie de pessoa é você? — ela o indagou, deixando-o imediatamente sério. — Aquele homem tem uma família, tem um nome. Ele estava na sua festa no dia que nos conhecemos, era a cara da riqueza, do requinte, estava bem. Como você pôde destruí-lo dessa forma?
— Parece que você se preocupa demais com as pessoas — ele comentou, odiando-se por soar tão ciumento. — Por que não vai lá consolar o gringo? Acho que ele adoraria afogar suas mágoas nos seus braços. Eu, certamente, adoraria.
Berenice o olhou de uma forma tão repulsiva, que Miguel sentiu-se um verme. Ela tinha esse poder sobre ele, por ser a única que ele considerava a opinião.
— Eu não consigo reconhecer você. Você é um estranho pra mim, qualquer um, menos o homem com quem eu me casei.
Berenice tentou sair, mas Miguel a alcançou numa velocidade incrível, antes que ela atravessasse a porta.
— Não, não vai embora, meu amor, me desculpe — ele tentou, sentindo o corpo dela tremer ao segurar seu braço. — É que esses são meus negócios. O que eu quis dizer era que a empresa não é só dele, é de uma equipe, e eu não conversei com nenhum dos outros membros. O que eu fiz só revelou um problema interno que já existia.
— E que, muito convenientemente, te rendeu muito dinheiro, não é? — Ela o encarou de repente, desafiando-o ao olhar nos olhos dele.
— Sim, rendeu. Esse sou eu. — Ele a encarou de volta.
Os dois olharam-se intensamente durante vários instantes, sem dizer nada. O próprio olhar já dizia muito. Ele, despido diante dela com suas falhas e defeitos, como não estivera com mais ninguém, pedia perdão, que confiasse nele. Ela, que não tinha mais medo dos olhos dele na mente dela, mas dos olhos dela no que haveria na mente dele, sentia grande terror. O que ela encontrava ali parecia ser pavoroso, e ela se perguntava até quando poderiam viver assim.
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*** E aí, minha gente? Quem acha que Miguel vai dormir no sofá essa noite, levanta a mão aí!
Querendo fazer bonito para a esposa, Miguel acabou revelando seu pior lado para uma mulher com princípios bem diferentes. E para alguém que sempre teve o monopólio da mente de suas companheiras, saber lidar com o ciúmes e a insegurança para ser uma tarefa e tanto...
E olha só onde o poderoso Christian McDill foi parar! Já imaginaram como deve estar a fúria de Gabrielle com relação a Miguel a essa altura?
NO PRÓXIMO CAPÍTULO...
Berenice vai receber uma proposta de alguém com intenções duvidosas, que poderá mudar o rumo de sua vida. Será uma traição, ou sua única chance de sobreviver?
Só conferindo.... ; ) ***
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O Programador de Lembranças
Mistério / SuspenseO que você faria se pudesse controlar a mente das pessoas? Essa era a bênção e a maldição de Miguel. Mas, assim como o toque de Midas, o poderoso homem não demorou a perceber que aquele talento sobrenatural teria o seu preço. Dono de uma empresa de...