A Sexta Sessão

45 21 66
                                    

Dormir e acordar, dormir e acordar, repetições do corpo e alimento à alma. Esta frio hoje, Tigre não deitou comigo esta noite, preferiu caças ratos a deitar se com seu dono, gatos em horas nos amam e em horas esquecem- nos. Ainda é seis da manhã, hoje tenho um encontro com o homem de branco, Madame Anne me levará, ela não gosta que eu vá sozinho.
Viro me na cama, olho para a janela, que por sinal fechada estava. O sol se perdurava, o céu estava em trevas, os postes já haviam apagado deixando como fonte de luz os faróis de carros e caminhões da rua.
Como os pensamentos perpetuam a essa hora, seria uma hora amaldiçoada, e dada a eternidade para se ter esses pensamentos? Talvez.
Pensamentos quais, palavras não descrevem, nos quais, lágrimas e consolos não suprimem.
De fato somos obras divinas, lembre de um discurso do pastor. Mas obras que cinicamente foram sabotadas por uma entidade, que até então não valia, o porque de alguém sentir algo pela qual.

Horas penso em Deus, e no seu grande tamanho e poder, justo e misericordioso. Mas que em. Momentos parece ignorar fatos ocorridos à seus filhos pródigos. Onde ele estava naquela noite? Onde?
Ouço passos na escada.

- Ah... Já está acordado, o que bom. Esta tudo bem querido? Ressoa Madame Anne com uma voz que só ela podia ter, apaziguante e arrebatadora, uma voz pelo qual consigo me manter no presente e de esquecer o tão tenebroso passado.

Assenti e me entreguei ao prazeroso fato de sorrir para ela. Ela retribui, me olha e da um salto. Tigre passara pela perna dela correndo em direção a minha cama

- Desce daqui a pouco, meu querido estou preparando o café. Disse ela sorrindo e retornando ao corredor.

Ao me virar vejo que o céu negro da manha se banhava numa luz laranja-amarelada. O dia estava enfim nascendo.
Tigre me acompanhou ronronando enquanto eu descia as escadas.
A mesa estava posta, Madame Anne ainda no balcão procurando algo. Instantes depois volta com uma espátula de passar geleia.
Sentado a mesa, trechos de lembranças passavam diante de meus olhos, um grande arrepio me passou na espinha. Voltei em mim e vi que eu olhava freneticamente para uma faca a três palmos de mim.
Uma sensação de rancor e ódio me caiu, mas o embrulho de fome. E despertou novamente.

Saindo pelo portão dianteiro com Madame Anne indo até o carro, pude ver como a casa era linda.
Não faz um ano que habito ali e por alguma razão me sinto em um lar verdadeiro.

As casas vistas por entre os vidros do carro não pareciam muito convidativas, não tinham cores vivas como de habitual no meu novo bairro (que pelo bendito é que esta em pouca distância de meu colégio).

Em fim chegamos a meu destino, um prédio grande, que lembrava um forte medieval. Esperei um pouco na recepção, Madame Anne estava cuidando das tais papeladas.

Encaminhamos ao quarto andar, agradeci imensamente de sairmos do elevador, além de frio balançava muito.
Minha sala era a trezentos e quinze, num final de corredor ao lado de um grande quadro de um anjo empunhando uma lança e com os pés na cabeça de um monstro, o título dizia, "Miguel o arcanjo". Ao nos aproximarmos a porta se escancarou, de dentro saiu ele, com suas vestes alongadas, óculos na ponda do nariz, barba alinhada, já grisalha e com um quê de calvície. O homem de branco.
Ele sorriu, e cumprimentou me com um aceno de cabeça, e Madame Anne com um leve aperto de mão. Fez um sinal para que eu entrasse e outro para que Madame Anne esperasse junto aos outros na área de espera. Ela me toca nos ombros e se encaminha para lá.
Incrível como eles acreditam que pintar as paredes de uma sala de branco a deixa mais confortável e com ar de paz, aquele branco todo alem de ofuscar a vista da um ar de mortandade ao local. Agradavelmente os moveis da sala quebravam todos os aspectos de morte. Grandes estantes com livros e retratos, quadros de paisagens e o meu lugar mais árduo, confortável por um lado, mas nas mãos do homem de branco virava uma sacra ferramenta de tortura.
Uma grande poltrona marrom avermelhada no meio da sala, junto com uma mesinha de vidro de pernas arqueadas e uma cadeira com encosto estofado defronte. Ouço o estalo da porta à minhas costas, ele entrou na sala com um caderno em mãos. Fez um sinal para que eu sentasse, obedeci. Ele se sentou à minha frente, cruzou as pernas, ajeitou os óculos, apoiou no caderno uma caneta e me olhou.
A luz da sala iluminou aqueles olhos, azuis penetrante, por instantes um silencio se expandiu na sala, e foi quebrado quando ele enfim perguntou.

-Gabriel, como tem passado essas semanas? Perguntou, aquela voz ousada e grave acompanhou a pergunta que instantaneamente me levou a um estado de devaneio.

- Bem- Respondi com normalidade na voz.

-Gabriel, pergunto sobre como tem se sentido desde nosso último encontro? Como está reagindo depois de tão cruel ato.

Perguntas que me doem só de pensar em responder. Olho instantes naqueles olhos observadores e dou uma longa e demorada respirada.

- Aquela cena... Digo quebrando o silêncio. -... ela não para de voltar a minha mente, o toque, o peso do corpo, as dores tudo ainda volta, tenho momentos em que não tenho essas aparições na minha cabeça, mas quando vejo coisas simples tudo volta. E como facas passando por mim.- Abaixo a cabeça e dou outra longa respirada.

- Entendo, Gabriel eu sinto muito por tudo o que tem passado. E ao acontecimento qual o seu mais forte sentimento a respeito? Outra pergunta é rogada.

- Não entendo o que sinto, me sinto culpado, com ódio, sinto vontade... vontade.

- Vontade?

- Vontade de acabar com tudo isso. Digo fechando os olhos e respirando.

Ele fez anotações durante algum tempo, levantou e seguiu para outra parte da sala, voltando, vi que ele carregava um copo d'agua.

- Tome, e se acalme, sei quanto é difícil para você descrever tais fatos. Ele me joga um olhar de cumplicidade e voltou se ao seu lugar.

- E, o diário? Espero que ele esteja o ajudando a contar e se desabafar a respeito de tudo o que sente.

- Me sinto livre quando escrevo nele, é diferente escrever como seculos atrás, por meio de tinta e pena, é como se as palavras fluíssem mais.- Digo a ele, vendo o semblante mais confiante e de trabalho feito no rosto dele me conforta um pouco.

- Bem, tenho algo para lhe devolver. - Fala ele levantando se novamente e indo à escrivaninha, abriu a gaveta e tirou de dentro um envelope de papel.
-Esse é meu novo pedido a você, tente se distrair um pouco, ouça música, jogue. Fala me entregando.

Abro o envelope, nele estava algo que eu ja não sentia falta, nunca havia usado muito, meu celular.

Na primeira consulta o homem de branco havia o pedido para eu não me importar mais com o falatório do ocorrido de aqueles que diziam serem meus amigos, falatórios maldosos que perpetuaram semanas nas redes sociais.
Não fiquei muito animado ao vê - lo de novo.

- É isso que lhe peço para o nosso próximo encontro, e continua escrevendo em seu diário. Falou ele encaminhando ate o caderno de anotações e o fechando.
Levanto me e sigo ate a porta, ele me acompanhou, na saída me tocou nos ombros e se despediu. Madame Anne que vira a saída se levantou das cadeiras de espera e foi ate a porta. O homem de branco fez um sinal para que eu os deixasse a sós. E foi o que fiz, eles conversaram por mais ou menos meia hora.

Já no carro a caminho para casa Madame Anne pergunta como estou me sentindo, no momento escolhi o silêncio como resposta, me curvo e não consigo segurar, uma quente lágrima desce rasgando meu rosto. Madame Anne reduz a velocidade e mesmo sem para ele me abraça. E disse.

- Vai ficar tudo bem querido, vamos para casa.

Memórias de um ESQUECIDOOnde histórias criam vida. Descubra agora