Jonas não queria voltar. Não queria as lembranças, não queria a honra nem a sabedoria, não queria mais a dor. Queria sua infância de volta, seus joelhos esfolados, queria jogar bola. Ficava sozinho em sua residência olhando pela janela, vendo crianças brincando, cidadãos voltando de bicicleta para casa depois de um dia rotineiro de trabalho, vidas comuns livres de angústia, porque ele havia sido escolhido, como outros antes dele, para carregar nos ombros o fardo de todos.
Mas não lhe cabia escolher. Voltava todos os dias ao aposento do Anexo.
O Doador foi bondoso com ele durante muitos dias depois de compartilharem a terrível lembrança da guerra.
– Há muitas lembranças boas também – o Doador lembrou a Jonas. E era verdade. Até então, Jonas já tinha vivenciado muitos momentos de felicidade, coisas de cuja existência nunca soubera antes.
Assistira a uma festa de aniversário, vira uma criança em destaque sendo homenageada em seu dia, de modo que agora compreendia a alegria de ser um indivíduo, especial, único e orgulhoso disso. Visitara museus e contemplara pinturas repletas de todas as cores que ele passara a reconhecer e dar nome.
Numa fascinante lembrança, montara um reluzente cavalo castanho num campo que cheirava a capim molhado e desmontara junto a um pequeno riacho em que ele e o cavalo beberam água, uma água fria e cristalina. Agora sabia sobre animais; e quando o cavalo acabou de beber e empurrou de leve o ombro de Jonas com a cabeça, ele entendeu como eram os laços que ligavam os homens aos animais.
Caminhara através de bosques e sentara-se diante de uma fogueira de acampamento à noite. Embora, através das lembranças, tivesse aprendido sobre a dor da perda e sobre a solidão, agora também compreendia o isolamento e seus prazeres.
– Qual é a sua lembrança favorita? – Jonas perguntou ao Doador. – Não precisa se desfazer dela ainda – acrescentou depressa. – Basta me falar a respeito para que eu possa ter prazer em esperá-la, já que um dia terei de recebê-la mesmo, quando seu trabalho terminar.
O Doador sorriu.
– Deite-se – disse. – Fico feliz em dá-la a você.
Jonas sentiu alegria assim que a lembrança começou. Às vezes levava um certo tempo até ele se situar, encontrar seu lugar. Mas, naquela vez, fez parte da cena imediatamente e percebeu a felicidade que permeava aquela lembrança.
Encontrava-se numa sala cheia de gente, bem aquecida pelo fogo que brilhava na lareira.
Por uma janela, via que era noite e nevava. Havia luzes coloridas – vermelhas, verdes e amarelas –cintilando numa árvore que, estranhamente, estava dentro da sala. Em cima de uma mesa, velas acesas num reluzente suporte dourado produziam uma claridade suave que tremeluzia. Pairava um aroma de coisas cozinhando e ele escutou uma leve risada. Um cachorro de pelo amarelo dormia no chão. Espalhados por perto havia pacotes embrulhados em papel de cores vivas e amarrados com fitas brilhantes. Jonas viu uma criança pequena começar a pegar os embrulhos e distribuí-los pela sala: para outras crianças, para adultos, que obviamente eram os pais, e para um casal mais velho e sossegado, um homem e uma mulher, sentados juntos num sofá, sorridentes.
Enquanto Jonas assistia, as pessoas começaram a desatar as fitas dos pacotes, tirar os papéis de embrulho coloridos e abrir caixas que continham brinquedos, roupas e livros. Ouviam-se exclamações de prazer. Eles se abraçavam uns aos outros.
A criança pequena foi sentar-se no colo da mulher idosa, que a acalentou e encostou sua face na dela.
Jonas abriu os olhos e permaneceu deitado na cama, satisfeito, ainda se deliciando com a calorosa e reconfortante lembrança. Estavam todas juntas lá, todas as coisas que ele aprendera a prezar.
VOCÊ ESTÁ LENDO
O Doador de Memórias
Teen FictionJonas vive num mundo onde não há pobreza, doença, fome, divórcio, medo, nem dor. Todos têm família saúde, emprego, educação e lazer.As pessoas são treinadas para manter seus sentimento sob controle. As regras de conduta são invioláveis, os desejo...