III -Alícia

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O vento parecia querer cortar Alícia Weis em pedacinhos. Fazia seus olhos lacrimejarem e os pelos de seus braços arrepiarem-se, mas ela adorava as noites na laje. Dali ela via as ruas complicadas da favela, as luzes das casas que festejavam e, com algum esforço, a beleza do Cristo Redentor, no Corcovado. As noites no Rio de Janeiro eram lindas ao ver da garota.

Mexia animadamente nos seus cabelos, coisa que lhe acalmava. Seu dia havia sido um tanto agitado e, agora que estava sozinha em casa, podia refletir sobre ele. Não quis ir à festa com seus irmãos e sua mãe justamente para poder pensar. E com pensar queria dizer listar todas as coisas que lhe atormentavam e deixar que as emoções fluíssem. Seu violão estava apoiado em suas pernas, mas nenhuma melodia era capaz de sair dela naquele momento. Suas unhas estavam cheias de terra. Será que haverá um dia onde eu não tenha que chorar ou me preocupar? Por que hoje?

Ao acordar notara a falta de seu colar que sempre dormia em seu pescoço. Era um presente que ganhara de uma boa amiga que morava algumas casas morro a cima. O cachorro o tinha enterrado no canteiro de sua mãe, na laje da casa. Alícia passou a manhã de pijama revirando terra para encontrá-lo. Acabou sendo arranhada por um gato de rua que vagabundeava pelas casas no processo, e suas unhas recentemente cuidadas foram arruinadas pela terra. Seu quarto, que dividia com uma das irmãs, estava repleto de marcas de patas feitas de terra e ela fora a declarada a culpada pela justiça da mãe, e teve de limpar tudo com pano e água.

A casa era no segundo andar de um sobrado numa rua que podia ser considerada larga se comparada às outras da favela. Lá, moravam ofiicialmente apenas Alícia, seu irmão gêmeo e a mãe, Ruby. As duas irmãs e o irmão, mais velho dos filhos de Ruby que já era formado, moravam em Érestha. Nenhuma dessas pessoas, excluindo o gêmeo, faziam Alícia se sentir numa família. A irmã mais velha, Ramona, adorava a sensação de vê-la metida numa encrenca, numa bronca ou com a auto-estima baixa. Lembrava-a sempre que possível que ela era baixinha demais para a idade, que o aparelho fixo em seus dentes era ridículo e que a considerava a desgraça da família, por não serem filhas do mesmo pai. Alícia e o irmão gêmeo haviam nascido após a morte do pai dos outros irmãos, e Ramona fazia com que Alícia se sentisse o verdadeiro infortúnio da família Weis. Motivo número um para um dia ruim.

O dia deveria ter sido especial. Era o dia do teste. Com os irmãos, o dia do teste havia sido uma grande festa. Todos tiveram uma flor nascendo do vaso e um almoço especial. Depois, a família se arrumava e entrava no reino de Érestha para celebrar mais um ano de vida da futura rainha e também o marco do novo ano que se iniciava. Mentiram para mim. Não há nada de feliz nesse dia. Ruby preparou tudo para ela e o gêmeo. O vaso com terra, o copo d'água, o foósforo e o catavento. O menino foi primeiro. Algumas perguntas simples e uma rosa cor-de-rosa brotou do vaso. Ramona riu. Ele detestava rosa. A cor, a flor e o nome. Alícia respirou bem fundo antes de sentar à mesa na varanda. Ela era a única de sua casa que não fazia as flores crescerem. Isso poderia significar que ela era uma parte diferente do reino de Érestha ou nem mesmo fazer parte dele. Qualquer uma das opcções desencadearia ainda mais palavras rudes de Ramona. Se a flor crescesse, assim como a do irmão, eles iriam juntos para a província da princesa Tâmara da terra. Estudariam seus legados e talvez começassem uma vida ali. Era o que Alícia esperava, afinal, toda a sua família tinha o legado da terra. Se o copo enchesse de água, era para a provícia de Teresa que iria. Ela não sabia muito sobre essa princesa, mas conhecia bem uma história sobre um bebê proibido que fora entregue ao mar por ordens da rainha. O fósforo acendendo-se ou a água congelando-se levariam-na para o mesmo lugar, as terras do ríncipe do gelo e do fogo. E o catavento giraria apenas se Alícia tivesse habilidades do ar e dos ventos. Ela respondeu às perguntas e depositou as mãos sob a mesa. Para seu alívio, ou não, um copo-de-leite murcho e quase sem vida cresceu vagarosamente do vasinho. Mesmo assim Ramona riu de novo. A flor dela era uma rosa amarela bela e saudável. Motivo número dois para um dia ruim.

E para completar seu dia, Romena, a irmã do meio, gritou com ela quando estava ao telefone e o garoto do outro lado da linha com certeza pensou que ela fosse uma idiota.

Então ela subiu até a laje e lá ficou até que os outros saíssem à caminho da festa em Érestha e a deixaram ainda mais sozinha em casa. Viu o sol se pôr e a lua se levantar, sentada no chão frio com o violão aos seus pés e olhinhos brilhantes dos gatos dos vizinhos a observando.

Suspirou, fechou os olhos e contou até dez para se acalmar e não descer para destruir o quarto de Ramona. De novo. Ao abrir os olhos algo incomodava sua visão. A luz da lua refletida na lâmina afiada de um canivete que provavelmente pertencia ao mais velho dos irmãos, que, por motivos desconhecidos, colecionava objetos cortantes. Alícia pegou o objeto. Encarou o copo-de-leite murcho que zombava dela com aquela cor pálida e folhas secas. As flores ao redor eram rosas e cravos e a bela orquídea branca de sua mãe, todas saudáveis e bem cuidadas.

Sem pensar duas vezes ela pegou o canivete e picotou sua flor até que não sobrasse nada. Cortou sua mão no meio do processo. Depois aproveitou que sua raiva estava tão eminente e desceu para destruir o quarto da irmã. Quebrou porta-retratos, derrubou a cama, bagunçou gavetas e deixou o cachorro entrar e participar da festa. Fazia tudo gritando, xingando e chorando. Palavras rudes de sua meia-irmã ecoavam em sua cabeça, machucavam seu coração. "Baixinha". "Dentuça". "Bastarda".

A primeira vez que Alícia decidira bagunçar o quarto fora ao seus seis anos de idade, dois dias antes do Natal daquele ano. Ramona deveria ser responsável por cuidar dela enquanto sua mãe saía com os outros irmãos. Para evitar qualquer problema, trancou-a no quarto e chamou amigos para jogar video-games. A pequena Alícia deu um jeito de pular a janela e dar a volta para entrar pela porta dos fundos, e Ramona ficou furiosa. Gritou com ela e humilhou-a na frente de outras pesoas, que estavam todos do lado de Ramona. Alícia foi chamada de bebê bastardo e desgraça da família. Riram dela por que ela era pequena de mais para a idade. Apontaram para ela, comentaram seus dentes que estavam caíndo e Ramona machucou seu braço ao jogá-la dentro de seu quarto e tranca-la. Ela não chorou muito, quebrou algumas coisas e rasgou outras. Sua mãe colocou a culpa inteiramente nela quando voltou. Fora também a primeira noite que Alícia não passou em casa. Dormiu com uma amiga e não deu satisfações para ninguém.

Depois, quando parou para olhar o estrago que tinha feito e se deu conta de que aquilo fora inútil e que seria pior apenas para si mesma, a menina se ajoelhou em meio a lençóis, almofadas e pulos animados do cachorro e começou a chorar. As lágrimas jorravam de seus olhos com violência. Por que? ela se perguntava. Mas que droga, o que eu fiz de errado? Não ouviu os passos nem a porta do quarto se abrindo quando seu gêmeo entrou e se ajoelhou junto dela. Seu nome era Riley Weis. Era tão bastardo quando ela, por que Ramona não implicava com ele também? Alícia soluçou. Riley abraçou a irmã e continuou encarando a bagunça.

-É isso que você faz quando te deixamos sozinha? Isso na sua mão é sangue?

Ela se levantou e relatou, em meio a gritos furiosos, o dia "incrível" que teve. Gritou e foi gritando cada vez mais alto os episódios daquele dia. Riley assistiu ao ataque de fúria da irmã em silêncio, tomando cuidado para concordar e discordar nas horas certas. Ao fim do berreiro o frágil abajur apoiado cuidadosamente na cômoda caiu no chão com um barulho inacreditável e se quebrou em um milhão de pedacinhos aos pés dos meninos. O cachorro parou de pular e finalmente se calou.

As crianças arregalaram os olhos, se encararam e então se abraçaram. Alícia quis chorar de novo. Riley não mereceia Ramona, não merecia ser chamado injustamente de bastardo e muito menos merecia que Alícia pensasse que ele não sofria tanto quanto ela. A vida pode ser cruel comigo, mas também é com Riley. Pelo menos temos um ao outro para compensar.

-Quer jantar? -Riley perguntou.

Alícia respirou fundo para se acalmar e assentiu.

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Oi Galera! Obrigada por acompanharem mais um capítulo de Érestha!

Por favor, não esqueçam de deixar um comentário e curtir a história, me ajuda bastante!

E se estão confusos em relação à arvore genealógica da família Weis (sei que é complicada haha), vou tentar colocar uma imagem que espero ajudar-lhes na MEDIA desse capítulo.

Vou tentar postar o próximo até semana que vem! Obrigada de novo!

De acordo com a LEI N 9.610 DE FEVEREIRO DE 1998, PLÁGIO É CRIME.

Érestha- Castelo de Vidro [LIVRO 1]Onde histórias criam vida. Descubra agora