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   - Ah olhem! - exclamou Lily com a voz esganiçada, encantada.

  - Ele não é uma gracinha? Como é  pequeno! E tem uns olhos engraçados, iguais aos seus, Jonas!

   Jonas fulminou-a com o olhar. Não gostou de ouvir-la mencionar seus olhos. Esperou que o Pai castigasse Lily. Mas este estava ocupando soltando as correias que prendiam o cesto de transporte na traseira de sua bicicleta. Jonas se aproximou para olhar.

   Foi a primeira coisa que Jonas reparou ao ver a criança-nova que o fitava com ar curioso de dentro do cesto. Olhos claros.

   Quase todos os cidadãos da comunidade tinham olhos escuros. Os pais dele tinham, Lily tinha, assim como todos os membros de seu grupo e amigos. Mas havia umas poucas exceções: Jonas e uma menina Cinco, que, ele notara, tinha os olhos diferentes, mais claros. Ninguém comentava essas coisas; não constituíam uma regra, mas considerava-se indelicado chamar atenção para o que fosse constrangedor ou diferente nas pessoas. Lily, ele concluiu, teria de aprender isso logo, ou sua tagarelice inconsequente faria com que fosse castigada.

   O Pai estacionou a bicicleta, apanhou o cesto e levou-o para dentro de casa. Lily foi atrás, mas deu uma olhada para Jonas por cima do ombro e provocou-o:

    Talvez ele tenha a mesma Mãe-biológica que você.

   Jonas deu de ombros. Entrou com eles casa, mas os olhos da criança-nova o tinha impressionado. Espelhos eram raros na comunidade; não eram proibidos, mas não havia realmente necessidade de possuí-los, e ele nunca se dera ao trabalho de olhar muito para si, mesmo quando se encontrava num lugar onde existia algum espelho. Agora, vendo a criança-nova e a expressão do seu rosto, Jonas notou que os olhos claros não eram apenas incomuns, mas conferiam aos que os tinham uma certa aparência - de quê? De profundidade , decidiu ele; como se alguém olhasse para o fundo da água clara de um rio, onde poderiam estar à espreita coisas que ainda não tinham sido descobertas. Ficou encabulado, dando-se conta de que ele também tinha aquele tipo de olhar.

    Encaminhou-se para sua escrivaninha, fingido que não estava interessado na criança-nova. Do outro lado da sala, a Mãe e Lily estavam curvadas assistido o Pai desembrulhá-la de seu cobertor.

    Como se chama o objetivo reconfortante dele? - perguntou Lily, pegando a criaturinha acolchoada que fora colocada junto ao menino  seu cesto.

   - Hipo - respondeu o Pai, depois de olhar para ele.

   Lily deu uma risadinha ao escutar a palavra esquisita.

   - Hipo - repetiu ela, devolvendo o objeto para o seu lugar. - Tomara que minha Atribuição seja a de Mãe-biológica.

   - Lily - repreendeu a Mãe num tom áspero. - Não diga isso. É uma atribuição muito pouco nobre.

   É que, quando eu estava  conversado com Natasha, sabe, aquela Dez que mora na esquina? Ela passa algumas horas de seu voluntariado no Centro de Nascimento e me contou que as Mães-biológicas recebem uma comida maravilhosa fazem exercícios muito suaves e, na maior parte do tempo, só jogam, brincam e se divertem enquanto esperam. Acho que isso me agrada - disse Lily, petulante.

   - Três anos - replicou a Mãe em tom firme. - Três nascimentos e só. Depois disso tornam-se Operárias para o resto de suas vidas adultas, até o dia em que entrar para a Casa dos Idosos. É isso que você quer Lily?  Três anos de preguiça e depois trabalho físico pesado até  ficar velha?

   -Bom, acho que não - reconheceu ela, relutante.

   O Pai virou a criança-Nova de barriga para beixo dentro do cesto. Sentou-se ao seu lado e friccionou as costas pequeninas com movimentos ritmados.

O Doador de MemóriasOnde histórias criam vida. Descubra agora