Setembro de 1915
Pierre
Finalmente parou de chover. Os períodos de chuva são bastante complicados pois as valas enchem-se de água que se mistura com a terra formando barro que entra nas meias e nas botas dos soldados. Por esse e por outros motivos, as febres são constantes nas trincheiras.
A noite está fria e estrelada. O frio que se tem sentido nos últimos dias parece não dar tréguas. O ar cheira a morte e a medo.
Hoje estou nas trincheiras da retaguarda e apesar de serem mais tranquilas, a paisagem continua a ser feita por arame farpado de todos os lados, buracos no chão causados pelas granadas e cadáveres de combatentes na terra de ninguém.
Têm sido tempos difíceis, mas também nunca ninguém disse que viver nas trincheiras seria fácil. Aqui não é preciso ser uma bala a matar-nos, pois muitos soldados morrem de doenças espalhadas pelos ratos que partilham connosco o espaço e a comida. O pior é o cheiro insuportável deixado pelos corpos que não são retirados das trincheiras.
Para além do frio e das más condições por que passamos, também comemos muito pouco e mal. Todos os dias, os homens vão buscar a comida às trincheiras da retaguarda, onde estão as cantinas, mas com o tempo que se leva a percorrer todos os inúmeros corredores até chegarem novamente aos soldados, esta arrefece completamente. A maior parte da comida é enlatada e para reabastecer o cantil com água, muitas das vezes temos de recorrer a poças deixadas pela chuva...
Recebi a carta que a Annie enviou e fico feliz por saber que estão bem. Este foi o primeiro Natal que passei longe de casa e, sem dúvida, que foi o mais difícil.
Aproveito a noite para voltar a escrever à Annie. Escrever-
-lhe ajuda-me muito a não pensar nas saudades.
"Querida Annie,
Fico feliz por saber que está tudo bem com vocês e que não estão sozinhas. Não tenho nenhuma notícia sobre o Sr. Leroy Beaumont mas, se souber de algo, avisarei. Espero que tenham passado um bom Natal. Pensava que aqui não celebraria o Natal mas, na realidade, não foi isso que aconteceu. Na noite antes do Natal, um capitão britânico, ouviu um sotaque estrangeiro do outro lado do fosso, pedindo para não dispararmos depois da meia-noite e que eles fariam o mesmo. Não demos muita importância pois achámos que seria algum tipo de armadilha. Começámos então a ouvir sons estranhos vindos de toda a terra de ninguém; soldados alemães estavam a cantar músicas natalícias. As tropas aliadas aplaudiram e começaram a gritar por mais. Pareciam felizes, um sentimento quase impossível de existir nas trincheiras. Também nós começamos a cantar trocando versos em línguas alternadas. Nem parecia que estávamos em guerra. Foi uma noite cheia de comemorações e emoções. No dia 25, alguns alemães atreveram-se a sair das suas trincheiras, mas não foram recebidos com tiros, mas sim com saudações de Natal. Trocámos conversas, gargalhadas e cervejas. Alguns até jogaram algumas partidas de futebol com bolas improvisadas. Comemoramos o dia de Natal todos juntos, como um grande grupo de amigos. Uns contavam de como gostariam de poder passar aquele dia em casa, outros mostravam as fotos que tinham da sua família. No dia seguinte voltámos para as nossas posições e tudo continuou como dantes. Foi um Natal completamente diferente de todos os outros, mas podia ter sido pior.
Amanhã irei para um campo militar para "descansar" por quatro dias.
Espero ansioso pela tua resposta.
Pierre Chermont"
Já vi muitas coisa que me chocaram nestes últimos cinco meses. O terror da guerra e a vida nas trincheiras enlouquece muitos soldados. Alguns ferem-se de propósito para poderem ser mandados de volta para casa. É um ato perigoso pois, se forem descobertos, correm o risco de serem fuzilados. Há também aqueles que já não aguentam mais e, por esse motivo, saem das trincheiras para serem mortos pelos inimigos.
Não há muito que se possa dizer do dia a dia nas trincheiras pois, para além das más condições por que passamos, os dias são passados a disparar para as trincheiras inimigas e a protegermo-nos atrás de sacos de areia para não sermos atingidos.
Desde que aqui estou, só me magoei uma vez, quando uma bala atingiu o meu braço esquerdo. Foi apenas de raspão, mas posso dizer que, mesmo assim, a dor foi insuportável. Tenho tido muita sorte no que toca a feridas, pois a maior parte dos soldados que não têm muita experiência, como eu, são constante e gravemente feridos e muitos não resistem.
Fecho os olhos e tento adormecer, mas só me vêm à memória as lembranças da Annie e da Nicole e do quanto sinto a sua falta.
Não tenho dormido nada ultimamente devido às insónias que me invadem a mente. Imagens de soldados mortos, bombas a atingirem trincheiras, soldados desesperados, feridas incuráveis... São imagens que assomam constantemente nos meus pensamentos e que parecem não me querer largar. E para além destas insónias que não me deixam dormir, há ainda o medo de fechar os olhos e não voltar a acordar. Parece estranho, mas, a verdade, é que a probabilidade de sermos invadidos por bombas ou gases tóxicos durante o sono é mais elevada do que muitos imaginam. Sei que não devia pensar muito nisso pois só piora a minha situação, mas sinceramente, não tenho muito que pensar para além disso. Muitas vezes, quando estou no meio destes pensamentos, tento relembrar-
-me de momentos bons do passado. Momentos em que gostaria que houvesse uma máquina do tempo para os poder reviver uma e outra vez. São esses momentos que me mantêm vivo e forte para combater todos os dias.
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Querida Annie
MaceraAnnie é uma rapariga francesa que, após o seu décimo quarto aniversário, descobre que o seu pai terá de partir para combater na I Guerra Mundial (1914-1918) ao lado da Tríplice Entente. Durante a guerra, pai e filha comunicam através de cartas, poré...