Parte 2 - Um anjo

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Um compartimento apertado, escuro, com cheiro de combustível e o som dos pneus traseiros do Monza preto rolando no asfalto. Éverton ainda se encontrava dentro do porta-malas do carro, tomado por pavor e desespero. Ele estava tão machucado que não conseguia gritar ou chorar. Seus pulmões estavam doloridos. Seus rosto sangrava, sua cabeça latejava e sua pressão parecia baixar. Ele alcançou o bolso da calça e pegou o seu smartphone. Tentou contato com sua amiga, Alexa, que havia saído do mesmo bar gay, naquela noite – por volta da mesma hora que ele – acompanhada de uma outra moça que conhecera ali. Mas Éverton não conseguiu contato. Ao olhar para o canto superior esquerdo da tela do aparelho, observou que não havia sinal de comunicação. “Nenhuma barrinha” ou “nenhum pauzinho”, na linguagem popular.

 – Droga! Quando a gente mais precisa, essas porcarias não funcionam – ele pensou, frustrado.

 A luz do celular iluminava o interior daquele cubículo móvel e Éverton podia observar uma série de objetos em volta e embaixo de seu corpo. Ele não os conhecia nem fazia ideia da utilidade deles mas a julgar pelos donos do veiculo, não pareciam ser ferramentas de reparo. Na verdade, eram objetos de tortura, botas com biqueira de aço, pedaços de madeira em forma de porrete e um soco inglês. Mais atrás dele estavam o que pereciam ser duas bandeiras enroladas em mastros de metal. Diante daquilo, Éverton passou a desacreditar da possibilidade de sua sobrevivência.

O carro parou. Escutou-se o grupo saindo do veículo, dando risadas com um tom macabro, comemorando a “diversão” da noite. De repente, a tampa do porta-malas foi aberta. Dois dos parrudos da gangue, puxaram a vítima para fora do compartimento como se ela fosse um saco de lixo e a arrastaram pelo chão. Subiram na calçada e continuaram seguindo para o que parecia ser as dunas da Praia do Forte. O bar de onde Éverton havia saído, não era tão longe de lá. Um vez na areia, os agressores judiaram ainda mais de Éverton, de maneiras que são até constrangedoras e difíceis de se narrar. Ele cobria constantemente o rosto com as mãos e braços para se proteger dos chutes impiedosos. Ráisa estava tão entusiasmada com a barbárie, que deu um beijo ávido na boca de Adolf. Um dos carecas do grupo pegou um porrete no carro e foi em direção a Éverton – que já estava caído a quase inconsciente – abaixou as calças dele, expondo as nádegas e posicionou o objeto de modo a introduzi-lo no ânus da vítima.

 – Não! Não faz isso.

 Surpreendentemente, Adolf impediu, com um grito autoritário, que Éverton fosse violado daquela maneira. Era estranho como alguém que tinha a frieza de espancar outro ser humano, teria este tipo específico de compaixão. Seria mesmo compaixão?

 – Então a gente tira a roupa dele e larga ele aí. O que você acha? – Ráisa propõe a Adolf, que aceita a proposta beijando o pescoço da moça e apertando suas nádegas, com as mãos por baixo de sua minissaia preta.

 Ao ouvir que seria desnudado, sem que o grupo agressor percebesse, Éverton escondeu o celular embaixo de uma planta rasteira – vegetação comum nas dunas da região. Depois que levaram suas roupas e o abandonaram naquele lugar, Éverton pegou o telefone e tentou contato com Alexa.

 – Alô... Alô, Alexa? Graças a Deus você atendeu – disse ele, com a voz ofegante – Estou precisando urgentemente da tua ajuda.

                                                                                           ...

 Depois de uma semana do acontecido, Adolf e sua gangue estavam em um bar no Boulevard Canal, bebendo cerveja e fumando cigarros que não pareciam ser dos convencionais. Era uma hora da manhã de um sábado que já havia virado domingo. O grupo conversava e gargalhava, falando de como – para eles – pessoas do nordeste do país eram estúpidas. O garçom os atendia com uma expressão indignada no rosto. Ele era natural do Ceará, bem como o cozinheiro do estabelecimento.

Alguns instantes depois, logo que um homem em outra mesa olhou para as pernas de Ráisa, Adolf partiu para cima dele com os olhos vermelhos peito estufado. Houve uma tremenda confusão e um quebra-quebra geral. O gerente do bar exigiu que o grupo problemático saísse dali. Sem pagar a conta, eles entraram no carro e partiram em retirada. O carro, desta vez, era um Gol vermelho que Adolf pegara emprestado de um primo para àquela noite. Ele havia prometido entregar o veículo no dia seguinte às oito da manhã. O Monza preto havia dado defeito e sido posto na oficina para reparo.

O grupo todo estava um tanto embriagado e Adolf acelerou para o bairro São Cristóvão para deixar Márlon e Papa (dois integrantes de sua turma). Depois disso, deixou o terceiro comparsa, Celta, no bairro Guaraní e por último, levou Ráisa no bairro do Braga, onde ela morava com a avó. Uma senhora tão velhinha e sem disposição, que não tinha forças para deter a neta de tomar decisões irresponsáveis. Logo que Ráisa entrou e fechou o portão, Adolf jogou a garrafa vazia de cerveja no asfalto, quebrando-a em centenas de cacos. Pisou forte no acelerador e partiu em direção ao bairro Jardim Esperança, do outro lado da ponte Feliciano Sodré, onde mora a um quarteirão de distância de seu primo, Iago – que havia cedido o Gol vermelho.

Com a mente afetada pelo álcool, Adolf dirigia em uma velocidade exorbitantemente acima do limite e foi parado por uma viatura policial. Ele não se preocupava com aquilo porque sabia que não era difícil se livrar daquele caras. Em troca de vinte reais, os policias liberaram o motorista imprudente. Não se sabe se eles não perceberam ou fingiram não perceber a sua embriaguez.

– Aí, playboy. Só coloca o cinto, valeu? - recomendaram os oficias.

Adolf acatou o conselho. Colocou o cinto de segurança e continuou a viagem. Atravessou a ponte, quase rompendo a barreira do som. Pegando a avenida Wilson Mendes, ele acelerou ainda mais. No rádio do carro tocava o rock Sure Fire Winners de Adam Lambert.

 À uma certa altura da avenida, havia um ponto de distribuição de café da manhã onde trabalhadores que passavam de bicicleta, em direção ao centro da cidade, ganhavam uma pequena refeição. Nesse ponto, um cachorro atravessou a rua entrando na frente do Gol em alta velocidade e assustando Adolf, que virou o volante bruscamente para a esquerda. O carrou começou a inclinar, suspendendo a traseira e abaixando a frente. Capotou uma... duas... três vezes. Adolf era chacoalhado para todos os lados – por sorte, ele usava o cinto - Seu coração batia como as asas de um beija-flor. Seus olhos esbugalhados viam tudo girar. Seu corpo inteiro gelou e sua consciência o fazia se arrepender de todas a crueldades que já havia cometido.

 O carro parou de ponta-cabeça na calçada. A avenida estava completamente vazia. Adolf, paralisado pelo susto, tinha ferimentos na testa, nos cotovelos e nas pernas. Com um resquício de consciência, ele pediu a Deus que, se realmente existisse, livrasse-o daquela situação. Então ele ouviu passos que se aproximavam do carro capotado e presumiu que aquele era um anjo que vinha ajudá-lo ou, talvez, levá-lo. Vazava gasolina e saíam faíscas do painel elétrico.

 Instantes depois, um ônibus que vinha de Búzios para o centro de Cabo Frio, passou em frente à cena do ocorrido. Alguns passageiros “desembainhavam” seus celulares para ligar para os bombeiros enquanto outros, apenas tiravam fotos. 

– Motorista, para o ônibus! - dizia uma passageira - Deve ter alguém no carro e agente têm que socorrer!

Segundos depois da fala compassiva da mulher, quando o ônibus já estava a vinte metros de distância do acidente, o carro explodiu, causando um barulho tremendo e um clarão provocado pelas chamas. De dentro do ônibus, pôde-se sentir o calor da explosão, propagado pela irradiação. E pelo vidro traseiro, via-se o Gol em chamas. O fogo consumia toda a matéria combustível.

Amado OfensorOnde histórias criam vida. Descubra agora