Capítulo 7

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Chatsworth, 7 de novembro de 2017

Picinhoooo,

Eu to tão feliz, tão feliz, que, seu eu soubesse, sairia por aí dando estrelas, mortais e cambalhotas. Mas claro que, além de não saber (cambalhota eu sei), minhas costas depois iriam reclamar bastante e aqui não tenho ninguém pra cuidar desse Cachorro Velho, né? Não que não tenham interessadas, sempre tem, tu sabe que o Cachorro Velho aqui tem seu charme.

Mas não é por isso que to te escrevendo e não é essa a razão da minha felicidade. Na verdade não é uma razão, são três.

Eu não sei se te expliquei como é, ou melhor era, o dormitório, várias camas de campanha, com um colchão em cima, um armário do lado e uma mesinha, mas sem nenhuma divisória, o armário até dava uma sensação de privacidade, mas na real, não tinha nenhuma. Então, ontem, chegaram novas camas e divisórias com portas. Mesmo que eu passe um pouco na altura, tanto da cama como das divisórias, ao menos tenho um cantinho meu, minha privacidade, então agora, ao invés de ir ao refeitório escrever, consigo escrever daqui sem incomodar ninguém. Qual a vantagem disso? Bem, eu posso me entregar melhor as minhas palavras, me emocionar sem me preocupar com olhares, e mais ainda, posso sonhar com você e acordar sem ficar constrangido. Aliais, o que tem sido bastante corriqueiro, assumo.

A segunda. O Chefe da Cirurgia me chamou ontem, eu já consigo me comunicar, mesmo que destrambelhadamente, em Africanês e, palavras dele, devido a minha alta competência, ele tá dividindo a equipe em duas, ele ainda comanda o geral, mas eu agora tenho uma equipe minha e sou o principal cirurgião dessa equipe. Ah, nenê, fiquei tão orgulhoso de mim, eu queria tanto poder compartilhar isso com você, tu sabe o quanto amo o que faço. E aqui, como tudo é muito mais difícil de conseguir, a criatividade também é colocada à prova. Acho que isso também chamou a atenção dele. Enfim, to bem feliz com isso também.

E a terceira e mais bela razão. Tu não vai acreditar, nenê. Alias, nem eu sei se estou acreditando ainda. O Malik, esse guri é genial. A uma semana, mais ou menos, chegou aqui uma família vinda de Moçambique, vieram como voluntários para ajudar na cozinha e infraestrutura. O pai é Chef de Cozinha, a mãe é Engenheira de Computação (alias, graças a ela a partir de semana que vem teremos wi-fi no campo, vai funcionar em sistema de rodizio, ainda não entendi direito a forma disso, mas sei que terei uma hora duas vezes por semana), e um casal. A menina tem 16 anos, fala 4 línguas e alguns dialetos, o menino tem 6 anos e já fala, além do português (ah... em Moçambique a língua oficial é o Português e o sotaque lembra bastante o dos portugueses. Claro que conseguimos nos entender, mas em alguns termos a gente se enrola, me perguntaram ontem, por exemplo, onde era o talho, eu fiquei olhando pra mim mesmo, procurando um machucado, até entender que talho é açougue, claro que demos muitas gargalhadas), então, além do português, ele fala inglês e alemão. Enfim, contei tudo isso porque Malik e Unike logo fizeram amizade com o recém chegado.

"Olho pra carta ainda sem término e sorrio, se eu estivesse contando a história ao vivo, Emilly já teria me interrompido diversas vezes, teria reclamado dos meus detalhes infinitos, eu teria pedido 'só um pouquinho' de paciência, e ela teria aberto um sorriso enorme e falado.

- Mas, meu bem, tu não acaba a história, eu quero saber como acaba. Chega logo no final.

Eu teria a puxado para o meu colo, ou, se estivéssemos na cama, teria a provocado e prometido o melhor sexo da vida dela se ela escutasse quietinha. E, é claro, ela escutaria, mas nunca quietinha, ela teria me provocado até eu desistir da história e só me concentrar nela e, depois, exaustos, ela deitaria no meu peito e me pediria com a voz rouca.

- Acaba a história pra mim, meu bem.

E eu o faria, até vê-la adormecer.

Meu peito aperta de saudade e meus olhos se umedecem. Volto a sorrir. Ela tem razão. Ela sempre tem razão. Eu falo demais, ou escrevo demais, sou detalhista, acho que sempre fui, mas com a minha profissão me tornei mais. Como ela fala?

- Ah, meu bem, é que tu não conta história, tu palestra.

Olho pra folha e penso em jogar fora e escrever algo rápido e sucinto. Desisto quase que imediatamente, não sou capaz, não seria eu. Seguro a caneta e volto a escrever."

Malik. A terceira razão da minha felicidade essa semana. Vou explicar agora, juro. Esse guri se juntou a Charles e me fez uma linda surpresa. Linda e inesperada. Na hora do jantar ele entrou no refeitório todo pomposo, o refeitório dos refugiados é separado, mas ele foi no administrador e pediu uma autorização especial para jantar comigo. Chegou em sua melhor roupa, uma bermuda e uma camisa social, bem surradas, e ainda arranjou uma gravatinha, tava lindo. Quando entrou no refeitório todos pararam para acompanhar, ele veio em minha direção e sentou-se a minha frente e me disse que hoje eu não comeria sozinho, que ele me faria companhia. Só a atitude dele já me fez feliz demais e meus olhos se encheram de lágrimas. Mas não foi só isso, nenê, ele falou comigo em português. Tu acredita? Em português. Ele passou a semana inteira aprendendo com o novo amigo, não me contou, pra fazer uma surpresa. Um pequeno gesto, mas tão cheio de amor, tão perfeito. Foi maravilhoso, nenê. Jantamos juntos ali, trocando palavras em português. Ele disse que aprendeu porque queria me ver feliz, queria que eu me sentisse OGUIOSO dele (foi a palavra mais difícil pra ele aprender, Charles me contou depois do jantar, quando veio me perguntar como o 'aluno' tinha se saído). Eu me levantei puxei a cadeira dele pra perto da minha e lhe dei um abraço cheio de amor. Ele segurou meu rosto entre as mãos e me disse que eu não precisava chorar, que ele estava ali, que ele ia cuidar de mim. Cuidar de mim! Eu fiquei tão confuso quando ele me disse isso. Como assim cuidar de mim? Ele é um gurizinho. Ele colocou a mão no meu peito, no lugar do coração, e disse que ia me curar como eu o curei, que juntos iriamos nos despedir da minha tristeza, como ele tinha feito com a dele. Eu amo esse guri, nenê, como se fosse meu, eu sei que é cedo ainda, mas eu não consigo imaginar voltar pra casa sem ele. Não sei como fazer, ainda, mas preciso começar a pensar nisso. Só sei que não posso deixa-lo pra trás quando for a hora de voltar. Eu NUNCA MAIS vou deixar quem eu amo pra trás. NUNCA MAIS.

Eu acredito que D'us me trouxe pra ele e ele pra mim. Tal como eu e você. Somos um. Eu e você. Eu e Malik. Eu, você, Malik e os filhos que vamos ter. Será que to sonhando alto demais? Não sei e não me importo. Eu quero sonhar, eu quero confiar nos meus sonhos, eu quero acreditar que posso, que podemos juntos. Eu quero não. Eu acredito. O nosso plano vai dar certo. A gente só tá esperando o momento ideal. Eu sei disso.

Eu te amo, nenê.

Eu sinto saudade de ti, muita.

Eu queria estar aí com você.

Eu queria que nós estivéssemos aí com você, Malik e eu.

Te cuida daí que eu me cuido daqui.

Com amor,

Marrrcos.

"Termino a carta e noto alguns borrões, minhas lágrimas marcaram o papel, não me importo. Se um dia ela ler vai saber que foi por amor, por saudade, por querer dividir toda essa felicidade com ela.

Guardo a carta junto das outras, agora tenho uma caixinha especial, produzida por Malik, para elas. Com revistas velhas ele fez uma colagem em cima, um coração e as letras M e E dentro. Coloco a caixinha na gaveta da escrivaninha ao mesmo tempo que observo os dois porta retratos que a decoram. Um com uma foto minha e de Malik no dia do Parque Aquático e a outra, a única foto que não apaguei do meu celular, consegui que o administrador imprimisse pra mim, só o rosto dela, me olhando com um sorriso enorme. Toco o vidro como se tocasse seu próprio rosto.

- Boa noite, Picinho!"

Enquanto não volto pra vocêOnde histórias criam vida. Descubra agora