Todos caminhos trilham pra gente se ver

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Carro limpo.
Yalorixá animada, irmãos de santo todos impecávelmente bem vestidos, e eu com a cara de quem tinha chupado limão pensando que era manga.
Desanimada, de ressaca, com uma dor de cabeça que chegou do nada e um mal-humor de assombrar até exorcista. Estacionei na frente de um sítio lindo, com muros altos, pintados de branco. Todos desceram, menos eu que insistia em aproveitar os últimos segundos do ar-condicionado, temendo o calor lá fora.
-Clara! Vem logo! (Falou minha Yá, Roberta. muito bem vestida e perfumada.) Ela era uma jovem Yalorixá, cheia de vida e entusiasmo. E amava as festas da religião Afro onde quase todas as casas de candomblé de Fortaleza eram convidadas.
Observei muitos carros estacionados no lado de fora do sitío naquele dia. Um em especial me chamou atenção. Um Polo preto com um enorme adesivo escrito "UFC" *Universidade Federal do Ceará*.
Huumm! (Pensei em tom irônico) teremos burguêsia no candomblé hoje. Interessante!

Entramos, seguindo nossa Yalorixá que já era muito conhecida e apesar de jovem, era muito respeitada. Alguns membros da comunidade religiosa vieram nos dá boas vindas e em especial o próprio dono da casa veio pessoalmente abraçar Roberta e os demais.
-Sejam muito bem vindos! (Paulo falou animado).
-Obrigado meu amigo Paulo, pelo convite e pela recepção. (Roberta falou lhe retribuindo o abraço).
-Yá Roberta a casa é sua, sinta-se a vontade, hoje o candomblé promete ser bem animado e pela quantidade de gente que veio, acho que vai ser um pouco longo mas, após o término serviremos um jantar, espero que fiquem até o final.
-Claro! Ficaremos sim! ( ela prometeu rindo, mal sabia o quanto eu queria ir pra casa).

Peguei um cigarro e me afastei um pouco a fim de fumar antes do início da cerimônia religiosa.
Realmente estava apinhado de gente. De adeptos do candomblé, a curiosos de plantão, seguido por homens, mulheres e crianças todos bem vestidos com suas roupas de festa, era um arco-íris de cores. Cultura exalava a cada metro quadrado, conversas animadas de pessoas que eu nunca vi e foi naquele momento, naquela tarde ensolarada que meus olhos atravessaram toda a entrada principal daquele belo sítio muito bem arborizado.

Olhei para aquela pessoa, como se fosse a primeira vez que ví o mar.
Naquele momento perdeu-se todas as cores ao redor, tudo se tornou monocromático, só ela tinha cor e brilho.
Estatura mediana, cabelos claros pouco abaixo dos ombros, olhos incrivelmente penetrantes e um sorriso que me deixou de boca aberta como uma criança que vislumbra um brinquedo na vitrine que espera ganhar no natal. Vestia um vestido Indiano lindo em tons azuis e um colar fino cor de ouro no pescoço. Uma sandália combinando com a roupa e junto aos amigos ria despreocupadamente, ignorando absolutamente que estava sendo observada de longe por mim.
Perdida naquele sorriso, nem notei que meu irmão de santo chegava silêncioso perto de mim, não conseguia tirar os olhos dela.
-Rafaella...(Falou, enquanto pegava a caixinha de cigarro da minha mão)
-Oi, eu...quê? (Voltando a realidade)
-O quê você falou Marcos?
-O nome da estudante da UFC. Rafaella. - Notei que desde que você chegou, não tirou os olhos dela. Este grupo de estudantes alí são da turma de Antropologia da UFC. Estudantes e também curiosos por nossa rica religião né irmã? Ela não é de candomblé, porém sempre vai á festas, se cuida com um Babalorixá mas é Kardecista. Ahhh e é das águas salgadas, se é que você me entende. Conversamos algumas vezes na casa de Yá Leila, são paretes se não me engano. Já pode me agradecer pela informação me doando um cigarro que eu já tirei da caixinha, agora passe o isqueiro e fecha a boca.
De nada!!!
Observei ele falar, tentando assimilar o nome a pessoa...
-Para de ser fofoqueiro Marcos, não estava olhando pra ninguém. Estava tentando curtir o vento enquanto esta festa começa e ...
-E nada irmã eu te conheço, conheço cada cantinho desse seu cérebro maquiavélico.(risos)- Ela é realmente interessante, mas dessa vez você perdeu. Notou o rapaz moreno do lado dela? Então é o ex-noivo.
Acho que voltaram ou estão prestes a isso, mas ainda há esperança, ela é Bi...vamos entrar? Porque já vai começar...
Enquanto Marcos saía de perto de mim, olhei mais uma vez, e ela estava olhando na minha direção, Gelei.

Os atabaques anunciaram o começo daquela tão esperada cerimônia. E eu não tirava os olhos de Rafaella. Ela se limitava a algumas olhadelas vez ou outra para mim, porém eu, como adepta da cultura Afro, me contive e mantive a postura. Ao lado de minha Yalorixá fiquei em pé até a hora certa de sentar.
Pra quem nunca foi a uma festa de Candomblé, é bem simples. Resumindo: É um senta-levanta infinito.
Pra adeptos antigos, Yalórixas e Babalorixás, pessoas com certo grau hierárquico dentro do culto, o próprio orixá vez ou outra convida para dançar com eles, e isso para um Candomblecista é uma honra.
O que aconteceu com minha Yalorixá e eu como sua ekedjí (mulher que não incorpora*), tinha de tomar algumas providências para que tudo fluisse nos conformes.
Notei que até então Rafaella não percebera qual era meu grau heirárquico dentro da religião. E apartir daquele momento, ganhei muitos olhares dela e eu cada vez mais nervosa. O ato da dança acabou, minha Yalorixá voltou a sentar e Rafaella voltou a atenção a tudo que acontecia ao seu redor. Sentada de pernas cruzadas, postura ereta, tranquila, com ar de seriedade ela era ainda mais linda.
Confesso que fiquei meio fora de órbita, e isto nunca havia acontecido, sempre fui muito séria quando o assunto é Candomblé, eu própria estava me desconhecendo, afinal não a conhecia, mas senti o magnetismo no olhar, e estava me sentindo altamente embaraçada com aquilo.
O resto da tarde passou tranquila, a festa estava animada, muita gente havia chegado após o início. Até que a noite chegou e o fim foi anunciado. (Pensei: Agora posso tentar uma aproximação)
Lento engano.
Enquanto todos se dirigiam a parte reservada a ser servido o jantar, Rafaella se dirigia para a porta da saída, educadamente se despedindo de todos os amigos e eu a observar de longe, entrou no Polo preto com o enorme adesivo, deu partida e foi embora, juntamente com o ex-noivo e outro casal.
Nem sequer olhou para trás.
E eu fiquei a ver navios.

Me juntei aos meus, e fui aproveitar a saborosa comida com cheiro estonteante.
Um pouco desanimada, pois ela não estava mais lá. O elo do olhar "magnetizante" havia se quebrado.
Porém, eu ainda tinha muitas informações a colher naquela noite.
Decerto Marcos me passaria todas os bafos interessantes.
-Marquinhos senta aqui do meu lado, precisamos conversar(falei em um tom alegre, senão ele não viria).
 - Irmã tenho boas notícias...o casal não voltou, mas pelo o que eu soube, ele está investindo pesado para a reconciliação. Ela deve valer a pena.
Pensei comigo:
(É...deve valer muito a pena).

***

 


Até depois do fimOnde histórias criam vida. Descubra agora