Prólogo

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Onze anos antes

-Ela pediu para que eu matasse aquele bicho. Ninguém sabia o que era e nem conseguia controla-lo, pois via a arma na mão das pessoas e parecia prever seus movimentos. Acredito que fosse um boi ou um touro mutante –a menina riu à menção de touro mutante. Reginald Fellows sorriu e continuou a história. –a princesa Tâmara me presenteou com uma espada cuja lâmina só aparece uma vez que a pedra vermelha no cabo de couro seja apertada, portanto, o touro mutante não sabia que era uma arma e não previu o que eu iria fazer. Foi um pouco difícil, pois ele era bastante atraído pelo vermelho da pedra... Mas quando livrei os fazendeiros da ameaça, eles apelidaram a espada de Mata-Touro. É uma lenda naquela região.

-Assim como você! –a menina pulou- Também é uma lenda, não é tio?

-Não sei. Talvez. As pessoas contam histórias sobre mim e devem haver canções. É, talvez um dia eu seja uma lenda –ele fechou o álbum de fotos e respirou bem fundo. Quem sabe eu serei uma lenda. Sim, serei lembrado, com certeza. Assim todo o sacrifício valeria a pena... Pensou, mas logo chacoalhou a cabeça para espantar tais pensamentos.

A pequena família estava reunida para o almoço. Reginald gostava de estar na casa de sua irmã pela boa companhia e comida, a animação da sobrinha e os álbuns de fotos cheios de memórias. Maria, sua mulher, voltou sorrindo da cozinha carregando seu bem mais precioso enbrulhado em cobertores. O pequeno já não era mais um bebê tão pequeno como quando saiu do ventre da esposa. Estava completado um ano de idade naquele dia e sabia pronunciar algumas palavras com graça.

-É esperto esse meu filho –Reginald falou, sorrindo para a mulher e a criança.

Ele não conseguia parar de olhar os álbuns. Algumas fotos dali deveriam estar no seu álbum de casamento. Fora uma época tão boa. Em uma das fotos, seu chefe, e a esposa deste faziam caretas loucas junto a ele. Noutra, uma mulher de vestido verde e um homem de cabelos metade brancos e metade vermelhos sorriam segurando um presente embrulhado. Eram os únicos da família real que sabiam de seu segredo... Ou parte dele. Ele não pretendia revelar a ninguém tão cedo. Todos os seus amigos e família estavam ali nas fotos, com exceção da princesa roxa... Era estranha essa sensação de olhar para o melhor dia de sua vida, seu casamento, e sentir falta de uma mulher que mal era amiga da noiva.

Todos ainda estavam rindo no pequeno apartamento, apreciando a fofura do bebê de olhos azuis, menos Reginald. Se as previsões da rainha e daquele que se diz sábio estivessem certas, algo bastante ruim estava para acontecer. Reginald sabia o que fazer. Seguiria as instruções da rainha e protegeria sua descendente. Nem Maria, nem a descendente sabiam dessa promessa, e não iriam ficar sabendo. Não enquanto ainda estivesse vivo.

Dois meses mais tarde, Maria tentava, inutilmente, embalar o filho para que este dormisse quieto. Contava uma das mutas histórias das aventuras de Reginald para ver se o menino acalmava-se.

-E ele deitou na grama do castelo da rainha, em paz. O que ele não sabia era que o perigo voltaria. -Maria terminou, mas dessa vez os olhinhos azuis curiosos e agitados do pequeno Dave não se fecharam. Vasculhavam o quarto a procura dos olhos igualmente azuis e brilhantes do pai.

Era uma noite em que a lua resolveu ficar escondida atrás das nuvens escuras. As pessoas que passavam pela rua não faziam ideia do que estava acontecendo ou do que poderia acontecer caso Reginald não cumprisse sua missão. De repente a porta do apartamento se abriu e o homem passou apressado por ela, molhado de chuva e com a respiração pesada. Ignorou a mulher por um instante e pegou o filho no colo. O bebê sorriu.

-Reginald, está tudo bem?- Maria perguntou- E essa água?

Apesar das nuvens pretas que escondiam o brilho da noite, não caía uma gota d'água sequer do céu de São Paulo. O homem estava tenso, temeroso. Havia um brilho estranho pulsando em seu braço, e ele fazia muita força para ignorar. Os músculos contraíam-se e veias pareceiam querer saltar para fora de sua pele. Maria sabia pouco sobre aquela marca de luz, mas seu conhecimentos a permitia deduzir duas coisas. Primeiro, que ele e uma certa princesa de cabelos roxos estavam sofrendo. E segundo que algo de muito ruim havia acontecido.

-Temos que sair daqui. Agora -o marido finalmente respondeu.- As coisas deram errado, Maria. Muito errado. Temos que sair daqui antes que eles nos encontrem.

-Eles? Quem?

Reginald Fellows simplesmente saiu do apartamento com o bebê, sem explicar mais nada à esposa e dirigiu em silêncio até o apartamento da irmã, mesmo com as infinitas perguntas da mulher. Já era tarde demais quando eles alcançaram seu destino. Três figuras encapuzadas vinham caminhando em direção ao carro. Nas extremidades, Maria tinha certeza que era mulheres. Uma rebolava em seu andar e a outra tinha um brilho sinistro saindo se seus olhos. A figura do meio estava armada com um chicote.

-Entre no apartamento de minha irmã e se esconda -o marido deu as instruções à mulher. Ele tirou o cabo de uma espada do bolso e fechou-a numa caixa de madeira. Deu-a a Maria, sem mais explicações. -Peça para ela descer e cuide do bebê e de minha sobrinha.

-Mas, Reginald...

-Vá! -Ele virou para trás e fez cócegas na barriga do filho, ainda acordado- Cresça filho. Seja sempre leal àqueles em que você confia.

-Eu te amo -Maria disse por entre as lágrimas

-Também te amo –o homem deu um beijo apaixonado na mulher. Havia um gosto amargo em sua língua, a mulher percebeu. Sabor de despedida. -Quando tudo estiver resolvido voltamos para casa.

A criança emitiu um som, como se tentando fazer parte da seção de despedidas. Faltando alguns metros para que as figuras de capuz estivessem perto o bastante para fazer o que quer que tivessem vindo fazer, Maria saiu do carro e entrou no prédio da cunhada.

-O que houve? –A mulher perguntou, ao abrir a porta para Maria.

Explicou a situação e recebeu mais ordens: se esconder junto à sobrinha no quarto do fim do corredor. A irmã de Reginald desceu correndo as escadas, carregando duas espadas compridas, e Maria entrou. A sobrinha estava chorando junto a uma almofada num formato de bichinho. Acomodou o bebê na cama e foi espiar pela janela. Não era mais possível vê-los, só ouvi-los. Era agoniante. Os estalos do chicote, risadas doentias e sibilos assutadores vindo de algum ponto rua abaixo. E não havia nada que ela podia fazer.

-Tia?- A menina chamou, soluçando -O que está havendo?

-Eu não sei querida -Maria sentou-se junto dela. -Eu não sei.

O pequeno Dave continuou a vasculhar o quarto procurando cruzar o olhar com o pai. Porém, isso nunca aconteceu. Os minutos foram se estendendo e viraram horas. Quando a porta do quarto se abriu o sol já queria aparecer. Maria não chorou por ver a cunhada machucada e cansada. Chorou por não ver o marido.

Érestha- Castelo de Vidro [LIVRO 1]Onde histórias criam vida. Descubra agora