Epílogo

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Os sapatos machucam os meus pés e só quero tirá-los. Meu pai disse que não posso ficar descalça na escola. Devo ser uma mocinha, ele disse, ou então vou dormir com o coro ardendo. Não entendi muito bem, acho que vou ficar descalça mesmo.

Abaixo para soltar o laço feio da minha sapatilha e vejo meus coleguinhas correndo, é pique pega. Não gosto de correr e eles não gostam de mim. Pedro me chamou de dona Florinda mais cedo, todos riram. Eu comecei a chorar, mas lembrei que em casa sempre levo um tapa na boca quando choro, engoli o choro e vim para o balanço.

Me disseram que eu faria muita amizade quando viesse para cá, vovó mentiu. Ela mente muito, mas mesmo assim ainda prefiro aqui do que a casa escura e cheia de fumaça dela. Meu pai avisou que devo ficar longe dos garotos e que posso fazer uma amiga boa. Nenhuma delas anda sozinha, como vou fazer uma amiga se elas não deixam?

Talvez quando eu trouxer minha coleção de cabeças de Barbie eles gostem de mim. Vou pedir para trazer elas amanhã ou quando a minha mãe voltar, porque ela vai trazer mais cabeças para a minha coleção. Mamãe está em São Paulo e minha avó sempre diz que ela saiu para me comprar presentes, com certeza vai trazer isso para mim.

Coloco as meias dentro do sapato e dobro as mangas do meu casaco. Ele fica muito grande em mim, mas foi algo que ganhei da minha mãe antes dela sair, era dela e combina com o céu. Gosto do céu, gosto de azul.

Escuto passos, gente vindo em minha direção, três meninas. Sorrio.

_O que você trouxe de lanche?

_Bolacha de chocolate.

_Você quer dividir com a gente? Eu trouxe bolo de morango.

A mais alta delas é quem faz a pergunta e meu coração acelera, quero muito.

_Quero, mas eu não gosto de morango.

As outras duas se olham e a mais alta volta a falar.

_Ah, então deixa pra lá.

E elas saem. Deixam eu e minha bolacha para traz. Seguro nas cordas do balanço e volto a balançar, não acredito que fui tão boba e disse que não gostava de morango. Balanço com mais força, vou e volto, minha trança bate no meu rosto. Não acredito que não fiz amizades. Ninguém gosta de mim. Balanço mais e mais alto, até que meu casaco escorrega do assento. Voo como uma pata.

Meu rosto bate na areia do parque e minhas mãos ralam um pouco. Quero chorar, vou chorar, mas a voz do meu pai aparece na minha cabeça gritando "engole o choro ou leva uma surra". Engulo e viro meu rosto para o outro lado do parquinho, vejo um garotinho sentado perto da casinha colorida. Todos estão correndo, ou subindo no trepa-trepa, ou correndo para subir no trepa-trepa, ele é o único que parece sozinho. Eu só conseguiria fazer amizade com alguém sozinho.

Levanto, bato as mãos no casaco e corro até ele, chego ofegante.

_Como você chama?

O menino não responde, está mastigando alguma coisa, olho para as mãos dele e vejo um giz de cera. Ele está comendo um giz verde da cor dos seus olhos!

_Acho que giz não é de comer, você quer brincar de outra coisa?

O garoto pega o resto de giz e enfia na boca, com a boca cheia me responde:

_Mauríçoo!

_Eu sou a Maria! Minha avó me mataria se eu comesse giz e falasse de boca cheia!

Ele dá de ombros, acho que giz faz mal, pode deixar a barriga dele verde por dentro.

_Se ficar comendo giz ele vai grudar na sua barriga e vai ficar ai dentro até não ter mais espaço para o giz, você vai engasgar e não vai poder engolir porque já vai tá cheio e nem cuspir porque vai tá preso no seu corpo!

Mauro alguma coisa que não entendi, arregala os olhos, igualzinho a grandes bilocas e começa a respirar com força. Acho que não devia ter dito isso! Ele abre a boca e se inclina para baixo, parece que vai vomitar, mas nada sai. Está engasgando!

_Socorro! Socorro! Professora!

Corro até uma professora que corre até mim e continuo gritando.

_Ele está morrendo! Morrendo!

A tia corre e eu corro atrás, ela o levanta por trás e dá um forte tapa nas costas dele, até que ele cospe uma massa amarronzada esverdeada. O garoto começa a chorar e a apontar para mim.

_Foi ela tia! Foi ela!

_Eu já te disse para não comer giz de cera Maurício! Maria Augusta vai ficar com os outros, eu cuido dele!

_Ela disse que ia morrer, que ia ficar verde, ela é má tia Ju!

Saio antes que a professora fique brava comigo, porque fui eu mesmo, eu disse e aconteceu, devia ficar calada! Volto para o balanço e os observo de longe, suspiro, achei que poderíamos ser amigos.







Considerações da autora:

Então galera, isso é tudo! Não vou dizer que espero que tenham gostado porque sei que foi um final delicado, uma obra delicada em geral. Mudaria poucas coisas, mas nada relacionado ao curso do enredo ou o fim. Gostaria de ressaltar alguns pontos; 

1- espero que não pensem que estou romantizando o suicídio, sim pode soar como tal, mas a obra é extremamente pessoal e escrevê-la me ajudou, de certa forma, a exteriorizar muitas coisas que senti.

2- Demorei muito, muito mesmo para escrever, porque querendo ou não escrevo de acordo com o que sinto e claro de acordo com minha criatividade e nem sempre posso controla-los.

3- Os personagens claramente não existiram, quando digo que é pessoal, quero dizer que coloquei muito de mim mesma nos protagonistas. 

4- Quis apressar a postagem para coincidir com o Setembro Amarelo, mês da prevenção ao suicídio, porque, se alguém se sentir como a Maria Augusta ou até mesmo já ter cogitado a ideia e queira desabafar, quero dizer que estou disponível para ouvir e sou uma ótima ouvinte. Podem me chamar no Whatsapp (34) 991420530 não converso com muita gente e com certeza vou adorar ouvir vocês. Caso você não esteja passando por maus bocados, mas quiser conversar sobre literatura ou sobre bolo de chocolate ou qualquer coisa, pode chamar também.

5- Fiz uma Playlist no Spotify com músicas que são muito A Detestável Letra e leva o nome do livro:   M: https://open.spotify.com/user/r_disturbia/playlist/5Um6siP2dZkIha9VMV12QS 

6- Obrigada a todos que acompanharam! 2 kisses! 

A Detestável Letra MOnde histórias criam vida. Descubra agora