I -Dave

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-Vá para o inferno, cachorro maldito.

Dave suspirou para tentar se acalmar, mas seria difícil. Ele detestava Senhorita Chiuaua Francesa. Faltavam oito dias para seu décimo terceiro aniversário e havia uma garota de cachos cor de caramelo caída no chão quente e uma multidão o encarando, bem em frente à estação São Bento do metrô, em São Paulo. Ele deveria ter pedido desculpas, mas, ao invés disso, procurava encontrar as quatro meninas na multidão. Seu dia já não estava bom até então. Teve que limpar os cacos do prato quebrado por seu irmão às seis horas da manhã, tinha brigado (de novo) com o professor Breno (ou professor Pelanca, tanto faz. Ele tinha muita pele no pescoço), e Nicolle, a garota caída no chão, veio lhe dizendo como era errado brigar com professores o caminho todo.

Dave raramente tinha chance de ser uma criança. Teve que limpar prato para que a mãe não se estressasse. Ver Maria cansada e frustrada era a pior sensação que Dave já havia experimentado. Não havia uma figura paterna sequer na vida do menino e ele sentia o quanto a mãe dava duro trabalhando na concessionária para manter o apartamento simples perto do Butantã. Ele tentava se dar bem na escola e ser o mais independente possível para que Maria pudesse descansar. Andava sozinho até a escola, que não era longe, comprava pão e lavava a louça. Era o jeito dele, um menino de doze anos, de ajudar sua mãe viúva. O que ele detestava fazer era tomar conta do irmão, que Dave considerava o oposto de si mesmo: um fardo. Apesar de que o irmão nunca brigava com professores, como ele fazia.

As vezes era difícil manter-se calmo para a sanidade da mãe. Sua família era pequena, e apresentava costumes que o menino não compreendia. Um deles era contar histórias. Estavam sempre alimentando muito a imaginação das crianças. A maioria era sobre Reginald, mas todas eram bem fantasiosas. Contavam sobre o reino de Érestha, um lugar repleto de criaturas como dragões onde aconteciam enormes festas para príncipes e princesas. O filho mais novo de Maria, nascido aproximadamente seis meses após a morte do marido, adorava essas histórias, e até se animava quando diziam a ele que um dia faria parte desse reino. Dave encarava como alimento para o cérebro: apenas histórias. Não podia estar mais enganado. Apesar de não gostar do jeito como contavam sobre coisas absurdas e metiam o nome do pai no meio, Dave gostava de algumas. Sua favorita era, surpreendentemente, sobre a morte de seu pai. Ele não sabia bem o porquê, mas pensava que era a única sobre seu pai que parecia verdadeira. Figuras encapuzadas e chuva na cidade de São Paulo. Parecia real.

Naquela tarde ele havia empurrado sua melhor amiga, Nicolle, no chão. Não porque ele estava farto de ouvi-la reclamar de sua atitude, mas lhe parecera necessário. Quatro garotas vinham na direção deles. Elas estavam vestidas todas de preto e levavam o cabelo preso num rabo de cavalo com uma mecha solta colorida (uma cor para cada uma). E havia aqueles olhos... Eram grandes, contornados por maquiagem e tinham a cor de um amarelo vivo que os tornava assustadores. Era impossível não prestar atenção neles. Elas se entreolhavam enquanto se aproximavam das crianças, sorrindo maliciosamente e lambendo os beiços. Uma delas tinha a língua bifurcada e rebolava comouma cobra. Dave podia jurar que ouvia-as sussurrarem "ossos", "sangue" e "carne". Ao passar perto delas o tempo ao redor desacelerou. Dave sentiu como se todos tivessem parado por um segundo enquanto aqueles olhos horríveis encaravam Nicolle vorazmente, famintas, querendo, talvez, devorá-la. Os sussurros tornaram-se mais altos, o sangue de Dave pareceu cogelar e ele não saberia explicar o medo que sentira naquele momento. Então ele a empurrou para longe das garotas, mas Nicolle tropeçou naquele cachorro estúpido e caiu. Ele ofereceu a mão para ajudá-la.

-Dave Fellows, o que foi isso? -Ela perguntou, arrumando os enormes óculos de armação branca no rosto.

-Aquelas garotas...- Ele se virou para olhá-las mais uma vez, mas não estavam mais ali. Provavelmente já tinham descido as escadas da estação, próxima à sombra de uma árvore velha.

Érestha- Castelo de Vidro [LIVRO 1]Onde histórias criam vida. Descubra agora