Capítulo 6

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Chatsworth, 3 de novembro de 2017.

Picinho,

Eu nem sei por onde começar, eu passei das maiores preocupações da minha vida hoje. Não, mentira, não foi só preocupação, eu senti medo, muito medo, um medo que nunca senti, não dessa forma. Eu não tive medo por mim, eu tive medo por Malik.

"Estranhei, ao sair do dormitório, não dar de cara com Malik, o que acontecia diariamente desde o dia seguinte a minha chegada aqui. Me dirigi rapidamente até o dormitório infantil, perguntei por ele ao responsável que me disse que ele havia despertado cedo, imaginou que tivesse ido ao meu encontro. Saí do dormitório e perguntei aos meninos que jogavam bola por ali se alguns deles tinha visto o pequeno, nenhum soube me dizer. Fui até a Oficina de Brinquedos, um dos lugares preferidos de Malik, mas ele também não estava lá.

- Chuma! Tu viu o Malik? - Chuma me olhou sorrindo com seus dentes muito brancos e muito perfeitos.

- Não, Doutor Masopakyindi, o pequeno Malik não esteve hoje aqui. - Ele me respondeu no seu inglês acentuado de sotaque.

- Que estranho, ele me espera todos os dias na porta do dormitório para tomarmos café da manhã. - Comentei num tom já um pouco preocupado.

- Ele deve ter se distraído com algo, sabe como são as crianças. - Me disse com ar despreocupado.

A resposta de Chuma não me tranquilizou, continuo procurando o pequeno por toda a parte do acampamento sem achá-lo, um frio me toma o estômago quando lembro de algumas histórias contadas por Manu e Chuma sobre as divindades que buscavam os puros de coração. Sacudo a cabeça com força, que bobagem, com certeza ele está em algum lugar pelo acampamento, basta que eu procure direito.

Passo pelo refeitório e pergunto por Manu, se alguém o viu, me informam que ele saiu cedo do acampamento com o filho, Unike. Unike e Malik tornaram-se bons amigos nesses últimos dias, claro que incentivados pela minha proximidade com Manu e Chuma. A sirene do campo toca me alertando do horário, eu ainda nem tomei café, pego uma caneca e me dirijo ao centro médico com a ideia de que, provavelmente, Malik havia saído com Unike e Manu. Tenho cirurgia agora, então, quando eu sair, provavelmente eles já voltaram."

Ah! Picinho, eu já passei algumas situações assustadoras, tu conhece essas histórias. E é claro que já senti medo, de vários tipos e por razões diversas, mas não esse medo que senti hoje, nada se compara ao que eu senti hoje. Eu não sabia o que fazer, eu perdi meu raciocínio, meu rumo, eu parecia um garotinho assustado e trêmulo que se perdeu dos pais no meio de um parque lotado. Que desespero. Lembra que te expliquei como me senti ao sair do programa acreditando que tu havia pedido, aquele buraco no peito em chamas, chamas de dor. Foi isso, mas foi diferente, ali eu sentia raiva e mágoa, agora era medo e desespero. Eu o procurei por horas, eu coloquei o acampamento todo atrás do guri. Eu não sabia mais o que fazer. E eu sempre sei o que fazer. Ao menos eu achava que sim, até hoje.

"Finalmente a cirurgia acabou, foi bem longa e cansativa, mas foi um sucesso. Saio do centro cirúrgico já procurando a presença de Malik e nada do guri. Me dirijo ao refeitório em busca de Manu e Unike, mas nem preciso chegar até lá, no meio do caminho encontro Manu e Chuma conversando em Africâner, não entendo muito, mas o tom deles é preocupado e isso já traz de volta o frio em meu estômago.

- Doutor, que bom, estávamos aguardando sua saída mesmo. - Chuma em olha com um ar triste. - Não tenho boas notícias. - Essa frase acaba com qualquer possibilidade de me manter calmo.

- O que aconteceu, cadê o Malik? - Os dois homens se entreolham e retornam o olhar pra mim. - Pelo amor, digam alguma coisa, qualquer coisa. - A agonia em minha voz os leva a se aproximar e ambos colocam suas mãos em meus ombros.

Enquanto não volto pra vocêOnde histórias criam vida. Descubra agora