PRÓLOGO

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Me encontro deitado, meus pés e ombros ultrapassam o limite da cama de campanha tornando-a bastante desconfortável, não me importo, eu não vim pra África em busca de conforto vim em busca de cura, de distância. Se eu continuasse próximo tenho certeza que não cumpriria minha palavra, eu não conseguiria. Os sons em torno de mim são como música e eu tento me concentrar neles para embalar meu sono, mas ele não chega. Me segurei por uma semana inteira, nem uma lágrima correu pelo meu rosto desde que cheguei, nem mesmo ao atender os pequenos pacientes. Achei que não seria mais capaz de chorar depois das quase oito horas de choro intermitente durante o voo entre São Paulo e a Cidade do Cabo, não conseguia me controlar, a cada quilometro de distância maior era a minha dor. A aeromoça por mais de uma vez veio me perguntar se estava tudo bem, achou que era medo de voar, eu não neguei, não seria fácil explicar, mas era medo sim, só que era medo de esquecer, ou pior, de ser esquecido. Respiro fundo e sinto um aperto no peito, dessa vez não consigo controla-lo como nas noites anteriores e as lágrimas escorrem pelo meu rosto.

A sirene do acampamento toca, mais uma noite sem dormir, mesmo me sentindo extremamente cansado no final do dia, estou há sete dias sem conseguir conciliar meu sono. Dirijo-me a área dos banheiros para fazer minha higiene ao mesmo tempo em que seco com o dorso das mãos minhas lágrimas, não quero que me vejam chorando, eu não seria capaz de explicar. Observo um pequeno vulto correndo em minha direção, MALIK, um pequeno africano órfão de mais ou menos cinco anos que se tornou meu companheiro logo no segundo dia aqui. Se quisesse me encontrar era só achar Malik e vice-versa. Malik se aproxima e abraça minha perna, é a primeira vez que ele me abraça, é a primeira vez que o vejo demonstrar qualquer tipo de carinho, isso me faz perder novamente o controle de minhas lágrimas. O pequeno Malik me puxa e abaixo até ficar de joelhos na sua frente, ele ergue sua mão e toca meu rosto onde as lágrimas escorrem. Nossa comunicação ainda é complicada, ele não fala, não que não saiba, acho que porque não se sente confiante, mas consigo entender que ele quer saber se estou sentindo dor, balanço a cabeça afirmativamente, ele aponta para minha barriga, eu agora faço com a cabeça sinal de negativo, seus olhos de um azul profundo me olham interrogativamente e eu encosto a mão em meu peito, na altura do meu coração. Malik se aproxima mais, coloca a própria mão por cima da minha, beija com carinho meu rosto mal barbeado e com a outra mão puxa meus lábios pra cima me forçando a sorrir, eu me esforço por ele e sorrio fraco. Ele aponta para o banheiro e me empurra como quem diz, hora de trabalhar, antes que eu me levante se joga contra mim num abraço apertado e eu, como uma criança, o abraço e caio novamente em prantos. Me afasto devagar e o vejo sorrir pra mim, sua pequena mão faz um sinal de positivo e ele me empurra novamente.

Caminho em direção ao banheiro sob o olhar do pequeno Malik, o amor que ele me transmitiu em seu pequeno gesto acalma um pouco a dor que sinto. Eu consegui passar uma semana fingindo pra mim mesmo que estava tudo bem, que não sentia falta de casa, que não sentia falta de atender, que não sentia falta dos amigos... Entro no chuveiro e abro a água gelada, talvez o choque do meu corpo com a água fria mude o rumo dos meus pensamentos... Não, assumo para mim mesmo, eu só senti falta dela, do cheiro dela, da voz, do peso da cabeça dela em meu peito na hora de dormir, eu sinto falta dela, só dela. O choro volta forte, incontrolável, me agacho junto ao chão e abraço minhas pernas, quase em posição fetal, o barulho do chuveiro abafa meus soluços e me sinto livre para deixar a dor fluir.

Eu venho disfarçando o tamanho da minha dor há meses. Desde nossa briga digo para mim mesmo, e para aqueles que sabiam de nós, que estava tudo bem, que era melhor assim, que não funcionávamos juntos, que o melhor era realmente cada um seguir seu caminho, mas não consigo sentir assim. Durante esses meses cada noite foi um martírio, cada notícia foi um martírio, cada lembrança foi um martírio, mas eu me mantive firme na minha posição, firme porque eu sabia que ela estava ali a poucos quilômetros de mim, firme porque eu sabia que se a dor ficasse demasiadamente grande eu teria como procura-la, mesmo que não tenha feito, eu sabia que era possível. Uma mensagem, um telefonema... Sua imagem se forma em minha mente e traz com elas doces lembranças, a primeira vez que a vi, o gosto de sua boca em nosso primeiro beijo, nossas cabaninhas em rede nacional, nosso reencontro, nossa primeira noite sem câmeras... Eu sinto meu corpo reagir às lembranças e as afasto, mas outras insistem em chegar, como os momentos em que nos separávamos, momentos sempre tão doloridos pra nós. A crença que juntos lutaríamos contra o mundo e em prol de nosso amor... Uma nova pontada em meu peito e agora visualizo nossas brigas, nossas acusações, as acusações de nossas famílias e amigos, dos fãs, da mídia, a dor de cada briga findada em mais uma separação e a ação do Cosmo em nosso favor, nos unindo de novo. Menos dessa última vez.

Mais uma vez a sirene do acampamento toca, a essa hora eu já deveria estar pronto e me encaminhando para o refeitório, espanto as lembranças de minha mente e acabo meu banho correndo. Saio do banheiro e Malik me aguarda, faz um sinal pra mim perguntando se está tudo bem e eu confirmo. Segura minha mão e me acompanha até o refeitório, ele aponta o refeitório infantil e depois aponta o local que estamos, eu sorrio pra ele em compreensão, ele puxa minha mão e estica a bochecha, levo alguns segundos para entender e ele insiste no gesto, eu finalmente entendo e me abaixo dando um beijo estalado em sua bochecha que o faz sorrir, gesto continuo estico a minha bochecha para ele e recebo um beijo estalado. Ele aponta para mim, pra ele próprio e abraça o próprio corpo, esse sinal eu já aprendi o que significa. AMIGOS. Repito o gesto para ele que sorri e corre para o seu café da manhã.

Entro no refeitório ainda meio tonto com todos os acontecimentos dessa manhã, as lembranças, o carinho de Malik com sua lição de amor muda, a dor da saudade e a alegria de ganhar um amigo tão especial. Preparo minha bandeja e me sento em um canto, isolado dos demais voluntários, tenho evitado as pessoas, sei que não é bom, eu gosto de conversar, sou bom de conversa, mas não me sinto com vontade agora, ainda por cima na torre de babel que é o acampamento. A língua oficial entre os voluntários é o inglês, mas, principalmente nas horas das refeições, os grupos se formam por nacionalidade e, por incrível que pareça, por sorte ou azar, eu sou o único brasileiro aqui, então o isolamento tornou-se, além de natural, muito mais fácil. Claro, nos primeiros dias alguns médicos que atuam na mesma área me convidaram a sentar a suas mesas, eu sorri educadamente e agradeci, não quero companhia. Na verdade quero, só que a companhia que desejo está muito distante e, possivelmente, ainda magoada, assim como eu.

Respiro fundo e lembro da promessa que fiz, e a qual quebrei essa manhã, quando desci do avião na Cidade do Cabo.

"Nunca mais chorar"

Naquele momento eu tinha certeza que conseguiria, ela me deixou partir, ela quase me empurrou pra dentro do avião com sua resposta a minha última mensagem. Vir pra África, eu imaginei, era tudo que precisava para afastá-la da minha mente e do meu coração. Passar esses seis meses, ou quem sabe um ano, longe dela e longe de tudo que me lembra dela talvez fosse o que precisássemos para aprendermos a viver longe um do outro, talvez assim eu conseguisse realmente entender que o que tivemos foi bonito, mas que não serve para nenhum de nós.

No dia em que embarquei pra África parti deixando muito mais do que a minha vida no Brasil, deixei todas as lembranças dela, nossas.

Porém, sei que no fundo de nossos corações, nosso elo é o mais lindo e eterno. Fomos feitos um para o outro, só precisamos aprender como lidar com isso.

Com nosso amor.

Enquanto não volto pra vocêOnde histórias criam vida. Descubra agora