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   DECLARA-SE QUE HOJE É FERIADO NÃO PROGRAMADO.

Jonas, seus pais e Lily, todos se viraram surpresos para o alto-falante da parede, de onde saíra o aviso. Um feriado daqueles acontecia muito raramente e era um deleite para a comunidade inteira quando acontecia. Os adultos ficavam desobrigados do dia de trabalho; as crianças, da escola, do treinamento e das horas de trabalho voluntário. Os Operários teriam um outro dia de feriado e, como substitutos, assumiam naquele dia as tarefas dispensáveis: cuidar das crianças-novas e dos Idosos, entregar alimentos; e a comunidade ficava livre.

   Jonas deu vivas e pôs de lado sua pasta do dever de casa. Estivera prestes a sair para a escola. Para ele, agora a escola se tornara menos importante e logo seu aprendizado formal estaria encerrado, não faltava muito tempo. Os Dozes, entretanto, apesar de já terem iniciado seu treinamento adulto, ainda precisavam decorar as intermináveis listas de regras e dominar a tecnologia de ponta.

   Desejou aos pais, à irmã e a Gabe um dia feliz e saiu pedalando pela ciclovia à procura de Asher.

   Fazia quatro semanas que não tomava as pílulas. Os Atiçamentos tinham voltado, e ele se sentia um tanto culpado e encabulado com os sonhos prazerosos que tinha quando dormia. Mas sabia que não podia mais voltar para o mundo de ausência de sentimentos em que vivera por tantos anos.

   Além do mais, seus novos sentimentos intensificados permeavam uma esfera muito maior do que seus sonhos apenas. Mesmo sabendo que o seu estado de espírito se devia em parte ao fato de não estar tomando as pílulas, achava que o que sentia vinha também das lembranças. Já enxergava todas as cores e conseguia mantê-las também, de modo que as árvores, o capim e
os arbustos permaneciam verdes em sua visão. As faces rosadas de Gabriel continuavam rosadas, mesmo quando ele dormia. E as maçãs eram sempre, sempre vermelhas.

   Nas lembranças, vira mares, lagos nas montanhas e rios que corriam pelos bosques; passara a enxergar de maneira diferente o rio largo que o caminho margeava. Via toda a luminosidade, cor e história que ele continha e carregava em suas águas que seguiam lentamente e sabia que havia um Alhures de onde vinha e um outro Alhures para onde ia.

   Nesse feriado inesperado, aleatório, sentia-se feliz, como sempre que havia um feriado; mas a felicidade era mais profunda do que jamais fora. Pensando na precisão da linguagem, como sempre fazia, Jonas percebeu que experimentava uma nova intensidade de sentimentos. De certa forma, não eram iguais aos sentimentos que todas as noites, em todas as residências, todos os cidadãos analisavam em conversas infindáveis.

   “Fiquei zangada porque alguém desobedeceu às regras da área de recreação”, Lily dissera um dia, fechando o pequeno punho para indicar que estava furiosa. Sua família, Jonas inclusive, tinha conversado sobre as possíveis razões para o descumprimento das regras, sobre a necessidade de compreensão e paciência, até Lily relaxar o punho cerrado e sua raiva se dissipar.

   Lily, porém, não sentira raiva, agora Jonas sabia. Impaciência e exasperação superficiais, nada mais do que isso, fora o que sentira. Tinha certeza disso porque sabia o que era raiva de fato. Nas lembranças, vivenciara a injustiça e a crueldade e reagira com uma raiva que subira com tamanha força dentro de si que a ideia de discuti-la calmamente na hora da refeição da noite seria impensável.

   “Eu me senti triste hoje”, ouvira sua mãe dizer, e eles a consolaram.

   Mas Jonas experimentara tristeza de verdade. Sentira um grande pesar. E sabia que não havia consolo rápido para emoções assim.

   Eram mais profundas e não precisavam ser expressadas. Eram sentidas.

   Hoje, ele se sentia feliz.

O Doador de MemóriasOnde histórias criam vida. Descubra agora